Estávamos aqui discutindo Luiz Gonzaga versus João Gilberto, então veio o carnaval e o Arnaud Rodrigues morreu afogado lá em Tocantins. Nada mais longe, mas repare só se não podemos continuar mais ou menos dentro de um mesmo macroassunto.

Pelo que pude ver, “o humorista” Arnaud Rodrigues até que foi bem pranteado na “grande” mídia, mas em geral sobraram notas discretas para “o músico”, “o compositor”, “o cantor” Arnaud Rodrigues. O inverso parece acontecer na internet – é só você conferir, o blogspot está um jardim florido de lembranças musicais do Arnaud.

Eu fico com a blogosfera: ok, o humorista, mas Arnaud, pernambucano de Serra Talhada, foi um músico, compositor e cantor desconcertantemente original, em especial ao longo dos anos 1970.

Com seu conterrâneo nordestino (do Ceará) Chico Anysio, atravessou boa parte daquela década inventando música no conjunto de araque Baiano & Os Novos Caetanos. Empenhados em tirar um barato de Caetano Veloso & Gilberto Gil, Baiano (Chico) e Paulinho (Arnaud) faziam chanchada pura, mas a musicalidade por trás da chanchada, meu Deus do céu.

Houve um sujeito chamado Durval Ferreira, um carioca integrado às fileiras da bossa nova nos anos 1960. Liderou o conjunto samba-jazz Os Gatos, tocou com o Tamba Trio, acompanhou Leny Andrade, compôs com Maurício Einhorn e Bebeto Castilho, foi gravado por Claudette Soares. Participou da controversa apresentação da bossa nova no Carnegie Hall, em 1962.

Nos anos 1970, trabalhou com Aloysio de Oliveira no disco “O Som Brasileiro de Sarah Vaughan” e foi diretor criativo de LPs de Nana Caymmi e do primeiro encontro discográfico entre Tom Jobim e Miúcha. É que tinha passado para o lado de trás das cortinas da criação musical – virou um diretor artístico de extração popular e orientou discos de “cafonas” (Odair José, Diana), emepebistas (Joanna), sambistas “puros” (Zé Keti, Aparecida, Beth Carvalho, Cartola, Martinho da Vila), sambistas “impuros” (Antonio Carlos & Jocafi, Cesar Costa Filho, Eliana Pittman, Emílio Santiago), samba-soulzeiros (Silvio Cesar, Banda Black Rio) e forrozeiros (sim, ele mesmo, Luiz Gonzaga).

Durval foi diretor artístico e produtor do espetacular LP de estreia de Baiano & Os Novos Caetanos, “E?” (1974). A primeira faixa era “Vô Batê pa Tu”, de Arnaud e Orlandivo (outro bossa-novista de pernas quebradas pelo excesso de identificação com a música mais popular). À época, era citação cifrada aos episódios policiais protagonizados por Wilson Simonal (“deduração/ um cara que louco que dançou com tudo/ entregação do dedo de veludo”). Hoje, é clássico do samba-rock.

O “humor” ficou em primeiro plano, mas musicalmente o disco recombinava, de modo brilhante, forró, soul, funk, samba, samba-rock, samba-jazz, ciranda, folia de rei, toada, música caipira, canção cafona, modinha, MPB, faroeste, oração, rock, rock psicodélico… “Tributo ao Regional” fazia o que o título sugeria, sob a carpintaria de profundo lirismo. “Dendalei” encerrava o disco entre o cangaço e o faroeste, totalmente fora das leis (da bossa e da MPB universitária).

Sua sequência, “2” (1975), era tão brilhante quanto o primeiro, ou mais ainda. Era nova fornada de híbridas e suingadas canções (não-)nordestinas, como “Yo No Quiero Saber”, “Sete Luas”, “Entardecer na Fazenda”, “Ciranda”, “Violamania” e a faixa de abertura, a supostamente humorística (e altamente samba-roqueira) “Perereca”. Em “Ameriqueiro”, o hibridismo musical se casava com seu oposto, o conservadorismo nacionalista, em versos como “não sou americano/ com meu pouco dinheiro/ eu sou brasiliano e se não me engano sou ameriqueiro”, e “ave, ave, ave, música brasileira!”.

Os discos dos B&NC ficam devendo no quesito informativo, mas a lista de músicos acompanhantes na contracapa do subproduto “Azambuja & Cia” (1975) dá pistas sobre quem fazia o sustentáculo musical do “humorístico” conjunto. Trata-se de um verdadeiro quem-é-quem do lado mais suingado e suingueiro da pós-bossa nova: Durval Ferreira, Vitor Assis Brasil, Maurício Einhorn, o trio Azymuth (José Roberto Bertrami, Alex Malheiros e Mamão)…

Bertrami é um dos arranjadores desse LP – o outro, José Menezes, fez história como herói modesto do frevo pernambucano. Ou seja, sem maiores ambições ou pretensões, os B&NC buscavam reconciliar a bossa e o baião, 15 anos após “Bim Bom”.

O embate amoroso, por sinal, se estilhaçava em uma porção de outros equivalentes, Nesse “Azambuja & Cia”, uma faixa como “Negra Brechó”, de Arnaud & Anysio, faz-se elo improvável entre a psicodelia, a bossa nova, o samba-joia, a canção caipira e o candomblé. Sob as asas do Azymuth, ergue-se a ponte sobre-humana entre João Donato, Marcos Valle, Hyldon e Odair José. João Gilberto? Em algum lugar ele deve estar.

A proposta musical de Anysio & Arnaud jamais se concretizou, e uma das imagens musicais derradeiras do futuro professor Raimundo talvez seja a dele indo à prisão, desconsolado, consolar Wilson Simonal (descendente improvável de africanos e judeus, como demonstra Ricardo Alexandre no livro “Nem Vem Que Não Tem”, esse era o híbrido dos híbridos).

Os discos com Chico Anysio deram asas à criatividade de Arnaud Rodrigues como nunca antes ou depois ele voaria, mas nas duas pontas ele construiu trabalhos solo no mínimo intrigantes.

Estreou solo em 1970, num disco de nome enigmático (“Sound & Pyla ou Homenagem do ‘A’ ao ‘Z’), todo trabalhado na influência da pilantragem de Simonal. Aí mesmo ele talvez definisse, desde o princípio, uma posição à margem da MPB “vencedora”. Dizem que Tom Jobim era fã de Simonal, mas durante décadas pareceu que ele fosse talvez o único.

Em seguida veio “Murituri” (1974), de capa altamente psicodélica, conteúdo aveludado em black music indígena e parceria com outro quase-bossa-novista favorito da blogosfera, Arthur Verocai, em “Conscachá, Fimará (Magnífico)”.

No pós-B&NC, vieram “Som do Paulinho” (1976), em que Arnaud se declarava “Índio do Uraguai”, e “”Redescobrimento” (1979), em que a Banda Black Rio comandava os metais e os Azymuth ganhavam a companhia samba-funk sintetizada de Lincoln Olivetti & Robson Jorge, antiJobins espetados de vodu dos anos 1980. Os B&NC ainda voltaram e fizeram dois discos menos reluzentes, em 1982 e 1985, mas é muita história pra dar conta aqui.

Aqueles que não apreciam mirar a música popular pela ótica da briga dirão que resta aí, provada nos discos do duo Anysio & Arnaud, a tese da harmonia entre gêneros musicais diferentes como água & óleo. De fato, na obra de gente como Arnaud Rodrigues, óleo & água se misturaram e desceram redondos pelas gargantas de quem bebadosamba. Mas, repito, a proposta de ambos jamais se concretizou, ou pelo menos não se traduziu em aceitação de suas qualidades, muito pelo contrário.

Como se sabe, um muro de Berlim ergueu-se bem no meio do ofício que Arnaud dominava como quem masca um trevo de quatro folhas (tal muro foi, diga-se, em grande medida cimentado pela minha classe, a dos jornalistas plantados no coração – ou nos calcanhares e nas botas – da “grande” mídia). Até hoje, Antonio Brasileiro Jobim é maestro soberano. E Arnaud Rodrigues é mais lembrado como humorista cearense (embora nascido em Pernambuco), ou como o cantor cego (o assum preto) que pedia esmola na porta da igreja global de “Roque Santeiro”.

(*) O título deste tópico é um verso de “Entardecer na Fazenda” (1975), tudo a ver com um índio mestiço que um dia iria morrer nas águas do Tocantins, bem longe do concreto bandeirante que matou por asfixia o Anhangabaú, o Tietê e o Aricanduva.

P.S. em 20 de fevereiro de 2010: acaba de surgir um P.S. no tópico lá de baixo, furaro os óio do assum preto, espia.

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