– “Talvez eu pare, afinal. Nem fumo muito. Posso parar quando quiser. Eu paro quando eu quiser, entendeu???”.
Subitamente, adquiriu tom nervosamente enfático, duvidoso.
– “Então porque não para agora?”, desafiou o colega.
– “Porque não quero.”
– “Há quanto tempo você fuma?”
– “28 anos.”
– “É, de fato não fuma muito…”

O fumódromo está em seus últimos dias. A turquinha nem apareceu hoje. O melhor do fumódromo eram as garotas em duplas ou em trios – garotas nunca fumam sozinhas. De bode, elas desapareceram desde a semana passada.
Fumódromos não deixam saudade, diria o médico oficial da TV que, repentinamente, passou a importar-se com o pulmão dos garçons cenográficos. Os garçons só são lembrados em época eleitoral mesmo.
“Prefiro o óbito ao médico”, dizia o Nelson Rodrigues. Moi aussi.

Mas o que será do cara da contabilidade, o que tinha o olho amarelo, o que nunca se mexia na poltrona – só coçava o nariz com um repuxar de lábios (o único tique nervoso eufórico que já vi) quando entrava a gunfighter com suas calças de funkeira em férias e o cigarrão já aceso na boca?
O pessoal discute como se fará o revezamento na repartição para descer e fumar na marquise. Já o chefe fala em cronometrar as descidas (afinal, são seis andares até o chão). As secretárias estão em pânico: e no dia que o elevador enguiçar? Como subir seis andares depois de fumar um Gauloises sem filtro?

O fumódromo sempre foi uma fantasia civilizatória. Nem de longe era o lugar oficial. O executivo sênior fumava no banheiro e ninguém nunca teve coragem de dedurar o cara. E todo mundo sabia que as escadas de incêndio eram muito mais agradáveis para um cigarrinho do que a conversa enfadonha da Chefe de Despacho, obrigatória no fumódromo. É duro ser fumante inveterado, mas mais duro ainda é ser obrigado a fingir interesse em conversa maçante.
Era no fumódromo que as notícias da firma corriam soltas. Sempre se sabia de antemão que o cara que fumava ao seu lado seria demitido logo após jogar fora a bituca de American Spirit. Seria seu último American Spirit – outro sujeito que só fumava importado (tudo para que o cronista não faça propaganda ilegal).
Mais um efeito colateral: será preciso procurar uma nova Central Oficial de Boatos.

Conversa apressada entreouvida no finado fumódromo – que talvez amanhã vire mais uma sala de reunião, ou um bunker para um novo superior hierárquico:
– “Vai ser uma loucura na Mercearia! Só tem lugar para seis mesas na calçada! A Mercearia era o Cabaret Voltaire dos fumantes, era o fumoduto visionário dos pulmões dadaístas desta cidade!”
– “Fumar na rua, na calçada. É tudo que nos resta.”
– “Fumar na rua? Com o frio que tá fazendo? Cara, eu já vi um sujeito que morreu congelado na porta de um pub no East Village, em Nova York. O corpo teve de ser descongelado numa banheira para que o legista conseguisse retirar o cigarro do dedo dele!”

Ela chega perto do rosto dele e lhe dá um beijo.
– “Sete dias que não fumo. E não sinto a menor falta”.
Ele puxa sua cabeça para si com carinho, morde seu queixo. Passou um ano pedindo que ela parasse. Tentou esconder cigarro. Chantageou, inventou estatística mentirosa. Agora que ela parou sem avisar, tem vontade de lhe dizer que era tudo mentira, que nunca pretendeu que ela parasse de verdade.
Lembra dos seus dedos com o esmalte vermelho abrindo a caixinha metálica de cigarretes, o isqueiro bonito, o gesto elegante como o da Sean Young em Blade Runner.
Mas aí chega o bolinho de mandioca com camarão e o vinho de segunda e a história desaparece como se fosse içada para o céu numa fumaça branquela espiralada.

obs: o blogueiro nunca fumou

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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