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(extraído da seção “bravo”, da “carta capital” 499, 20 de junho de 2007)

O BRASÃO DA PERIFERIA

O CD começa com a narração de um locutor, em estilo radiofônico: “Temos aqui um escritor, um escritor. Não mora nos Jardins, não mora na Barra, não mora em Boa Viagem, ele mora em Capão Redondo, sabe onde é Capão Redondo? A Polícia Militar sabe”. Assim começa a coletânea 1daSul – Us Qui São Representa, coordenada pelo escritor, rapper e agitador cultural Ferréz, de Capão Redondo, periferia sul de São Paulo.

A 1daSul é a loja-marca-grife-gravadora-ideologia criada em 1999 por Ferréz. O disco 1daSul – Us Qui São Representa se constrói como um manifesto musical que reúne vários rappers ligados ao conceito elaborado pelo “escritor popular brasileiro” no encarte: “O desafio é ser a marca oficial do bairro, tendo como ponto de vista uma resposta do Capão Redondo para toda a violência que a ele é creditada, fazendo os moradores terem orgulho de onde moram e conseqüentemente lutarem para um lugar melhor, com menos violência gratuita e mais esperança”.

Não é mera retórica, como demonstra o rap aguçado praticado pelos artistas e grupos participantes, como Tref (trio que reúne moradores de três favelas diferentes, e do qual Ferréz é um dos integrantes), Negredo, o idiossincrático Prof. Pablo (na emocionante Não Me Entrego) e outros. A meta de desestigmatizar o “gueto” é marca igualmente distintiva de faixas como as dos grupos A Família, Realidade Cruel, Outraversão e Detentos do Rap.

“O dono do poder cria símbolos, estátuas, e assim consegue nos oprimir, nós estamos nos primeiros passos de também termos nossos símbolos”, resume Ferréz no texto de auto-orgulho pelo CD e pelo nobre “brasão” da 1daSul. A julgar pelo que anda afirmando o rap, já é passado o tempo da mera lamentação resignada das periferias. – POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

[obs.: talvez nem venha tanto ao caso (ou vem?), se eu pensar no tema cá deste tópico, mas a mini-resenha acima vem seguida, na “carta capital”, por outra mais mini ainda, que é a seguinte:

LULU NO PRETÉRITO DO FUTURO

Desde sempre um obcecado pelo sucesso pop com qualidade (e brasilidade), Lulu Santos inaugura uma parceria com a gravadora Som Livre, das Organizações Globo, em LongPlay, após a tentativa algo redundante do disco anterior, Letra & Música (2005).
O trunfo que utiliza para se manter na pista pop aos 54 anos é o de misturar seu código genético ao do filhote irreverente e marginalizado chamado funk carioca, como acontece na releitura de Se Não Fosse o Funk, do funkeiro MC Marcinho. Outro exemplo é Deixa Isso pra Lá, uma antepassada do rap que Jair Rodrigues celebrizou como samba impuro em 1964 e Lulu agora transtorna em… funk carioca.
De olho simultâneo em passado, presente e futuro, o autor de marcos do pop brasileiro como Tesouro da Juventude não nega o balanço das horas, como indicam o esdrúxulo samba-rap-funk carioca Boa Vida e o título LongPlay, que evoca os velhos discos de vinil, no instante mesmo em que o CD vira peça de museu ou de mobília. – PAS
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na terça-feira, 12 de junho de 2007, a posse no palco do sesc pompéia (no projeto “prata da casa”, de que venho sendo o curador, pelo período de um ano) foi do grupo de rap ca.ge.be, que durante a apresentação exprimiu palavras de ordem entusiasmadas em prol da periferia norte de são paulo.

ca.ge.be forma uma trupe afeita ao compartilhamento democrático, em elegante rodízio contínuo em cima do palco entre membros efetivos e companheiros. e a trupe tirou uma onda a certa altura, quando um deles se referiu ao gosto do grupo em ser acolhido na garbosa choperia do sesc, “lugar geralmente freqüentado pela elite”. de fato, assisti ao show me sentindo como se fosse o único não-periférico ali presente (epa!, mas e quem nasce em maringá, paraná?!, não é de periferia, não?!) – nem devia ser o único, mas certamente compúnhamos minoria esmagadora naquela noite os que moramos na famigerada “região central” da capital aplayboyzada do estado enricado e lacerdizado.

e o show do ca.ge.be, ah, o show do ca.ge.be… foi sensacional. deitaram e rolaram com a peculiaridade de serem um grupo de rap que gosta de cantar, e que sabe cantar – o público, composto por trutas da norte (e da sul, e da leste, e da oeste), acompanhava em coro os refrões que lá de cima eles próprios, “oficiais” do ca.ge.be, cantavam também em coro, afinada trupe.

a certa altura, um dos rapazes, os olhos flamejando de contentamento, comemorou com os espectadores o fato de grupo e platéia terem vindo à pompéia todos juntos, no mesmo ônibus, o mesmo busão.

crianças de todas as idades corriam felizes pelo chão que lina bardi pavimentou – manja festinha de aniversário na casa da sua tia, na casa da sua mãe?, pois então. é claro que terminaram todas subindo no palco, sem segurança que pudesse ou quisesse impedi-las de “invadir” o espaço “sagrado” dos artistas (que, aliás, também pertence a elas, crianças).

e os olhos interessados dos seguranças, do moço que fica no caixa, do moço que serve cerveja, do moço que mantém o banheiro limpo (e nessa noite manteve também a porta do banheiro entreaberta), olhos negros, todos, naquela noite estavam todos atentos e flamejantes, que eu vi.

e a rapper shirley casa verde, garota entre tantos rapazes, mandou recados ininterruptos para a platéia, inclusive sobre emancipação feminina. ela se esbalda nas partes mais melódicas dos raps do ca.ge.be (especialmente aquelas partes espetaculares que contêm samplers de samba de raiz e de música cafona brasileira de raiz). no palco, shirley atestou algo que fez meu queixo cair mais uma vez (foram tantas, nessa noite): é uma dotada, segura, excelente cantora, bem-vinda shirley.

pois o porte altivo de shirley foi a píncaros quando os manos de grupo fizeram o discurso (habitual, infelizmente) em tributo aos amigos e parentes que já morreram, quase sempre cedo demais – uma entre os vários que mencionaram era a irmã recém-falecida de shirley, que, homenagem à perte, seguiu cantando segura e divinamente.

kl jay, dj dos racionais mc’s, estava na platéia, frágil e feliz – afinal, foi ele que patrocinou, por seu selo independente equilíbrio discos, o acachapante álbum de estréia do ca.ge.be, “lado beco” (ca.ge.be, a propósito, significa cada.gênio.do.beco, do.beco, do.gueto, cada.gênio, todos.no.palco.do.sesc).

[também não deve vir muito ao caso aqui.e.agora, mas não quero nem saber: poucos dias depois do show do ca.ge.be no sesc, rumei no domingo 17 para o pavilhão da bienal, para encarar a síndrome de peixe fora d’água que a são paulo fashion week sempre parece adorar submeter aos peixes de fora de de dentro d’água que zanzam iscados por ali. é que o desfile de ronaldo fraga ia ser inspirado em nara leão, e dentro daquele desfile fernanda takai iria mostrar pela primeira vez uma releitura bastante pessoal para o imaginário de nara – e que, boa notícia!, virará o primeiro disco solo da vocalista e co-líder do pato fu, parece que ainda neste ano.

e, pronto, mais queixos caíram! sob um imaginário que nem sei, fernanda foi desfolhando o bem-me-quer, sob arranjos sensacionais (notadamente o de “trevo de quatro folhas”) de john ulhoa, seu marido e companheiro de pato fu. direto da cornucópia do imaginário tortuoso de nara, desfolharam-se amorosamente o “taí” de carmen miranda, as bossas novas dos garotos velhos de ipanema, o “diz que fui por aí” de zé keti, a “luz negra” de nelson cavaquinho, a “lindonéia” de caetano veloso e, ai…, o “debaixo dos caracóis dos seus cabelos” de roberto & erasmo carlos…

e de repente, pluft!, metade da história da moderna música popular brasileira estava lindamente (re)contada, nuns meros 20 minutos de desfile de moda(s), sob os cadeados de purpurina dos salões “muito freqüentados pela elite” (ah, esses moços “hype”, tão “centrais”), sob o guarda-chuva estético valente da (imigrante “periférica” do espírito santo) nara leão, sob a voz moça peituda da (habitante “periférica” das minas gerais) fernanda takai. momento inesquecível, de embargar a garganta, viu?]

agora, o que deixei por último sobre o show do ca.ge.be: terça 12 era dia dos namorados, e o momento-maravilha da noite, na minha opinião, foi aquele em que o grupo interpretou a bossa-rap de melodia delicada e versos afiadíssimos “relacionamento”. um dos rapazes, não lembro se o cezar sotaque ou se o andré 29 (ambos ge.ni.ais em seu rap.entismo), cantou como se fosse sob medida para a noitada os versos autocríticos de quem se diz “egoísta demais no amor, uma pedra de gelo”, de quem tem “a poesia, a dificuldade de falar de amor”. o refrão ecoou, em uníssono da platéia tão “gelada” quanto os “cantores”, tão “gelada” quanto uma “fogueira”: “quero te contar o meu segredo/ meu medo/ não deixa”. estavam (estamos) falando de amor, evidentemente. brasão da norte, da sul, da leste, da oeste…

pois não é que, 1daSul, 1daNorte, mais e mais periferias vão pouco a pouco ensaiando sair lindamente de armários de várias naturezas? e tu, truta 1doCentro, tu não pertence às periferias (inclusive as do coração)? não, né?, ãhã… te contei essa(s), conta outra(s) agora você.

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