Joaquim Mulato tem 84 anos, dos quais 62 dedicados à cantoria e à autoflagelação.
No Sítio Cabeceira, de Barbalha (20 km de Juazeiro do Norte, no Ceará), no meio da noite, ele puxa o coro e os penitentes o seguem.
Usam túnicas bordadas com cruzes e capuzes com uma treliça bordada no lugar dos olhos. A visão desse grupo no meio da noite escura equivale a uma viagem no tempo – para um tempo que nenhum de nós viveu, podem ter certeza.
Anteriormente vistos apenas como malucos religiosos, os penitentes mudaram de status recentemente no sertão. Tiveram discos gravados com seus benditos (os cânticos religiosos, que às vezes lembram blues primitivos) e que são distribuídos em Fortaleza e no Recife.
Joaquim Mulato agora é reconhecido pelo governo do Ceará como “Mestre do Saber Popular” e recebe um salário mensal do Estado por conta desse status. “É importante, é uma gratidão”, diz Mulato.
O grupo de penitentes de Mulato, o Dicurião, do Sítio da Cabeceira, ao contrário de outros mais radicais, não vive esmolando pelo Cariri nem prevê um apocalipse iminente, como é o caso dos Borboletas Azuis, também da região. “Quem tomar por devoção esse sonho de Nossa Senhora já sabe o dia que vai morrer. E quem quer saber o dia de morrer? Eu não”, diz Joaquim Mulato, para dirimir quaisquer dúvidas.
A maioria dos penitentes do Dicurião é negra e Mulato diz que tudo começou na época de D. Pedro II. “Quando entrar de novo um homem de coroa, a coisa vai andar. Mas com a República não vai, não. A República deixa passar tudo”, ele discursa.
Quando é época de Finados, os penitentes saem andando pelo mundo. “Para voltar, não tem data não”, ele diz. Flagelam-se com uma espécie de chicote com ponta de corda. O rito iniciático inclui carregar pedra na cabeça, açoitar-se e levar um “cilindro na cintura”, segundo ele explica.
“A penitência foi feita para livrar o mundo da fome, da peste, da guerra. A gente reza para se defender do inimigo. Mas esse dia, que Deus marcou para o mundo se acabar, isso ninguém sabe. Nem padre sabe. A morte é certa, outra coisa não.”
Joaquim Mulato lembra do pai com melancolia. Recorda que o pai também chegou a ser um penitente, mas deixou a reza. “Era um homem bonito, era cobiçado. O homem sendo cobiçado perde a linha”, afirma.
O chefe nem sempre foi chefe. Entrou no grupo aos 22 anos, depois montou o grupo de penitência do Barro Vermelho, hoje extinto, e prossegue na linha.
Francisco José de Lima, o Chico Severo, é um dos auxiliares do Chefe. Está no grupo de penitência desde os 8 anos de idade. “Não me lembro de quando começou, só quem se lembra é o Chefe”, ele diz, apontando para Mulato. “Os velhos vão se acabando e os novos ficando”.
No sertão do Cariri, a fé e a cultura andam de mãos dadas, e hoje é impossível separar uma e outra.

reportagem que fiz em 2004 em barbalha, no sertão cearense, com o vidal cavalcante, e que não teria sido possível sem que o fotógrafo fosse o vidal cavalcante, porque ele fareja história boa.
o vidal não está podendo fazer reportagem ultimamente, por causa da saúde, mas é impossível deixar de anotar periodicamente que o vidal sempre foi um dos melhores.

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Jotabê Medeiros, paraibano de Sumé, é repórter de jornalismo cultural desde 1986 e escritor, autor de Belchior - Apenas um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017), Raul Seixas - Não diga que a canção está perdida (Todavia, 2019) e Roberto Carlos - Por isso essa voz tamanha (Todavia, 2021)

2 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pela reportagem, cara!

    Esse é o tipo de coisa que faz a gente refletir sobre o tamanho do mundo, ultrapassar a mediocridade urbana e se embrenhar em coisas que a gente pode não entender direito com a razão, mas que de alguma forma nos alcança pela pele, entra pelos ouvidos, como uma cantiga que nunca ouvimos mas ainda assim lembramos, sem saber de onde.
    “Personagens” como ele precisam ser citados, fotografados, cantados. Pra que a gente sempre lembre daquilo que tem valor, ainda que poucos saibam ou reconheçam.

    Grande abraço!

    Lucia

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