o sr. x já havia passado 190 de seus 150 anos de vida ocupado em despistar, negar e renegar suas próprias emoções, mas agora ele definitivamente não podia mais se emocionar.

sabe quando os médicos recomendam, “procure evitar emoções fortes”? pois então, dez mil anos atrás, coração sobressaltado, ele ouvira esse conselho, essa ameaça, essa ordem, da boca de um médico destrambelhado que via uma máquina no lugar onde fica o coração e não sabia bulhufas sobre o significado dessa palavrinha tão reles, p-s-i-c-o-l-o-g-i-a.

e, se antes mesmo seu x já o fazia, nos próximos 20 mil anos, sim, ele seguiria à risca os conselhos, as ameaças, as condenações de morte em vida do doutor. ou dele próprio.

mas aqui-e-agora era mais, mais que nunca. o sr. x não podia, de jeito maneira, se emocionar. nem precisou doutor, essa exacerbação da regra ele mesmo impôs ao seu coração.

então. vai daí que sempre que a emoção se aproximava lá na esquina de seu x, ele se embananava inteirinho, trançava braços e pernas, concedia férias por tempo indeterminado aos próprios neurônios cansados.

diante da emoção de receber na varanda o filho e o genro forasteiros em visita, enquanto em frente ao portão os cachorros lhes sorriam latindo, simplesmente desligava o interruptor. “onde vocês estavam?”, perguntava, aéreo, desconcertando a família inteira. no aeroporto, aterrissando, uai. “aah.”

na hora do “parabéns a você” à sra. y, disfarçado na emoção coletiva (e nem tão profunda assim, diga-se), postava-se orgulhoso ao lado da companheira de mais de 50 anos. mas ontem mesmo esquecera que ela faria aniversário, quem é que faria aniversário, quando haveria aniversário, decreto decisivo de “por favor, pare agora” à emoção que ensaiava se insinuar.

diante da meiguice e beleza da neta virada adulta, formada e recém-casada, desconectava, penumbroso: “quem é a sua mãe?”. a família esclarecia, “filha da tua filha”, e ele: “aaah”.

nascido na boca de um riozão e pescador inveterado, daqueles para quem os peixes eram mais amigos que os humanos, seu x concedia acompanhar a tropa às barrancas do rio mais lindo das redondezas, mas ali morava emoção que não se podia suportar, mais caudalosa que a correnteza de um rio. simplesmente caía para trás, despencava rolando ribanceira abaixo, fazendo um strike de boliche na já sobrecarregada sra. y, quase tão velhinha quanto ele. pernas pro ar de um para cá, pernas pro ar de outra para ali, família atarantada por todo lugar.

o filho tinha de estrear na tarefa inédita de correr atrás do pai, ir resgatá-lo lá na baixada da estrada de terra, com medo de que ele se embrenhasse na mata. é que ele disparara em fuga da própria queda, emoção de tamanho incômodo seria a de encarar a queda e a vergonha de nem ter ajudado dona y a se levantar.

até sabia de qual mal padecia, “o doutor disse alzheimer”, mas queria se aprofundar no assunto, não. agora portava, era simples, aquilo que os antigos chamavam de caduquice e médicos e artigos científicos de agora classificavam como um dos diversos tipos conhecidos de demência senil.

“demência senil”?, ui, que doído. sim. ok, mas… pois sim, os nomes podem revestir as coisas de veludo (nem que o veludo roxo da capa do conde drácula, mas ainda assim veludo, cotelê). mas o que o sr. x possuía mesmo em estado bruto e brutal era medo, pânico, terror da emoção (causadora obrigatória de sofrimento? será, será mesmo?). e, me diz, qual emoção há de ser mais forte que a emoção de morrer, depressa ou devagarzinho, um pitoquinho a cada dia, como estamos agorinha mesmo eu e você?

e, embora doesse a valer por dentro e nos arredores, esse era apenas um jeito de encarar à vida. um jeito freqüente, banal e comum a zilhares e zilhares e zilhares de habitantes daquele país que seu x ajudara quietinho a construir, no tempo comprido dos sentimentos enclausurados.

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Editor de FAROFAFÁ, jornalista e crítico musical desde 1995, autor de "Tropicalismo - Decadência Bonita do Samba" (Boitempo, 2000) e "Como Dois e Dois São Cinco - Roberto Carlos (& Erasmo & Wanderléa)" (Boitempo, 2004)

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