Quantos tiros foram?, quis saber um senhor de chinelo de dedo, camisa pólo e calça de jogging meio puída, e que segurava bilhetes de loterias nas mãos. Estava apoiado em muletas e tinha farelo de pão no canto da boca.
Giudice fez uma careta e deu um sinal para que afastassem o homem, que não foi embora sem antes resmungar um bocado.

Os detalhes talvez nunca sejam revelados, mas o certo nessa cena é que o assassino amarrou o professor com fios de cobre e fita isolante, e depois torturou barbaramente o homem – provavelmente para obter a senha de seu cartão bancário. Em seguida, levou 800 paus de sua conta e finalmente voltou ao carro estacionado com o homem preso dentro e o executou com um tiro na cabeça. Teria ido embora caminhando. A câmera do caixa eletrônico que fica a uma quadra dali captou a imagem do momento do saque, que foi localizado a partir do horário do assassinato. A imagem, infelizmente, tinha má qualidade.

Apenas mais um dia comum na Homicídios, um professor da PUC no lugar errado e na hora errada. O professor Bernardo completara 42 anos no dia 14. Segundo um seu subordinado no Departamento de Engenharia, ele recebera amigos em seu sítio em Ibiúna um dia antes e contou, numa roda, sua façanha do dia: treinara golfe em um desafio amador com o astro aposentado americano Tiger Woods.

Mas Giudice sabia que não estava com a cabeça apenas no dia comum e no crime comum. Estava agora bastante intrigado com uma nova ousadia de seu superassassino, o serial killer que matava homens de classe média alta da paulicéia desde junho. O sujeito lhe tinha enviado um bilhete. Neste, estava escrito: “Ao dr. Giudice. Se eu fui o assassino, eu só teria feito isso porque estava apaixonado. Você não acha?”.

Era uma novidade no caso, um momento exibicionista do matador. Quisera demonstrar que sabia que estava sendo caçado, e sabia quem o caçava, e presumia que nunca seria apanhado. Queria apenas brincar de gato e rato.
Um dos investigadores da divisão, um hacker a quem chamavam de Investigador Deejay, ficou um dia inteiro com a frase do matador no computador para tentar decifrar a coisa. Na quinta-feira pela manhã ele entrou esbaforido na sala do delegado. Relatou o seguinte: foi em 1998, um caso praticamente esquecido. O ex-astro de futebol americano O.J. Simpson admitira indiretamente, numa entrevista à revista Esquire, que poderia ter sido ele mesmo a ter matado a ex-mulher, Nicole Brown Simpson, e um amigo dela, Ronald Goldman. “Se eu fui o assassino de minha mulher, eu só teria feito isso porque estava muito apaixonado por ela, você não acha?”, perguntou O.J., respondendo a uma pergunta da jornalista Celia Farber. “A resposta de Simpson não pode ser considerada uma confissão porque ela foi dada no plano das hipóteses”, declarou a repórter à polícia, mas não sem antes afirmar que pediu para Simpson reformular a questão duas vezes, e ele o fez sem hesitação.
A questão que se punha agora à sua frente era a palavra-chave usada pelo assassino: paixão. Mas o exame dos casos não mostrou correlação entre eles, os mortos nunca tinham se visto antes. Então, a única paixão possível seria a que o assassino nutriria para com suas vítimas? Obviamente. Mas algumas delas ele mal tinha acabado de conhecer, não era razoável. Fuçou no Google em busca de correlações entre as palavras paixão e morte. Quase todas vinham dos períodos românticos da literatura, havia menções a composições musicais eruditas.
O assassino matou porque amava ou matou porque poderia amar? O assassino punia com a morte aqueles a quem amava? O homem mata tudo que ama?
Outra coisa que parecia óbvia ao delegado agora era que, além de maluco, o assassino era sofisticado, tinha prazer em lidar com detalhes e manusear o que ele parecia considerar uma espécie de artesanato. Quando pusesse as mãos nessa figura, pensou, gostaria de ficar a sós com ela uma ou duas horas. Tinha algumas dúvidas que não estavam apenas na esfera da Delegacia de Homicídios.

trecho do inédito A MORTE ENGARRAFADA (editora fubeca, 2005)

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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