Um dia de 2008 eu estava em Olinda para um festival de música quando vi em um poste um lambe-lambe que anunciava um show de Lindomar Castilho em um inferninho da região. Desde a minha adolescência que eu não ouvia mais falar em Lindomar Castilho, a não ser esporadicamente. O maior hit da carreira do cantor, Você é Doida Demais, tinha entrado na trilha da série Os Normais (e, antes, na trilha sonora do filme Domésticas, dirigido por Fernando Meirelles e Nando Olival), o que reacendeu a curiosidade. Tive vontade de ir ao show, mas pensei melhor e achei que tinha algo de mórbido naquele impulso. Desisti.

Como disse neste sábado, 20, a filha de Lindomar, Lili de Grammont, o cantor já tinha morrido em vida 44 anos atrás. Após assassinar a mulher, a cantora e compositora Eliane de Grammont, em 1981, e ser condenado a 12 anos pelo crime em 1984, ele tentou algumas retomadas, mas a carreira definhou progressivamente – Castilho inaugurou o cancelamento muito antes de esse nome existir. Morreu apropriadamente esquecido em Goiânia, Estado onde nasceu, de infecção pulmonar, aos 85 anos (ele sofria do Mal de Parkinson). 

Cão danado da MPB, Lindomar Castilho tinha integrado – com Waldick Soriano, Odair José, José Augusto, Amado Batista, Reginaldo Rossi e Agnaldo Timóteo – a nata do “brega” brasileiro dos anos 1970. Seu auge se deu por volta de 1975, quando já tinha vendido cerca de um milhão de discos, algo raramente equiparado por um artista da música naquela época. Com Eu Vou Rifar Meu Coração, de 1973, lançou as bases líricas de um gênero com sua batida mínima, quase musicalmente inimputável, metais de mariachi, um protótipo da sofrência do futuro. Você é Doida Demais foi lançada em 1974, reafirmando a estrela do novo astro da vida suburbana. Prestando atenção ao hit hoje, com mais cuidado, dá para ver que já embute uma moral de “a mulher é que é doida”:

Recordei que no passado

Você esteve ao meu lado

E roubou a minha paz

Hoje me serve de exemplo

Vou fugir enquanto é tempo

Você é doida demais

Fisicamente, o goiano era um galã daltontrevisiano, cavanhaque e cabelo escovado na nuca, cravo vermelho na lapela, sorriso de desalojado sentimental. No seu conjunto, as canções de Lindomar Castilho estão polvilhadas da ética que fulminou sua carreira e sua vida – muitas de suas músicas são de derramamento romântico, o que era natural no gênero, mas também carregam uma centelha de mágoa, fúria, desvario sombrio e persecutório. Essa característica era possibilitada, ainda naquele contexto, pela figura jurídica da “violenta emoção”, que formou muitas consciências masculinas e, nos tribunais, alcovitou muitos canalhas.

Nosso amor não vai morrer

Ele não pode ter fim

E nem precisa me dizer que vai embora

Você não fica uma hora

Vivendo longe de mim

Graças a Deus

Tudo vai mudar

Graças a Deus

Que o divórcio vai chegar

O dia que chegar você vai ver

Tudo na vida vai mudar

Faça alguma coisa por mim

Estou sofrendo

Faça alguma coisa por mim

Vem depressa que estou morrendo

Entre as melhores canções de Lindomar naquela fase pré-homicida, como Feiticeira, a atmosfera de extrema-unção amorosa abre espaço para uma visão brejeira, quase ingênua dos relacionamentos.   

Será feitiço, meu Deus?

Eu não duvido não

Você é uma bruxinha

E com sua magia

Prendeu meu coração

Se for feitiço seu

Tomara que não tenha fim

Não acredite

Meu grande amor, esse cara está mentindo

É só inveja o que ele está sentindo

Porque na vida nunca pôde amar ninguém

Lindomar era um brasileiro raiz. Vinha de uma encruzilhada de tradições, de misturas, o que moldou sua música. Por isso, não é surpresa quando achamos uma moda caipira, Oi Sô, ali perdida no meio dos boleros desabridos, destoando do resto da produção:

Mas que trem bão

Quando o amor acontece

A alegria aparece no coração.

Lindomar e Eliane de Grammont viveram pouco tempo juntos. Ele estava usufruindo do auge quando a conheceu, em 1978, e exigiu que ela parasse de cantar para viver consigo. Tolamente, ela aceitou e casaram. Tiveram uma filha um ano depois, mas o comportamento do cantor evoluía para a violência doméstica, brigas e delírios de traição.

Em 30 de março de 1981, já separados, ele, inconformado, entrou no local onde ela fazia uma temporada acompanhada do namorado, o violonista Carlos Randall, o Café Belle Époque, na Rua Mourato Coelho, em Pinheiros. Um sobrado pequeno, com toldos nas janelas. Segundo contam, ela cantava João e Maria, de Chico Buarque, quando Lindomar a alvejou com cinco tiros, sendo preso em seguida. Em 1985, foi criada em São Paulo a primeira delegacia da mulher, que foi batizada com o nome de Eliane de Grammont.

Em 1989, Lindomar Castilho lançou um LP que já o trazia arrastando asa para o boom daquele momento, a música sertaneja, com algumas canções típicas como Você Invadiu Meu Coração. Mas havia ali ao menos um insight de sucesso: Entre Tapas e Beijos, composição de Nilson Lamas e Antonio Bueno. Acontece, porém, que outros dois goianos também ouviram a composição, e resolveram gravar. Com Leandro e Leonardo, Entre Tapas e Beijos tornou-se um clássico instantâneo, sucesso imparável, e a versão de Lindomar ficou encoberta. 

Lindomar Castilho não foi incluído na trilha sonora de Os Normais e de Domésticas por acaso. Foi uma decisão corajosa daquelas produções, porque não é possível fingir que ele não existiu, fazer expurgo das barbaridades do passado. As canções do cantor goiano imiscuem-se de forma decisiva na memória e no imaginário de uma parte da população brasileira. Não há como fazer um filme (ou um livro, ou uma série, ou uma exposição) que represente épocas vividas de forma fidedigna sem recorrer à sua música. Mas também é absolutamente natural que ansiemos pela desaparição definitiva dele e daquilo que ele ainda representa. 

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