Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui (2021) tem levado os afetos sapatões para lugares, até então improváveis, de visibilidade. O curta de Érica Sarmet participou, no mês de janeiro, da 25ª Mostra de Cinema de Tiradentes (onde ganhou os prêmios de Melhor Curta da Mostra Foco e Prêmio Canal Brasil) e do Festival de Sundance, nos Estados Unidos. Em 2021, fez passagem pelo Festival do Rio, pelo Bogotá Short Film Festival e pelo Olhar de Cinema, de Curitiba, no qual foi agraciado com o prêmio de Melhor Curta Brasileiro. Na verdade, a obra, desbravadora, não se exime de tratar explicitamente das barreiras, talvez cada vez mais transponíveis, dos discursos. Não deixa de verbalizar, por exemplo, suas bem-marcadas intencionalidades de “superar a tradição do silêncio”. Evoca, ainda, outras e inovadoras iniciativas cinematográficas do passado que tentaram reconfigurar os arranjos da sexualidade – como os trabalhos de Lizzie Borden e Cheryl Dunye, que abriram caminhos para a boa teimosia das histórias desviadas e desviantes que urgiam aparecer. O título da produção também é um elogio à rebeldia narrativa. Refere-se a um verso do poema “Integridade”, da escritora e ativista Adrienne Rich, que, nos anos 1980, ousou nomear a força ideológica que amputa desejos e que obstaculariza as vidas fora da norma. Uma Paciência Selvagem Me Trouxe Até Aqui confronta e afronta, justamente, a chamada “heterossexualidade compulsória” das nossas artes e da nossa cultura. O corpo lésbico, apesar de tudo, está em cena.
Falamos sobre um filme de encontros: entre essas múltiplas referências, inspirações e aspirações, claro; e, no plano diegético, entre as personagens Vange (Zélia Duncan), Rô (Bruna Linzmeyer), Alice (Camila Rocha), Granado (Clarissa Ribeiro, que também assina a montagem, com Bem Medeiros) e Ângela (Lorre Motta). A primeira – nomeada em reverência a Vange Leonel, uma cantora e compositora tão combativa quanto aquela que, artista maiúscula, lhe encarna – é uma mulher cinquentenária e incendiária que, ao conhecer o quarteto de jovens em uma festa nos cantos escusos de Niterói (“um point sapatão”!), se surpreende com a possibilidade de existir mais livremente. Afinal, o tempo auspicioso e revoltoso de hoje também é dela. Uma paciência selvagem nos envolve, então, nas dinâmicas desobedientes das redes, dos stories, dos vídeos, das performances e dos compartilhamentos. A todo momento somos interpelades pelas escritas de si hipertecnológicas que atualizam (e potencializam?) o poder emancipatório da linguagem. Outras formas de ser no mundo e de hackear o “Cistema” são colocadas em circulação. E é o que faz, por meio deste curta, o próprio cinema.
Uma Paciência Selvagem é, não obstante, um filme de amor. Para além da urdidura narrativa, por meio da qual as relações intergeracionais vão se tecendo progressivamente em tesão e ternura, há, no trabalho de Sarmet, diferentes recursos enunciativos que reiteram a sua poética e sua política. Em cada detalhe, um manifesto. Não há tempo a perder. A começar pelos créditos iniciais, que reúnem imagens de arquivo, pessoais e coletivas e reconstituem as cartografias das atratividades lésbicas. Sobrepostas pela animação de Tomas Cali, as fotografias acabam revelando, com a afiada intervenção, trocas de olhares e carícias que se esquivam das cis-heterovisualidades desatentas. Elas sempre estiveram ali. O sopro do real também areja o miolo do curta, principalmente por meio do tête-à-tête frontal de Vange, Rô, Alice, Granado e Ângela com a câmera. Ou seria de Zélia, Bruna, Camila, Clarissa e Lorre? Tão difícil, quanto desimportante, precisar. Personagens e artistas se confundem e se multiplicam quando tentam rememorar, em um registro quase documental, as primeiras sapatonas que conheceram em suas vidas. É um chamado à multidão queer, que não cessa de expandir.
Este pontual embaralhamento identitário talvez seja favorecido pelas biografias des atrizes e atores. Para Sarmet, o projeto demandava o engajamento de pessoas lésbicas ou bissexuais assumidas, capazes de se vincular íntima e responsavelmente com as questões provocadas pela obra. Podemos falar, quem sabe, sobre a necessidade de uma ética de cuidado com o filme. Não por acaso, Uma Paciência Selvagem esbanja acolhimento. As personagens surgem absolutamente confortáveis consigo mesmas e umas com as outras, numa intimidade saborosa erigida nas trocas de conversas, convescotes e cigarros. Elas se amparam e se elevam. É bonito, para citar apenas uma boniteza, quando Rô pega uma carona na moto de Vange. Em um primeiro momento, provavelmente por causa de uma espectatorialidade já contaminada pelas afabilidades do curta, preocupei-me com a protagonista pilotando o veículo sem capacete, cabelos ao vento, ao som de “Noite Preta” (1991). Mas, depois, fez sentido. Até então quase sempre solitária, Vange cede o seu provável único capacete para Rô, que retribui o zelo com um abraço que parece infinito. Pequenas pílulas de delicadeza. A cena de sexo também segue esta tônica da brandura. Subverte-se o olhar cis-heteromasculino que costuma orientar as audiovisualidades do erótico: nada de fragmentar e reificar as zonas da carne. Todos os corpos estão ali, inteiros, produzindo e recebendo prazer, sem hierarquias.
Só não há afagos quando, diante de um telejornal que anuncia um estupro cometido contra uma mulher lésbica, Alice mastiga com fúria um boneco de soldado e sua arma fálica que, fantasticamente, estão presos ao palito do seu picolé. Devora-se e dejeta-se o patriarcado. Mas o curta não é sobre violências, embora elas estejam sempre à espreita. Uma Paciência Selvagem está aí, resiliente, para trazer felicidade. Deve ser por isso que, durante toda a exibição, não consegui parar de sorrir.