Aí de repente me ocorreu o seguinte: nossa, é tanta celeuma por causa de Michel Teló, e se eu fosse dar uma ouvida nos discos dele para tentar investigar os porquês de tanta comoção? Até esse momento, falar sobre o carinha eu sabia, mas do repertório dele só conhecia, no duro, “Ai Se Eu Te Pego” e “Fugidinha”.
E se eu procurasse compreender por que esse moço está falando ao coração de tanta gente, antes de me afobar para definir com a maior rapidez possível (chamo isso de “afobismo”) se “amo” ou “odeio” o Teló? E se eu ouvisse só por curiosidade, sem fazer de conta que estou dentro de um filme de bangue-bangue em que todo mundo é ou o caubói, ou o bandido, ou a donzela, ou o índio?
Fui procurar o que havia para baixar na internet (não repita isso em casa, pois a indústria fonográfica diz que é crime e você pode ser preso. Encontrei três discos, “Balada Sertaneja” (2009), “Michel Teló ao Vivo” (2010) e “Michel na Balada” (2011). Ao contrário do que eu pensei quando ele virou a bola midiática da vez, Michel não é efêmero nem “artista-de-um-sucesso-só”. Antes dos três discos solo, tinha passado 12 anos no Grupo Tradição, de 1997 a 2009. Primeira conclusão: goste eu ou não, há uma solidez em seu trabalho.
Comecei pelo CD mais recente. Poupo qualquer comentário sobre “Ai Se Eu Te Pego”, que ninguém aguenta mais. A segunda música se chama “Humilde Residência”. Pensei comigo: é um lugar esquisito a ser habitado por um cara que, dizem, ganhou US$ 18 milhões no ano passado. A faixa me fez entender por que Michel chama o som que faz de “pancadão sertanejo”. É urbana, animada, mais para samba ou forró que para funk pancadão, e ainda assim rotulável como “sertaneja”. Fala de telefone, carro, celular, cursinho, faculdade – “sertanejo universitário” é outro apelido algo depreciativo colado a essa onda, e não deixa de ser emblemático que se use o termo “universitário” para chochar alguém em 2012.
“Meu carro tá quebrado, eu não tô podendo gastar.” “Eu tô ligado que você sempre me deu uma moral/ até dizia que me amava/ agora tá mudada, se formou na faculdade/ no meu cursinho não cheguei nem à metade.” “Tô louco pra te pegar/ vou te esperar na minha humilde residência/ pra gente fazer amor/ mas eu te peço só um pouquinho de paciência/ a cama tá quebrada e não tem cobertor.” Nossa, Teló, assim você me mata, é muito assunto para uma música só.
É óbvio que não trata literalmente da vida do artista, que não deve andar sentindo falta de cobertor. Mas trata de algo que muitos, muitos, muitos brasileiros de agora entendem de cor e salteado: ascensão social. O personagem dessa música pode até ser “caipria”, mas não é mais o sertanejo sofrido de Luiz Gonzaga. Tem acesso à cidade, à educação (está na metade do cursinho), às alegrias bobas da vida. Não é como, digamos, Leandro & Leonardo, sempre às voltas com os amores não correspondidos (“pensa em mim/ chore por mim/ liga pra mim/ não, não liga pra ele”). “Tô louco pra te pegar”, o narrador dispara à moça (formada na faculdade) que deseja.
Além de misturar ritmos musicais varidos (a sanfona de “Humilde Residência” é vibrante), Michel promove um crossover de classes sociais em letras como essa. O título pode conter a palavra “humilde”, mas de humilde essa nova postura não tem nada: o cara que canta isso está é muito seguro do que quer e pode conquistar.
Depois de “Humilde Residência”, me fixei em “Vamo Mexê”, que lembra de uma só vez axé, forró, tecnobrega, vanerão, música caipira, MPB, pagode etc. etc. etc. O narrador, suavemente cafajeste, está a fim de balada (o que, por sinal, se repete insistentemente em grande parte de suas canções). Começa a ligar para as meninas que tem listadas em sua agenda, uma a uma.
“A Carolzinha do segundo ano/ diz que tá tarde, tá estudando/ a Daniela tá namorando/ e a Fernanda, ih, tá cobrando”, vários temas: responsabilidade, estudo, trabalho, falta de preconceito (o narrador menciona, sem juízo de valor, a namoradinha que virou prostituta).
“Mandei mensagem pra Gabriela/ mas ela gosta da Isabela/ fazer o que se ela é moderna?/ se bem que com as duas não seria má ideia”: comportamento, sexualidade livre, sexo a três. Uma das meninas é ou está homossexual, e o narrador elege chamá-la de “moderna” por isso. Nada demais, mas quem já viu música sertaneja (ou outra música) falando de tema controverso nesses termos? Com tanto homofóbico tacando lâmpada na cara de gente por aí, Michel Teló é que é o caipira? Hummmm.
Outro trecho de “Vamo Mexê” é emblemático, e também se repete em muitas canções do artista: “Cachaça aqui não falta/ vem ni mim, mulherada”. Michel tem panca de bom moço, louva Deus em pelo menos uma música por CD, não fala de drogas ilícitas. Mas o álcool é evocado em várias canções, sempre em tom de apologia. “Tudo que eu quero ouvir:/ eu te amo e open bar”, insiste incansavelmente “Eu Te Amo e Open Bar”, melô do maucirinho e da patricinha “modernos”, em ritmo de sedutor tango eletrônico.
Ou seja. Melodias gostosas, exaltação à liberdade, ao sexo, a namorico, a diversão, a drogas “leves”: não estariam aqui várias das razões do apelo das canções de letras supostamente “vazias” do cantor?
E “Desce do Muro”? “Se não vai me prender então me libera”, “tá com medo de amar, de se apaixonar e depois eu te dar um pé?/ fica na boa, eu não sou assim/ eu não trato mal quem gosta de mim”, canta o bom moço baladeiro, Roberto Carlos dos anos 2010. De novo, goste eu ou não, há aí uma postura bem diferente da que me acostumei a ouvir até hoje. A retórica de perder o medo (sem contar o provocativo “descer do muro”) é a isca que Teló finca frequentemente em seu anzol pop para fisgar uma multidão de gente que, como ele, tem progredido e está afoita por um pouquinho mais de liberdade. Tem funcionado.
Até a hora de escrever esse texto, ouvi uma, duas, três, quatro, várias vezes cada CD do Teló (e um do Tradição, “Micareta Sertaneja”, de 2007). Michel é acompanhado por músicos eficientes. A sanfona é luminosa. Há uma solidez também na parte musical.
Na segunda audição de mais ou menos um terço das músicas, eu já conseguia assoviar junto, na terceira podia cantar o refrão. Na quarta audição, eu já estava realmente gostando. Há um chiclete poderoso aí, queira ou não este velho e cansado, er, crítico musical. Acho que esse frisson vai passar, ou talvez não passe. Mas aí fiquei me perguntando: por que eu deveria ter medo ou nojo de Michel Teló, ou de qualquer outra música popular brasileira? Música pop não foi feita para a gente gostar, dançar, cantar junto etc.? E, se eu não gostar, não é só mudar o canal?
Parei de ouvir e fui me olhar no espelho. Não, não estava faltando nem um pedaço. Nem vi nascendo uma tromba no meu nariz, orelhas de Pinóquio transformado em burrico ou rabo de capeta. Sobrevivi.
* Texto publicado originalmente no blog Ultrapop, do Yahoo! Brasil
Siga o FAROFAFÁ no Twitter
Conheça nossa página no Facebook
Gostei do texto!! E, realmente, se é pra ser crítico que seja com conhecimento de causa. Críticas são feitas a tudo e a todos desde que o mundo é mundo. Como dizem por aí: “Nem Cristo a gradou a todo.”
Gostei da sua iniciativa em querer conhecer, em interessar-se do porque. A melhor demonstração de inteligencia ao meu ver.
Eu não sabia da história de Michel Teló, conhecia os tais refrões e só.
Agora saberei vê-lo e ouvi-lo com menos preconceito. Parabéns!
Obrigado, Marina! 🙂
Predo, passei o finalzinho e o comecinho desse ano com essa música na cabeça. Nossa! Eu curti porque não ouvia muito e ela “pega” na gente, de uma forma gostosa. Soube que a música é de uma pernambucana.
Fiquei com a impressão de voce ter comparado caipira com homofóbico. Tá cheio de caipira gay, bobo.
Outra coisa: desde quando o senhor é velho? Só aceito o cansado. Descansai-vos!
Oiê, Joelma!!!!! Num cheguei a comparar caipira com homofóbico, não, só quis dizer que tem muita gente homofóbica nesse meio (como, de resto, tem em todos os meios de todos os lugares do planeta terra)… 🙂
Quando é que cê vai escrever sobre circo & música brasileira no FAROFAFÁ, hein hein hein?!!! 😉
Nao moro no Brasil ja faz um tempo, entao so ouvi a musica 2 ou 3 vezes pelo facebook de amigos, e fiquei com ela na cabeca. A batida da musica e muito gostosa,nao tem letra, mas tem tantas musicas do U2 por exemplo que nao fala nada com nada.E os exemplos assim citados por vc em relacao as letras. Adorei o que vc escreveu. Pensei muito sobre o meu preconceito musical.
Obrigado, Thati, que bom que você gostou! Acho exatamente o mesmo que você falou sobre o U2 e mais um bando de bandas que o pessoal da colônia adora adorar…
Bem interessante a forma como foi estudado o cantor para se escrever esse texto…nao tenho cd algum de Michel Teló so fico ouvindo em todas as midias, e gostei muito da forma que o autor descreveu cada musica, instrumentos etc…
Obrigado, Katiucha!!!