sob o impacto do rugido de lembo, faço o contrário do que acredito que deveria estar fazendo e me dirijo ao decadentismo cafona-pseudo-chique do credicard hall, para assistir a mais um show de marisa monte.
é penoso se mover pelo mundo depois que uma inesperada autoridade decretou a chegada intempestiva da autocrítica, esse tipo de musculação da alma que o brasil havia revogado no dia em que o primeiro português cegou o primeiro índio com um espelhinho em que a imagem dele (do português) misteriosamente não se refletia.
[depois vieram os negros africanos. depois veio o pcc.]
na platéia e no palco do cartão de crédito que virou arte (virou?), o marketing cultural grita pelas mais estridentes cordas vocais. a autocrítica lateja, tateando qual seria seu lugar no espaço onde o ar está rarefeito, na cápsula do astronauta brasileiro que subiu ao éter “floating on a tin can” e voltou marciano, lunático, venusiano, alienista.
a área é vip: as primeiras fileiras de mesas (no brasil, a arte é servida em mesas, entre goles de auto-agressão anestesiada), bem longe-perto da cantora. como certamente a maioria dos que estão naquela “nobre” região “very important pípol” da platéia espe(a)cial, não paguei pelos meus ingressos. aqui somos a “nata” do convescote: os gravadores, os produtores, os publicitários, os vendedores, os assessores, os jornalistas em missão de ofício (ou nem tanto), a classe média mtv, os colegas artistas, os amigos verdadeiros da musa, os satélites, os cometas, os asteróides, os subservientes de várias procedências, todos (nós) ali da zona “privilegiada”, daquela (minha, nossa) elite branca que gasta 99% do tempo se esmerando em transformar em elegância e chiquê as imensas vulgaridade e ignorância que a consomem por dentro.
porque quem pagou por seus ingressos ou está meio penetra ali no meio (entre os flashes dos fotógrafos das revistas de celebridades e os tilintares dos garçons “quase todos pretos ou quase pretos”), ou então está bem mais lá atrás, em módicas cadeirinhas ou chic-arquibancadas, na longínqua zona do “povo” (povo? na casa kitschic com nickname de c$$r$e$d$i$t$ $c$a$r$d$? hum…).
“vip”, nas atuais circunstâncias brasileiras, é quem não paga pelo que consome. é quem penetra, explora, usurpa, esvoaça, deriva, disfarça. é o cordão dos puxa-sacos.
é possível passar(mos) por todo esse périplo anestesiados, enebriados, embriagados, entusiasmados, alucinados. é possível, mas é especialmente difícil, se estamos blindados do lado de dentro (dentro? fora?) de uma guerra civil de negros contra negros, “negros da vigilância” contra “negros do crime” (vigilância? crime?). é possível, mas é dramáticamente difícil, se estamos nocauteados pelo governador branco de direita que desafinou o (seu próprio) coro de contentes e saiu a se açoitar a si próprio com o chicotinho macio da autocrítica e do “chega, eu não agüento mais tanta lorota).
os salgadinhos alucinógenos já não descem bem pela garganta, ficam parados nalgum ponto entre o esôfago e o reto. a música irrita, o canto lindo da sereia (copyright gabriel) faz lembrar o silvo ácido das sirenes. é são paulo, é o mesmo credicard hall onde joão gilberto já denunciou a vulgaridade da “elite branca” bêbeda a rigor, “vaia de bêbedo não vale”. marisa tem memória, marisa sabe e/ou intui e/ou expressa isso tudo.
alguma coisa parece estar fora da ordem dentro da (velha) nova ordem local, como já cansou de avisar o velho compositor branco-no-preto. se vivemos a náusea da convulsão de consciências até há pouco hibernantes, não há como o show não ser um porre, uma arrastada chatice, uma ressaca. tudo que não seja sangue e osso soa postiço no dia em que a terra parou, nos dias em que as siglas pararam de colar na testa dos homens-sanduíche, das mulheres-hambúrguer, da elite branca burraldinha.
a vista turva tenta se firmar. e lá, bem no centro de tudo ao seu redor, os olhos & ouvidos açoitados pela (auto)crítica encontram a cantora, pequenina dentro do show chato, parado, incômodo para quem se se mesmeriza no chacoalhado social lá de fora, das marginais.
o show continua chato, mas a cantora…, a cantora está encantadora. a cantora é encantadora. “terrivelmente feminina”, diria o cantor preto-no-preto, mas, não, não, melhor dizer de modo mais macho & quente & gentil (já que gentileza gera gentileza): libertária, libertadora, maravilhosamente feminina – eis o melhor dela.
marisa monte, nessa noite de estréia, sobrevoa encantadora os escombros de tudo que está em ruína (& construção), simplesmente porque nesta noite ela se parece com quem nunca antes se pareceu – nós. ao longo de todo o tensíssimo show, ela se vende (ou melhor, se entrega) insegura, medrosa, assustada, nervosa, oscilante, ofegante, àquele público que é igualzinho a ela.
[e firme, precisa, concentrada, brilhante…, sim, tudo isso também, como sempre – mas não é aí que mora a novidade. o outro lado dela é que nesse dia está soando alto, altivo, enternecedor, surpreendente e tão novo como, por exemplo, o discurso neogarotinho de cláudio lembo.]
o pedestal parece ter sido aposentado, a pose está trocada por matéria viva (sangue & osso). finalmente ela se apresenta a nós, seus pares arredios, como uma garota igual a um por um de nós, simples & insegura, algo escravizada, ainda por cima vestida, hiper-realista, num frágil & forte figurino cigano.
por sobre toda a névoa, eis o melhor e o pior da menina-mulher. não é impossível, ela não é difícil de ler. o mundo é portátil (& cheio de portinholas) para quem não tem nada a esconder. [a guerra civil entre a sambista eletrônica e a tribalista orgânica a penaliza, mas é fiel e leal representação de um tempo, não só no finito particular da artista, como no mundão ao redor – ela nos abre seus braços medrosos, e a gente tenta fazer um país.]
cindida em duas, ela se perde inteirinha (e abre um formoso sorrisão) ao tentar entrar no samba gaúcho descomunal de adriana calcanhotto, a mais completa tradução (feita por mais alguém) da relação entre a (des)apaixonada marisa monte e seu (des)apaixonado público (não) pagão: “só porque disse que não me quer/ não quer dizer que não vai querer/ (…) vai saber…”
[a gente quer, marisa, se você quiser também. e vice-versa. cara, a gente se repara – se ninguém colocar espinho e proteção anticópia no caminho para bloquear a dor.]
“faça sua parte/ eu sou daqui, eu não sou de marte”, façamos nossa parte: aplaudimos, bajulamos e vamos embora, todos nós, de volta à chata vidinha “normal”, esta na qual seguiremos “escandalizados” com a audácia do pcc e “indignados” com a desfaçatez dos mensalões e mensalinhos na classe política. anestesiados, amanheceremos de pele lisa e hidratada, esquecidos de que formamos no time sadomasoquista de elite branca, pequena burguesia, primeiro-comando-do-chiquê, uma horda de jabazeiros subservientes mendigando nas bordas da “high society”, da cultura do marketing, do marketing da cultura.
[que fique dito com todas as letras, porque autocrítica é uma delícia: esse tipo de auto-indulgência que praticamos para nos sentirmos ilusoriamente sabidos e potentes (malandros?) se chama, em quatro letrinhas, jabá. é prima em primeiro grau de caixa 2, mensalão, mesadão, propina, tráfico, pcc. se mais bem trabalhada, sem tanta culpa ou juízo moral, pode aos poucos ir se convertendo em mpb, afago, presente, mumunha, mimo, carinho, jujuba (frumelo, gominha, mariola), amor.]
range a dobradura.
ah, maldita autocrítica…, será mesmo que seguiremos nessa tamanha fantasmagoria antiga de zumbis de mármore, velha roupa descolorida? ou já estaria irremediavelmente quebrado (também pelo nervosismo da linda índia cigana branca e colorida no topo do palco) o espelhinho surrado de 506 anos de história canibal?
“vem, cara, me repara”, ela pede. nós a reparamos? ela nos repara? será que o pacto perverso de invisibilidades já é beijo partido? será como diria-diz-dirá adriana calcanhotto (e como dirá-diz-disse cláudio lembo), que “tudo o que se sabe sobre o amor/ é que ele gosta muito de mudar/ e pode aparecer onde ninguém ousaria supor”? [eu acredito que sim.]
será que a moça fendida em duas metades está em processo de reunificação? ou segue o seco do “não” ao desarmamento?
segue o seco do “não” ao desarmamento? ou será que, provocados por ela & provocando-a, nós estamos (estarei eu?) buscando sanar a guerra civil-umbilical nossa de cada dia?