joão pessoa, paraíba, terra do poeta augusto dos anjos

Iam juntos para o apartamento dele, estava decidido. O trajeto foi silencioso, embora estivessem com as expressões iluminadas. Ao tentarem descer do carro, um casal de junkies encostou e travou a porta, um casal de ruínas humanas desabando, ele com os olhos amarelos e as bochechas chupadas, ela com os cotovelos dos braços parecendo gelatina, a pele solta em volta dos ombros e do pescoço. Odilon teve de forçar com o pé para abrir e dar um chega pra lá nos folgados. Uma churrascaria Porção e uma loja Rosa Chá na saída da estação de metrô também não ajudavam o tráfego de pedestres, e ficou difícil atravessar duas calçadas até a portaria.

O apartamento tinha sido presente do pai de Odilon, abastado dono de uma rede de lojas de departamentos, um mestre das falências fraudulentas, quando ele fizera 18 anos, e a decoração era aleatória, pouco informada, caótica. Mas havia uns sinais, aqui e ali, de que houvera grana nessa família: dois quadros assinados por modernistas famosos, Pancetti e Tarsila, um sofá de couro legítimo, equipamentos eletrônicos muito sofisticados, uns badulaques de vidros venezianos.

– “Bem estranho esse seu nome, Odilon…”

– “É, todo mundo estranha. Para explicar, decorei a origem. Quer mesmo saber?”

– “Mal posso esperar”, ela brincou.

– “Odilon era o nome do irmão do poeta Augusto dos Anjos. Foi Odilon quem lhe custeou o único livro que escreveu, EU, tirando do próprio bolso a quantia de 550 mil réis com a qual ele prensou mil exemplares”.

– “Imagino também que você conheça algum poema desse tal poeta, não?”

– “Sei tudo dele. Não que eu goste, veja bem… Na verdade, até que gosto de um deles. Em 1914, pouco antes de morrer, Augusto ditou um poema ao farmacêutico de sua cidade. Era O Último Número. Dizia o seguinte (Odilon estufou o peito e empostou a voz como um radialista na hora do gol):

Bradei: – “Que fazes ainda no meu crânio?”
E o Último Número, atro e subterrâneo, parecia dizer-me:
“É tarde, amigo! Pois que a minha autogênica grandeza
Nunca vibrou em tua língua presa
Não te abandono mais! Morro contigo!”

– “O que achou?”, perguntou Odilon, incomodado com o longo silêncio que sobreveio.

– “Lindo. Coisa estranha linda. Mas é só um poema, não goste tanto dele. Vem aqui, que a vida é muito curta para ser tão pequena”.

As mãos correram pela nuca de Odilon e ele sentiu uma confiança misteriosa, uma familiaridade estranha. Voltou a lembrar da viagem a Chicago, do fabuloso Lago Michigan, e revisitou algumas das imagens e visões mais doidas da temporada, imagens que corriam pelos seus olhos tão rápidas quanto maratonistas quenianos.

TRECHO DO INÉDITO ‘A MORTE ENGARRAFADA’

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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