era faixa preta de tae-kwon-do, pescoço tão grosso que se confundia com a cabeça.
tão autoconfiante que, na infância, contam que descia de carrinho de rolimã a ladeira e nem se dava ao trabalho de dar um cavalo-de-pau quando chegava ao final da rua.
troglodita de respeito, do tipo que tinha retrato da família gracie na parede da sala. ia à feira com o rotweiller na coleira, mas “dava linha” no animal quando algum moleque vinha pedir para carregar sua sacola. o bicho adorava cartilagem de canela.
apavoramento soundsystem total.

teria sido muito natural que o filho seguisse seu caminho. e bem que o filho, de cara, não parecia que tinha ganas de ser civilizado, chegou a ser expulso de duas escolas. mas veja como é a vida: acabou virando um lorde.
o pai uma vez chamou o vizinho do quarto andar de bundão na frente das filhas gêmeas bebês no elevador e era um coroa que vivia praguejando – considerava que todo comentarista político da TV era “escroto”, no que tinha quase razão.
o filho já então morria de vergonha.

uma vez, quando o pai já estava mais para lá do que para cá, criou coragem, foi até ele e lhe disse que era muito simplista aquela sua divisão do mundo entre escrotos e frajolas, e que no fundo as pessoas tinham outras coisas a mostrar – a não ser que não quiséssemos ver.
o filho achou que o velho ia quebrar seu pescoço, mas não. o velho apenas mudou de canal: passou do telecine pipoca para o history channel.

estava no leito de morte e mandou chamar o moleque. apontou para a gavetinha do criado mudo, com voz de moribundo de filme italiano. o rapaz demorou para entender, daí abriu a gaveta e tinha um envelope amarelo.
“não deixa ninguém queimar isso”, disse o velho, e morreu.

o filho abriu o envelope, eram fotos de um baile de carnaval do clube paulistano de 1968. demorou para achar o pai ali. vestia saia de tule, tinha uma tiara de cristais na cabeça e uma varinha de condão com uma estrelinha na ponta e salto finíssimo. estava sempre abraçado a um pirata de perna de pau e tapa-olho e uma garrafa de rum.
aquele velho canalha já tinha sido a fada sininho em baile de carnaval.
em nenhuma das fotos ele deixava cair a tiara.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

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