não foi o sofá que lhe deu a dor no braço, é preciso que se diga.
do sofá ele monitora lá no fundo do quintal a altura da grama, as roupas no varal.
do sofá observa as novas espécies de pássaros que vão aparecendo para comer as frutas que coloca sobre o muro.
não há controle de claridade na sala, então ele acorda muito cedo.
com o tempo, a madeira do estrado foi cedendo e o sofá tornou-se curvo no meio.
desconfia que sua barriga cresce à medida que a curva de nível do sofá aumenta.
também ouve barulhos estranhos que não são das molas e desconfia que exista uma colônia de fungos futurista vivendo dentro do sofá, famílias de fungos que teriam carros voadores como os jetsons.

não inventou a vida no sofá, tem consciência de sua falta de originalidade.
david goodis viveu num sofá alugado em hollywood.
em 1996, após ser despejada, a poeta orides fontela foi viver num sofá cedido por estudantes numa república na avenida são joão.
“foi bom ter vindo para cá, as pessoas são amigas e eu estava muito solitária”, disse a doce orides.
ernest hemingway, dizem, conheceu reentrâncias da vida numa suíte-sofá.
lá em finca vigía, a casa cubana de hemingway, na cidade de san francisco de paula (hoje museo hemingway), está preservado o sofá onde gary cooper dormiu (e, muito melhor, a piscina em que ava gardner nadou nua).

a revista velha no avião ensina que existe até uma modalidade de turismo nova, chamada couch surfing, o surfe de sofá.
funciona assim: o povo do mochilão reserva pela internet, e enfim alguém aluga o sofá por uma temporada.
e couch potato, há décadas, dá nome ao cara que fica no sofá a maior parte da vida, assistindo TV e comendo porcarias.

muita gente importante desenvolveu um apego sobrenatural ao seu sofá.
uma vez, contam, o poeta joão cabral de melo neto, recluso e quase sem visão, aceitou abrir as portas de seu apartamento na praia do flamengo, no rio, para dois documentaristas. pediu que entrassem. um deles, inadvertidamente, foi logo sentando no seu lugar no sofá e ele não teve dúvidas: “vamos trocar!”, ordenou.

o sofá cedeu imagérie para a canção popular.
“saw you sleeping on the couch tonight”, canta john mayer em lifelines.
“i guess it’s fair if he always pays the rent/ and he doesn’t get bent /about sleeping on the couch when i’m there”, cantam os dandy warhols em bohemian like you.
outra mais remota: “quando ela cai no sofá, so far away. vinho à beça na cabeça, eu que sei”, diz a letra do kid abelha.

não se faz lençol que dê em sofá, então o forro às vezes se enrosca no pijama, e ele acorda contrariado.
o gato resolve jogar bola às duas da manhã.
ele implora ao gato que pare.
há compensações: reality shows fajutos na TV à noite, que ele teria vergonha de ver de dia, o fazem rir à toa – papo calcinha, ontem, ensinava a melhor forma de pressionar o grelo com o pau enquanto a coisa se desenrola.

a faxineira se acostumou a entrar furtivamente para não acordá-lo antes da hora.
a faxineira não consegue entender o seu apego ao sofá, e pisa em ovos pela sala.
o sofá é o seu rito de passagem.
é o contrário do apego, é um não ser e um não estar.
após o sofá, tudo surgirá macio e aconchegante, pensa.

nem amanheceu, e um besouro atravessa furiosamente a sala como se competisse na prova dos 100 metros rasos.

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2 COMENTÁRIOS

  1. Projeto de Intervenção: Cidade Sofá
    Artista Plástico: Tadeu dos Santos

    Os locais onde o lixo costuma ser jogado estão, em geral, longe dos olhos da população e com isso o problema não é alvo de muitos questionamentos.
    Pensando neste contexto socioambiental e na arte em seu papel de fazer refletir apresentamos a proposta de Intervenção “Cidade Sofá”. Ela consiste em percorrer áreas públicas e particulares em Maringá com intervenções com a duração de uma hora. As intervenções consistem em colocar um sofá usado pintado com elementos urbanos ao lado de objetos jogados em terrenos baldios. A intervenção é formada por um conjunto de sofás e um aparelho de TV com um espelho colocado no lugar do visor.
    O objetivo é chamar a atenção da população, com o apoio da mídia, para o problema de formação de depósitos de entulhos, com o descarte de materiais em ações contra o interesse coletivo, em que costuma-se jogar todo tipo de lixo como, por exemplo, os sofás velhos.
    Busca-se com esta intervenção provocar uma transformação significativa no comportamento das pessoas, buscando a sensibilização para o consumo consciente, evitando a prática do descarte de material em locais não apropriados.
    A intervenção Cidade Sofá está relacionada a nossa paralisia diante de situações problemáticas do cotidiano e a nossa passividade diante do aparelho de tv, no qual vemos as transformações de maneira contemplativa.
    A reutilização evita o desperdício, a contaminação e o acúmulo de entulhos.
    A intervenção propõe uma reflexão no sentido de propor uma alternativa para o problema ambiental provocado pelo descarte de materiais. Desta maneira o material de descarte pode ser transformado em peças personalizadas, ganhando um novo significado, tanto estético como ecológico.
    As intervenções serão realizadas no dia 05 de junho, domingo a partir das 9 horas.
    Solicitamos a coolaboração da Secretaria do Meio Ambiente para o transporte do sofá nos seguintes bairros e horários.

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