CECÍLIA

4
778


cecília no dia do seu casamento

Muitos crêem que Cecília inventa a maioria das histórias que conta, inclusive eu. Sou sincero: é muito protagonismo para ser tudo verdade.
Mas um dia eu caí do cavalo: ela me contou que tinha dado uma canção para Jorge Mautner, Sapo Cururu, e eu duvidei. Um dia, fui cobrir um show de Mautner no CEU Cidade AE Carvalho, durante a Virada Cultural, e ele tocou Sapo Cururu. Quando terminou, Jorge disse: “Essa música quem me apresentou foi a Cecília G. em 1959”.

Cecília sempre causou grande curiosidade. Em visita ao jornal, jovens estudantes eram levados à mesa dela e ouviam deliciados as dúzias de histórias contadas com rara erudição pela senhora miúda, de cabelos ralos, olhos brilhantes e um tom de fina ironia na voz.

Ela deixava as pessoas meio assustadas quando falava de seus planos para a própria cremação, as músicas que queria que tocassem no dia de sua morte. Mas é tudo exagero shakespeareano, Cecília é jovem, tem apenas 72 anos (nasceu em 29 de junho de 1936 e possui “uma saúde de vaca premiada”, segundo lhe lembra o amigo Rolf).
Estava havia 34 anos na empresa – entrou para o jornal em outubro de 1975. “Era para ficar só três meses”. Estava no jornal no dia da mudança da Rua Major Quedinho para o bairro do Limão. Estava na redação quando saiu o famigerado Pacote de Abril do ditador Geisel. Trinta e quatro anos. É uma vida inteira. Foi casada com o famoso ator, dramaturgo e diretor G.G., e mesmo separada por décadas dele, era ele ainda o epicentro de suas histórias e de seu fabulário.

Ela conta que começou não como repórter, mas como tradutora da editoria de Internacional. Traduzia do inglês, italiano, espanhol e francês, porque os correspondentes naquele tempo escreviam nas suas línguas pátrias (Rocco, em italiano; Gilles e Issa, de Paris e Beirute, em francês; Novaes, de Madri, em espanhol; John A., dos Estados Unidos, em inglês). “Eu não traduzia, já fazia textos jornalísticos ‘no tamanho’, e, modéstia à parte, era tão boa que fiquei nisso uns anos, até me deixarem escrever ‘de verdade’”.
Sua primeira reportagem foi a cobertura da vinda do Balé de Moscou ao Brasil. A companhia se hospedou no Hotel Jaraguá, que ficava então em cima do jornal, na Major Quedinho. “Não tinha quem entrevistasse o pessoal; como eu arranhava russo, me mandaram – e foi o diabo arrumar um nome printável para a prima ballerina, Vagina Seminova”, ela conta, com o deboche costumeiro.

Terça-feira foi um dia triste. Cecília deixou a empresa. Trabalhou o dia todo, escreveu suas colunas, deixou algumas fechadas. Organizou arquivos e fotos, limpou as gavetas, colocou em 2 pen-drive aquilo que queria levar do computador. Deu uma mãozinha numa tradução que alguém lhe pediu. Despediu-se das pessoas com a voz meio embargada. “Plus ça change, plus c’est la même chose”, ela me disse, citando O Leopardo.
Um ou outro confundia sua vocação discursiva com algo de ranzinza, e sobre ela pairava uma odiosa suspeita de ser cleptomaníaca, nunca comprovada. No último dia, foi aplaudida de pé por toda a redação. Tirou fotos com os mais jovens. Contou piadas, recomendou leituras. No Natal, estará em Punta del Leste com os filhos e os netos.

PUBLICIDADE
Anterioro rabão
PróximoANTIPROVÍNCIA
Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter desde 1986 e escritor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019), Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021) e O Último Pau de Arara (Grafatório, 2021)

4 COMENTÁRIOS

  1. Caro Jotabê,

    Sei que esse não é o local para expressar a minha admiração por seus escritos, mas era a sua postagem mais recente e, sem medo de obter luz, resolvi postar assim mesmo.
    Gostaria que o Senhor, se fosse possível e quisesse, visitasse o meu blog ( recém-nascido! ): astripasdoverso.blogspot.com. Lá, escrevo poesias e publico algumas postagens sobre literatura,arte, etc…
    E que , para mim a sua opinião vale muito, se houver luz em meus escritos – lá ainda são poucos – faça uma crítica sobre eles, pois assim aprenderia muito ou sairia do anonimato. Sou alagoano, 30 anos e escritor. Desde já agradeço!

    P.S. : sobre Caetano: ofereça-lhe um espelho!

    ADRIANO NUNES, MACEIÓ/AL.

  2. que melancolia me deu seu texto, jota. a redação não será mais a mesma sem ela. adoro essas grandes figuras, sempre controversas, mas que quando vão embora, deixam um vazio incômodo.
    beijos saudosos,
    Georgia

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome