Mais uma do “Brasil Econômico”, caderno “Outlook” número 11, 19 de dezembro de 2009. Amanhã tem mais (nas bancas, não aqui).

Malandro velho não tem nada com isso

No precioso Loki, que acaba de sair em DVD, Mutantes machos (e os diretores do documentário) soam indelicados ao pintar Rita Lee como a bruxinha má que estragou tudo

TEXTO PEDRO ALEXANDRE SANCHES

A história que une e desune Rita Lee e Arnaldo Baptista está entre as mais charmosas e pungentes deste Brasil. É uma espécie de Romeu & Julieta pop-rock-tropicalista, em que a tragédia de envenenamento e morte dos dois amantes foi substituída por um distanciamento artístico até aqui intransponível entre ambos. Recém-editado em DVD, o documentário Loki, de Paulo Henrique Fontenelle, é o documento precioso e comovente da fábula, sob o ponto de vista de Arnaldo.

O filme é todo ouvidos para ele, que aproveita a oportunidade com tocante doçura e fala abundantemente, sobre tudo, sem freios. No trecho de maior impacto, dramaticidade e passionalismo, vai direto ao trauma e ao tabu e diz mais ou menos assim: “Eu tinha sido internado quatro vezes antes, por diversas razões. Então, plenamente consciente e cansado de falar com os médicos, cansei disso, e pensei: ‘Eu vou me ver livre’. Me joguei da janela. A noite que me atirei era réveillon, eu vi o réveillon e pensei: ‘Eu vou comemorar o aniversário de quem me internou pela primeira vez e me botou no arquivo médico’. Então me joguei”. Rita nasceu no dia 31 de dezembro.

Ela não aparece para dar sua versão. Como ocorreu na recente volta dos Mutantes, Rita tem se recusado a participar desses movimentos de revisão, não se sabe em que medida por desinteresse ou porque, lá no fundo, ela não seja lá muito bem-vinda entre “meninos” que a chamam meio pró-forma. Um mesmo teatro dramático se repete, sempre e sempre. Uma das discussões persistentes é sobre se a menina da banda saiu por vontade própria ou porque foi expulsa pelos rapazes. Em Loki, todos se unem na versão de que ela saiu porque quis. Pode ser, e pode ser que ela se recuse a depositar em território “inimigo” sua versão. Mas, em termos práticos, mais uma vez os Mutantes machos (e a direção do documentário) soam indelicados em pintá-la como a bruxinha má que estragou tudo.

Aí está o xis da questão, o ponto nevrálgico que o merecido sucesso do filme não deixou até agora vir à tona. Por embarcar numa única versão (ainda que seja real), Loki se apresenta, por obra retórica da corte mutante masculina, como uma obra misógina, palco preservado de um antigo e perturbador cenário de guerra dos sexos.

O trunfo é que a fala de Arnaldo, Dom Quixote brasileiro, é 100% transparente. Ele não diz uma frase insignificante sequer ao longo da narrativa. De suas linhas e entrelinhas brota o drama duro, objetivo, acima das dores, paixões e opiniões subjetivas de cada um.

Noutro ponto, ele diz: “Os Beatles e Rolling Stones não tinham mulher no conjunto, que dava o lado circense. A Rita trazia um lado de roupas, Theremins, instrumentos malucos. Era interessante esse lado colorido, circense”. Ou seja, a única mulher na turma seria responsável única pelo teor circense, picaresco, talvez exótico, do projeto – por sinal um projeto que encanta o mundo 40 anos após sua criação, como demonstra o emocionante depoimento de Sean Lennon, filho de Yoko Ono e John Lennon, peças essenciais de outra turma da pesada no quesito guerra dos sexos, os shakespearianos Beatles.

Soa assim eloquente um recorte de jornal da época da ruptura, que passa de relance pelo filme. Dizia o título: “Rita Lee largou os Mutantes e agora vem aí muito louca numa banda só de mulheres”. A banda não se concretizou, mas Rita Lee foi lutar contra os moinhos, ser roqueira feminista dentro de uma MPB e de um Brasil para lá de machistas. E Romeu & Julieta seguem vivos, charmosos e fascinantes, morando aqui no Brasil.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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