Do outro lado da guerra cultural emprendida pela atual extrema direita brasileira, existe em São Paulo um lugar chamado Morro do Querosene, onde nasceu e vive um homem chamado João Nascimento, que na quarta-feira, 23, promoverá uma exibição única, num cinema da avenida Paulista, de seu filme Tambores da Diáspora, dirigido às próprias custas S/A (como diria Itamar Assumpção) e produzido pela Kalakuta Filmes. Tudo que a guerra cultural brasileira deplora está nesse filme: batuque, tambores, atabaques, berimbau, capoeira, percussionistas, artistas preto(a)s, diversidade religiosa e sexual, orixás, reverência da cultura de matriz africana em lugar da europeia, nordestinidade, Cuba, empoderamento de indivíduos quase sempre marginalizados…
A mitologia do Morro do Querosene se ergue soberana, embora o local seja mencionado explicitamente poucas vezes no documentário. Área arborizada na região do Butantã, a antes rural Vila Pirajussara começou a se urbanizar nos anos 1940 e, pela falta de luz elétrica crônica e pelo uso cotidiano de lampiões, recebeu o apelido popular de Morro do Querosene. Migrantes nordestinos, com concentração de maranhenses, trouxeram a cultura do bumba meu boi, que notabilizou o local para além dos próprios limites, sob liderança do músico e capoeirista maranhense Tião Carvalho (conhecido na MPB porque autor da bela canção “Nós“, gravada em 1988 pela paulistana Ná Ozzetti e popularizada na década de 1990 pela carioca-brasiliense Cássia Eller). Os tambores roncaram e nunca deixam de roncar num morro que luta há anos pela oficialização do Parque da Fonte do Peabiru, formado por resquícios de mata atlântica e nascentes de água e considerado parte do mitológico Caminho do Peabiru, que em épocas pré-colombianas foi trilhado por incas, tupis, guaranis e outros povos desde a Cordilheira dos Andes até o Oceano Atlântico.
Filho do Querosene, João Nascimento assimilou os saberes afro-indígenas que povoam seu quintal como multiartista de música, teatro, dança, cinema etc. Como produtor musical, trabalhou com o grupo de rap Z’África Brasil, de paulistanos filhos de nordestinos, e nos seminais discos solo de Gaspar Z’África, Rapsicordélico (2014) e Hip-Hop Caboclo (2021). Na confluência de teatro, dança, candomblé, música, hip-hop etc., produziu o espetáculo e álbum Terreiro Urbano (2017), com sua companhia Treme Terra. Em cinema, assinou com o grupo transdisciplinar antirracista Frente 3 de Fevereiro o média-metragem Zumbi Somos Nós (2007) e dirigiu, roteirizou e assinou a trilha sonora do longa Danças Negras (2020). Nas gravações do CD Afro2 – Laboratório de Ritmos Afro-brasileiros (2012), com o percussionista Pixú Flores, foram registradas as imagens que culminam, dez anos depois, em Tambores da Diáspora.
Em cena são entrevistados os percussionistas Beth Belli (do bloco afro Ilú Obá de Min), Simone Sou, Dinho Gonçalves, Silvanny Sivuca e o cubano Pedro Bandera, o músico e produtor Paulo Dias (fundador da Associação Cultural Cachuera), os ogãs de candomblé Hélio Nogueira (também luthier de atabaques) e Fernando Alabê (fundador do bloco afro Ilu Inã) e o coreógrafo Enoque Santos, entre outros. Longe de constituírem depoimentos soltos, as falas dos entrevistados vão colaborando para tecer uma história musical, social e racial dos tambores, de África ao Brasil. O pandeirista Marcos Suzano refere-se à linguagem dos tambores como um esperanto e demonstra a lógica do candomblé nos toques do pandeiro. O exímio Dinho Nascimento, baiano radicado no Morro do Querosene, toca seu berimbau e relaciona passado e presente: “A música eletrônica é tradução da música orgânica tribal que foi para o estúdio”.
A dimensão mística/religiosa é contemplada em vários momentos, como quando Hélio Nogueira diz que “quando a gente quer falar com o pessoal do lado de lá tem que ser através dele (do tambor)”. Beth Belli enfatiza a dimensão não verbal da religiosidade: “Ninguém fica falando de candomblé, a conversa é no tambor”. Enoque Santos fala sobre os sotaques do corpo, a troca de energia positiva entre tambor e pessoa, as trocas xamânicas. Paulo Dias enfatiza o jogo de corpo, o “pé da dança” como parte fundamental “dessa trama”. O dançarino Aluá Nascimento introduz o corpo como instrumento de percussão. Luthier e músicos desvendam as fusões orgânicas que constituem os atabaques, couro de bicho, madeira, o ferro de Ogum, o encontro entre a pele do do tambor e a pele humana. Tambor é ritmo, rito e religiosidade, resume o cubano Pedro Bandera.
Dinho Nascimento relaciona os tipos de berimbaus com as ritualidades dos atabaques do candomblé, chamados rum (o grave), rumpi (o médio) e o agudo (lé). Marcos Suzano lembra que o rap é percussão, que o baixo do reggae e o baixo do funk original fazem a vez do atabaque rum e que Peter Gabriel levou um sampler Synclavier à África para samplear os tambores. Fernando Alabê também evoca James Brown, que “dizia que tudo na música dele era tambor”. O próprio João Nascimento acrescenta que a picape dos DJs é um tambor.
Silvanny Sivuca, que toca percussão e bateria com Emicida, faz uma demonstração, inclusive em ritmo de samba, dos sons extraídos da bateria eletrônica, o rito viajando para o cercado das quatro paredes. “O funk (carioca) mantém nossa cultura viva quando toca atabaque numa coisa eletrônica”, ela ressalta. Dinho Gonçalves cita a amplidão quase infinita dos instrumentos de percussão: caixa de fósforo, chave, dentadura e tampa de panela podem fazer música. “É a maior família de instrumentos, infinita”.
Tambores da Diáspora se adensa quando Hélio Nogueira relaciona a histórica perseguição policial ao batuque (supostamente por representar ato de “vagabundagem”) com o som que brota dos terreiros de candomblé como símbolo de resistência. Fernando Alabê verbaliza que, sendo os tambores “coisa de preto”, o racismo institucionalizado permite que a perseguição se prorrogue até os dias atuais, na forma, por exemplo, de entraves burocráticos aos ensaios (e blocos) de rua. “Renegar isso é renegar a identidade de um país”, resume Dinho Gonçalves.
Num filme repleto de lindas metáforas, Beth Belli celebra o dom empoderador dos tambores, que juntam pessoas e nos quais “uma pessoa só não vale”: “É quase um fogo”. Paulo Dias lista candomblés, jongos, tambores de crioula, batuques de umbigada, sambas de bumbo e o caruru do Morro do Querosene como “fatores de coesão social”. Antes que o filme termine, Hélio Nogueira relaciona a percussão à cura e ata o laço dos laços: “O tambor é tudo que acontece no mundo”. Não é à toa que a guerra cultural detesta os sons múltiplos dos tambores.
Tambores da Diáspora. De João Nascimento. Brasil, 75 min. Exibição única no dia 23 de Março, às 19:30, no Cine Marquise (Av. Paulista, 2.073, São Paulo). Kalakuta Filmes.