o gilberto gil que estreou o show “banda larga” há poucas horas atrás, no citibank hall, em são paulo, parecia nitidamente um homem dividido em dois, um homem bipartido.

eriçado de confortável desconforto, o ministro-cantor fazia-nos crer que é um homem que não quer mais ficar na política, mas também não quer voltar para a música – ou melhor, um homem que quer continuar na política, mas também quer voltar para a música. ou tudo isso junto e embaralhado, multiplicado por dois, dividido por dois, como dois e dois são cinco.

assim dividido, seguiu transgredindo arriscados limites (ou falta deles) entre público e privado, entre o artista politizado que apresenta canções inéditas de rara coragem (uma estonteante sobre o “oco do mundo”, outra arrepiante sobre a antevisão medrosa de sua própria morte, de inovadora nudez) e o político que aglutina com desfaçatez patrocínios corporativos da ig, da gol, das globos, da rádio não lembro qual, da grife gege.

assim cindido, oscilou entre o reformista progressista que pressiona e impulsiona a cultura para frente e para cima e o coronel antigo que ergue a voz para se fazer ouvir mesmo à revelia, entre o artista-político cansado e o político-artista que renasce renovado a cada dia.

assim indeciso, celeberou o funk e o samba e o reggae e a novidade que sempre vem dar nas praias brasileiras, quase ao mesmo tempo em que cedia ao ancestral deslumbre novo-rico de expor a filha preta, contando feliz que ela viajou para nova york só para ver beyoncé ao vivo, só para pagar 500 doletas para ver beyoncé de perto.

assim bipartido, celebrou o novo e os novos e criticou suavemente os artistas “conservadores” que se impertigam apavorados diante das possibilidades de código aberto, de copyleft e de generosidade intelectual oferecidas pela internet. nesse exato instante, ouviu vaias tão indecisas quanto reacionárias (ó, santa tropicália rediviva!, alô, tom zé!), foi hostilizado, repreendido, reprimido. viu erguer-se diante de si a voz brasileira intolerante e autoritária que anda teimosa e nervosa em se consumar nuns vários rictos de “cala a boca”.

nesse exato instante do “cala a boca”, fez renascer a voz autoritária (mas, em seu caso particular, nunca intolerante) do coronel que cala os outros no grito, “eu canto para vocês, mas [cresce o tom de voz] deixa eu falar“. e chorou, falando dos filhos, dos meninos, dos novos.

fechava ali o que parece ser um ciclo interno de mudança, de transformação. pois, ao mesmo tempo em que cumpria o ritual pastoral subserviente de sempre, de fazer “iô-iô-iô” e levar o rebanho feliz a mugir “iô-iô-iô”, também sentia e causava desconforto, rebeldia, vontade de desobedecer.

e, naquele ritmo, o “grande” público (aí incluídos fãs fanáticos, aí incluídos críticos cricris), esse que sempre gosta de fantasiar que o ídolo é um seu escravo ao tempo mesmo em que se deixa escravizar pelo dito cujo, entrava em parafuso de esquizóide confusão. aplaudia o artista que fazia função de político e/ou hostilizava o político que vestia a fantasia de artista, ou melhor, vice-versa, tudo junto-separado e embaralhado, no espelho, como dois e dois são sessenta e cinco.

intolerante e irritada, a platéia se dividia no espelho do artista, e trocava as bolas da (in)compreensão apupando o velho coronel mais ou menos quando ele tentava soltar o pavão mysteriozo (“não gruda”, “não gruda”, esgrimia gilberto num brilhante xaxado novo), ovacionando o rebeldade bem quando ele gritava o “gimme your love” de “vamos fugir” com o rosto e o corpo faiscando ódio selvagem, reprimindo o neocoronel quase nos interlúdios em que ele ensaiava libertar o pássaro proibido (“piolho”, “lambreta”, “quer alho”, “que saco”, ameaçava, avisando que não faria a “rima fácil”, quase fazendo).

as corporações e os partidos políticos e as igrejas e os fã-clubes e os jornal gotejavam o pus do oco do mundo, naquele mesmo instante em que o poeta (pastor?) avisava que não temia a morte, porque ela estará depois dele, mas morria de medo de morrer, porque esse ato ele mesmo terá de protagonizar. vaiado & aplaudido, aprendia atrasado a lição trazida pela filha preta-deslumbrette, que pouco tempo atrás tirou do armário geral da nação o monstrinho escondido dentro do travesti que queria tomar o lugar da rita lee. naquele dia em que gil(berto) (re-)encontrou a preta, a rita, o pitta, o travesti e a si, todos juntos reunidos numa pessoa só, ele também chorou, a cântaros.

ele(s) que vá(ão) se preparando, drão, que ainda temos muitas lágrimas a derramar. pois a transfiguração do casulo à borboleta não é mesmo fácil, não (dá vertigem de morte, que, quando a gente não se esconde do inevitável, logo vira magnífica canção, daquelas que pouquíssimos ousariam fazer). mas está acontecendo, o casulo está se rompendo, paratodos nós, cada qual a seu modo.

e é aí que grita a lagarta-borboleta, o rei-bipartido-novamente-nu: viva cartola, gordurinha, jackson do pandeiro, luiz gonzaga, zé keti, bob marley, roberto carlos (“não gruda”?, sei, sei…), germano mathias, gilberto gil, e ben gil, e funk-electro-carioca, e youtube, e egotrip, e os novos que (não) estavam ali, e os anos de 2001 e 2(222) e 3 e 4 e 5 e 10 e adiante. avante.

PUBLICIDADE

DEIXE UMA REPOSTA

Por favor, deixe seu comentário
Por favor, entre seu nome