É pouco provável que haja um documento tão importante para marcar as reflexões sobre a Semana de Arte Moderna de 1922 do que as próprias reflexões que foram difundidas durante aquela semana, há um século. E esse conjunto de ideias (filosóficas, estéticas, visuais, poéticas, musicais, sociais, sonoras) está pela primeira vez inteiramente disponível ao público dos dias de hoje em uma única caixa, editada pelo Selo Sesc, contendo as músicas e parte dos textos apresentados nos três dias do já lendário festival no Teatro Municipal de São Paulo.
Idealizado por Claudia Toni, Flávia Camargo Toni e Camila Fresca, com direção musical do maestro e violinista Cláudio Cruz, o projeto Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna se torna manuseável essa semana com o lançamento de um box com um livreto e 4 CDs. A caixa contém, pela primeira vez na história, a íntegra das músicas tocadas durante a Semana de Arte Moderna de 1922, além de uma seleção de poemas, conferências (entre elas, a famosa abertura do diplomata Graça Aranha, A emoção estética na arte moderna, um míssil estético de ressonância secular) e até trechos do romance Os Condenados, de Oswald.
O trabalho de pesquisa tem seu principal foco na sequência de acontecimentos sonoros ocorridos nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, dentro da grande sala do Theatro Municipal de São Paulo. “Foram de Villa-Lobos a quase totalidade das obras executadas na Semana de Arte Moderna. São peças de câmara para diferentes formações: piano solo, canto e piano, violino e piano, violoncelo e piano, trio com piano e quarteto de cordas. Há, ainda, duas formações que fogem do padrão: um quarteto com flauta, sax alto, harpa e celesta; e um octeto com três violinos, violoncelo, contrabaixo, flauta, clarino e piano. Dos demais autores há apenas peças para piano solo”, contou a jornalista Camila Fresca, especializada em música erudita e uma das idealizadoras e organizadoras do megaprojeto.
As organizadoras não evitam o debate sobre a presumível “pouca modernidade” das obras de Villa apresentadas na semana, ainda muito ligadas à estética francesa, mas atribuem isso à necessidade de o maestro manter-se conectado ao ambiente musical oficial da época para manter sua própria subsistência. Os três primeiros discos trazem as execuções sonoras daquele repertório, que são refeitas hoje por músicos como o violoncelista Antonio Meneses, o pianista Cristian Budu, o saxofonista Douglas Braga, a flautista Claudia Nascimento, a cantora Monica Salmaso, o Quarteto Carlos Gomes, a harpista russa Liuba Klevtsova, o violoncelista Raiff Dantas, o pianista Ricardo Ballestero, entre outros notáveis.
Além dos 4 CDs, o livreto que norteia a caixa traz trechos de conferências e poemas lidos durante e a semana e que não obtiveram ampla divulgação. Esses textos, tanto o de Graça Aranha quanto o seminal Arte Moderna, de Menotti Del Picchia, são recitados pelo ator e pesquisador Antonio Salvador. Já os poemas, em separado, no último dos quatro CDs, trazem as inovações poéticas preconizadas por Sérgio Milliet, Luís Aranha e Mário de Andrade.
Entre os poemas, impressiona o visionarismo de Sergio Milliet (o admirável tradutor da Viagem Pitoresca de Rugendas) em Olho de Boi (“senegalês com faca vermelha entre os dentes”), uma saraivada de flashes e visões realizadas do futuro: “Homem-sanduíche dos arranha-céus iluminados/Olhares loucos sobre mundo simultâneo/klaxons roucos dos temperamentos modernos/eis que chega o homem com asas de aço/o homem-máquina/o homem-sanduíche/Klaxons roucos dos temperamentos modernos/e a vida embaixo é fervilhante/Entre os grandes expressos internacionais/os automóveis/os metrôs/A VIDA A VIDA A VIDA”. Uma pulsão de Ginsberg ou Piva, um tipo de fagulha anterior à urbanidade veloz dos beatniks.
“Localizar na história da cultura brasileira que Emiliano Di Cavalcanti, Anita Malfatti, Oswald de Andrade, Graça Aranha, Mário de Andrade, Heitor Villa‑Lobos, Paulo Prado ou Menotti del Picchia participaram das ‘três festas de arte’ de 1922, como as designou o autor da Pauliceia Desvairada, hoje é lugar-comum para quem revisita as linhas mestras do modernismo. Mas reunir os estudos elaborados ao longo de 100 anos para um balanço crítico ou, no outro extremo das análises, para finalidades didáticas, ainda não é fácil”, afirmou Claudia Toni, uma das coordenadoras da pesquisa.
Todo o material já foi disponibilizado, gratuitamente, em dezembro passado, no link https://sesc.digital/colecao/todasemana e já está nas principais plataformas de streaming (para ouvir, acesse o link Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna (ffm.to). Esta versão física está à venda nas Lojas Sesc, presentes nas unidades da capital paulista, interior e litoral, e também na Loja Sesc virtual (preço de 100 reais).
“Ao realizar o Box Semana de 22, concebido e organizado por Flávia Camargo Toni, Camila Fresca e Claudia Toni, o Sesc coloca em funcionamento e circulação uma nova ‘caixa de ressonância’ das ideias, experimentações e invenções aglutinadas e disseminadas pela Semana. Mais do que isso, condensa nas mídias que integram o presente box o espírito de novidade e transformação dos modernistas brasileiros de primeira onda, ao menos dos sudestinos, em suas expressões verbais, sonoras e musicas, audíveis depois de um século”, afirmou Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo.
O CONTEÚDO
1. Poemas e Conferências
A caixa contém leituras de poemas de Guilherme de Almeida (As galeras), Luís Aranha (Drogaria de éter e de sombra) e Mário de Andrade (Domingo), entre outros, em interpretações de Homero Velho, Lígia Ferreira e Mônica Salmaso. Antonio Salvador ainda lê um trecho do romance Os condenados, de Oswald Andrade, no disco 3; no disco 4, um trecho da conferência intitulada Arte Moderna, de Menotti del Picchia.
2. A Música
Repertório de Toda Semana: Música e Literatura na Semana de Arte Moderna
DISCO 1
1. Graça Aranha – A emoção estética na arte moderna (Trecho da Conferência) 4’31”
— Antonio Salvador
2. Erik Satie – Edriophtalma (Embryons Desséchés), piano solo (1913) 2’27”
3. Francis Poulenc – Valse, piano solo (1919) 1’49”
— Cristian Budu, piano
Heitor Villa‑Lobos – Sonata no2 para violoncelo e piano (1916)