Marcelo Jeneci se lança ao forró na ponte Pernambuco-SP

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No vibrante Caravana Sairé, seu quarto álbum de estúdio, o cantor, compositor, sanfoneiro, tecladista, pianista e violonista paulistano Marcelo Jeneci deixa de lado pela primeira vez o repertório autoral, em prol de uma pequena coleção de forrós nordestinos de sucesso no Brasil dos anos 1940 aos 1990. Revelado como sanfoneiro pop em shows de artistas como Chico César, Vanessa da Mata e Arnaldo Antunes, ele reata assim laços com os dons que exibia à sanfona antes da estreia solo e dos discos Feito pra Acabar (2010), De Graça (2013) e Guaia (2019), mas também com a origem familiar de avós e pais pernambucanos que migraram para São Paulo e se estabeleceram na região de Guaianases, na periferia leste da capital.

No princípio, enquanto Marcelo compunha com Vanessa da Mata (“Amado“, 2007) e Arnaldo Antunes (“Longe“, 2009) e desenvolvia trabalhos na linha pop-MPB com Zélia Duncan, Luiz Tatit, Marisa Monte e Erasmo Carlos, seu pai, o técnico de eletrônica pernambucano Manoel Jeneci, preparava programações Midi para as sanfonas de artistas como Dominguinhos, Oswaldinho do Arcordeon e Zezé di Camargo & Luciano.

Forrós e não-forrós de Marcelo Jeneci

Na consolidação como artista de frente, Marcelo cunhou baladas pop ensolaradas (e frequentemente aquosas) como “Felicidade“, “Café com Leite de Rosas“, “Dar-Te-ei” (todas de 2010), “Temporal” (2013), “Dia a Dia, Lado a Lado” (2015, com Tulipa Ruiz) e “Aí Sim” (2019) ou pungentes como a primordial “A Chuva“, “Quarto de Dormir” (2010, mas lançada três anos antes por Arnaldo Antunes), “Tempestade Emocional” (2010), “Feito pra Acabar” (2010) e “Redenção” (2019). Nesse intervalo, a sanfona permaneceu num plano mais espiritual que corpóreo, e retoma protagonismo agora no inventário particular batizado de Caravana Sairé em homenagem à terra natal do pai Manoel.

“Olha pro Céu”, de Gonzagão, se mistura a “Felicidade”, de Jeneci e Chico César

Como seria de esperar, o mestre pernambucano (de Exu) Luiz Gonzaga tem primazia na escolha de repertório, em regravações dos clássicos “Baião” (1949) enxertado com trechos de “Baião da Penha” (1951), de “Vem Morena” (1950) e de “Olha pro Céu” (1951), que incorpora harmoniosamente uma versão ainda mais luminosa de “Felicidade”, parceria de Jeneci com o paraibano de Catolé do Rocha Chico César.

Duas regravações contemplam o Trio Nordestino, formado em Salvador, na Bahia, na década de 1950. São “Cadeira de Balanço” (1976), assinada pelo baiano de Entre Rios Lindolfo Barbosa (o Lindu do Trio Nordestino) com o popularíssimo Assisão, forrozeiro pernambucano de Serra Talhada, e “Amor Não Faz Mal a Ninguém“, do pernambucano de Caruaru Onildo Almeida, lançado pelo trio em 1980.

“Sou o Estopim”, de Marinês para Sonia Braga para Jeneci

O forró malemolente “Sou o Estopim”, do paraibano de Queimadas Antônio Barros, foi lançado originalmente pela pernambucana de São Vicente Férrer Marinês, em 1976, e ganhou a telinha da Rede Globo no mesmo ano, na trilha sonora da novela Saramandaia, na voz da atriz (paranaense de Maringá) Sonia Braga, que interpretava na trama de realismo fantástico de Dias Gomes uma personagem fogosa cuja excitação sexual provocava incêndios e queimaduras literais em quem encostasse em sua pele. Flamejante, “Sou o Estopim” abre o álbum de Jeneci, e leitura mais para Marinês e Sua Gente que para Sonia Braga.

Em dois momentos, Jeneci contempla o forró dos anos 1980, período em que o gênero se espremia entre o pop-rock numa ponta e pela axé music na outra. O chamego “Ai Que Saudade de Ocê” (1982) recupera o imaginário do paraibano de Taperoá Vital Farias, que viu sua composição se nacionalizar em 1983, na interpretação forró-MPB da paraibana de Conceição Elba Ramalho. “Devagar”, do pernambucano de Caruaru Petrúcio Amorim, fez sucesso em 1983 na voz do pernambucano de Olinda Jorge de Altinho. “Ai Que Saudade de Ocê” encerra Caravana Sairé com ternura, em versão mais para Vital Farias que para Elba Ramalho.

Dos anos 1990 é “Lembrança de um Beijo”, do pernambucano de Goiana Accioly Neto, que morreria em 2000, aos 50 anos, deixando poucos sucessos, o maior deles o forró “Espumas ao Vento”, lançado em 1997 pelo cearense de Orós Fagner e transformado em sucesso perene por repetidas regravações. “O cabra pode ser valente e chorar/ ter meio mundo de dinheiro e chorar/ ser forte que nem sertanejo e chorar/ só na lembrança de um beijo, chorar”, diz a letra de “Lembrança de um Beijo”, gravado em 1994 pelo paraibano de Monteiro Flávio José, mas amplificado no mesmo ano a partir da versão de Fagner, compondo assim a linha nobre de canções “um homem também chora” do intérprete cearense. A versão de Jeneci persegue a candura, bem mais que nas gravações de Flávio e de Fagner.

“Oxente”, forró amoroso de ponte entre o Jeneci de Guaianases e os Jeneci de Sairé

A faixa mais recente de Caravana Sairé é a alegre “Oxente”, outra parceria de Jeneci e Chico César, lançada primeiro por Elba Ramalho, em 2018, e no ano seguinte pelo autor em seu terceiro álbum, Guaia, que investigava em composições autorais as origens nordestino-paulistanas de Jeneci em Guaianases, bairro periférico da zona leste paulistana. Em nova versão, “Oxente” faz a ponte entre o mundo original de Marcelo, em Guaianases, e o mundo original dos Jeneci que migraram de Sairé, o primeiro Manoel, que veio ser pedreiro em São Paulo, e o segundo Manoel, que migrou com o pai aos 16 anos e se tornou técnico eletrônico-musical. O tom agreste da versão de 2019 se liquefaz no pandeiro, na sanfona e nos tons amorosos da regravação de agora.

O disco nordestino de Jeneci, de forrós, agita a existência de um artista que cresceu entre sanfonas, quis se desviar delas, tornou-se sanfoneiro acompanhante de artistas de MPB e revelou-se mais tarde um compositor de música popular brasileira sem muito apego a fronteiras ou divisas, capaz de transitar com desenvoltura entre os xodós do pernambucano de Garanhuns Dominguinhos, a aridez romântica do capixaba de Cachoeiro do Itapemirim Roberto Carlos e o planeta água do paulistano Guilherme Arantes. Caravana Sairé recoloca Marcelo Jeneci em casa, em várias e muitas casas.

(Leia mais sobre Marcelo Jeneci aqui.)

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