Entrevista com Paulo Mendes da Rocha, um dos arquitetos brasileiros de maior reconhecimento internacional da História, feita em seu escritório, sob o pretexto da inauguração do Sesc 24 de Maio, em São Paulo, em 2018. A entrevista foi parcialmente publicada pela Cartacapital, essa é sua íntegra, inclusive com os defeitos das íntegras. Paulo morreu hoje aos 92 anos
Este ano, ele recebeu a medalha de ouro do Royal Institute of British Architects (honra que tinha sido conferida à estrela Zaha Hadid, no ano passado). Também levou o Leão de Ouro da Bienal de Veneza, em 2016, pelo conjunto da obra. Em 2006, já tinha recebido o Pritzker, o mais importante prêmio da arquitetura mundial, algo que só outro brasileiro alcançara: Oscar Niemeyer.
Concreto dançante, vidro e dramáticos espaços abertos são as sentenças da arquitetura de Paulo Mendes da Rocha, que fará 90 anos em 2018. Sua notável lucidez e firmeza de propósitos faz dele um homem leve, que desliza como um sensei de artes marciais por entre as grandes pranchetas de seu escritório de 30 anos na região da Praça da República, entre boates de travestis e clubes de strip-tease. No mundo hipermercantilizado da arquitetura, Mendes da Rocha representa uma espécie de antídoto contra a imperiosidade do consumismo e do corporativismo. Projetou alguns dos edifícios mais coerentes da cidade, como o Museu Brasileiro de Escultura, a Pinacoteca do Estado, o Centro Cultural Fiesp, o São Paulo Athletic Club.
No próximo dia 12, inaugura-se o Sesc 24 de Maio, projeto que Paulo define como um “navio-tarefa”, reapropriando-se do antigo prédio da loja de departamentos Mesbla (e que já tem mais de uma década, mas que exala espantosa atualidade). É como se tivesse sido projetado hoje, com sua abertura acolhedora para as ruas do centro de São Paulo, que o arquiteto ama. “Se você deitar na rua aqui no centro e dormir, ninguém te incomoda. Se você deitar e dormir em um bairro desses chamados ‘estritamente residenciais’, aparecem quatro jagunços armados para te expulsar, não é verdade?”.
Paulo Mendes da Rocha falou à reportagem:
Quando você ganhou o Leão de Ouro de Veneza, no ano passado, o arquiteto que o premiou, Alejandro Aravena, disse que sua obra sobreviveu ao teste do tempo, tanto estilística quanto fisicamente. E que isso se devia à sua integridade ideológica. Você acha que tem a ver com algum tipo de consistência do pensamento, que faz com que as coisas durem?
Você sabe, eu não sei falar muito da minha obra.
Ah, eu vi entrevistas memoráveis suas…
Mas eu não tenho muita convicção, porque eu tenho a impressão que a questão é de interpretação do desejo das pessoas, não do arquiteto, compreende? Você se volta para tentar satisfazer o desejo das pessoas. O que já mostra que a questão não é de caráter estilístico. Porque ninguém deseja um estilo. Você deseja o desfrute da coisa. Então, se alguém perguntasse para você – o que é absurdo, porque são infinitas razões – como fazer um programa de televisão para provocar uma das respostas intrigantes da questão “qual é a razão da arquitetura?”, eu gosto de dizer que é amparar justamente a imprevisibilidade da vida. É um pretexto, não é um programa definitivo que obrigue as pessoas a se comportarem. Você não pode ir a um restaurante para praticar patinação. Vai para comer. Mas comer o quê? Qual o modo que você se serve? Tem uma lista de coisas, o menu etc. Essa variação toda, esse gozo da vida, uma visão erótica da vida, é que é o objeto da arquitetura. Mas não que eu queira dizer verdades, é por para discutir. É que, com o andamento,como é fatal que haja um andamento da consciência humana, na formação mesmo da nossa formação humana…
Há uma dialética.
Nós não nascemos humanos, nos tornamos humanos. É a macacada que vem vindo aí, afinal de contas. Portanto, as coisas mudam, não são sempre as mesmas. E o interessante é esse desfrute. A arquitetura é feita… O programa é um pretexto para que as coisas se desencadeiem e, eventualmente, se transformem, através do próprio uso. Que é o que acontece na vida da gente. Outro dia eu estava me divertindo com a visão que está meio na moda, que tem muito barbado atualmente. Não sei se você concorda.
É, voltou a ter.
Jovens até. E, antigamente, a barba era imagem de sabedoria, de maturidade. Os grandes barbados da história a gente sabe quem são. Você ver na rua um barbado de bermuda e sandália é meio inesperado, é muito engraçado. É o que se vê hoje. O cara deixa crescer uma barba de sábio, de maduro, e se veste de moleque, digamos. As coisas mudam. As relações masculino e feminino hoje estão completamente mudadas. Uma questão não de mudar, simplesmente. Uma questão de consciência sobre a superpopulação, o planeta não aguenta. Então, as relações masculino e feminino passam a ter outro sentido do que aquilo para o que estavam lá, os dois sexos. A reprodução da espécie já é posta em discussão etc. Isso muda completamente o mundo. Muda a política, muda as relações dos homens entre si, muda a vida da cidade etc. Mas o que eu queria dizer, e acho que me perdi, no parágrafo anterior da nossa conversa, é que a arquitetura mudou também, na minha opinião. Basicamente, saiu do interesse do edifício como um fato isolado para a questão da cidade. O objeto da arquitetura hoje é a cidade, a realização da cidade. E aí entram conflitos incríveis, entre razões de caráter utópico, do que seja a cidade, e as razões do mercado, que destroem tudo, passam por cima de tudo, necessidades e desejos de modo concomitante. Nós estamos aí para realizar necessidades, por uma questão de urgência. Elas surgem, as necessidades. Mas, ao mesmo tempo, é humano desde o princípio, como se diz, amparar também o desejo. Que é um tanto abstrato, mas é a expressão de si mesmo naquilo que faz.
Então, o arquiteto seria um intérprete de desejos, em última instância?
É o construtor dos desejos, no sentido de abrigar aquilo. Afinal de contas…
Volto àquela questão do Aravena, que diz que sua obra sobreviveu ao teste do tempo, porque você já era arquiteto nos anos 1950, não era?
Era.
E você é arquiteto hoje, no século 21. A longevidade da sua obra teria a ver com o acerto, talvez, de um determinado espectro dos desejos humanos que você atendeu muito bem?
Sim, mas esse desejo, por sua vez, pode ficar em aberto. É essa a graça da arquitetura. A satisfação de um elenco de desejos que depois penetre, porque a coisa muda. O desejo, inclusive, faz com que o homem seja capaz de realizar os seus desejos de novo, naquele ambiente construído, antigo. Aí aparece, talvez, o objeto da nossa conversa, que é a inauguração do SESC 24 de maio, como exemplo. A transformação do uso, a transformação da mesma coisa, com outro uso. Você não vai demolir tudo… A construção exige – cada vez mais, mas sempre exigiu – complexidades tão delicadas do conhecimento, como fundações, distribuição de carga, sistemas estruturais… Aquilo que a técnica mostra que evoluiu. Hoje você pode fazer uma estrutura metálica, pode construir com concreto, o próprio concreto armado, depois armado e protendido. São coisas que evoluíram no tempo. Uma vez realizado aquele edifício, suponha, ele pode ser transformado por dentro. É o que se vê.
É o caso da Pinacoteca, por exemplo.
O caso da Pinacoteca e tantos outros bastante notáveis da cidade de São Paulo, particularmente. Já que nós estamos falando desse cenário. Não só necessariamente desse cenário, mas dentro desse cenário incrível que é a cidade de São Paulo. Veja você onde está instalada a Prefeitura Municipal hoje – que não é pouca coisa, a administração municipal de 20 milhões de habitantes – é o antigo prédio Matarazzo. É uma ocupação. O próprio povo, de certo modo revolucionário, sabendo de um prédio abandonado, vai lá e ocupa para habitação, principalmente, que é o que falta à classe menos favorecida. E são as melhores habitações, porque, geralmente, esses prédios abandonados estão na porta do metrô. E a grande virtude da casa é o endereço. Não adianta nada o povo querer oferecer uma casinha quase casa de cachorro no arrabalde, é um desastre para a população que trabalha. Portanto, o bom endereço se obtém de uma ocupação. É o que o SESC fez. Essa unidade tem como grande virtude estar no centro da cidade. Ora, terrenos vazios não há. Mas é possível uma transformação, como foi o caso, uma vez abandonada a antiga Mesbla das suas funções, aparece outra. Onde está hoje um centro comercial eram as instalações administrativas da Light, na cabeça do viaduto. E assim por diante. Uma série de exemplos até históricos, antiquíssimos, de palácios que hoje são museus, na Europa etc.
Hoje uma palavra muito em moda nessa tendência é “requalificação”. “Requalificação dos centros”.
Bem, aí se usam as palavras às vezes de maneira até grotesca, “requalificação”. Um centro de cidade, sendo centro, historicamente, é como? Não tem requalificação, a qualidade já é suprema, é a capital. É o lugar onde etc, etc. Eu não gosto da palavra “requalificação”. A qualidade de São Paulo, do centro da cidade, está lá definitivamente.
E mesmo o conceito de degenerescência é social, não?
Sim. Agora, se você abandona… Ai entram questões muito interessantes de discutir, inclusive em uma revista, com o público em geral, não só com eruditos. O que acontece com a cidade? Olha, a cidade é de tal maneira virtuosa – você pode dormir na rua – que quem é mal preparado, que não se preocupa com essa questão histórica, dessa fantástica realização, transformação da natureza em realmente habitável, a cidade, abandona a cidade. Isso causa certo prejuízo aparente. Mas talvez seja a grande virtude, porque justamente aqueles que não tinham direito à cidade vão começar a ocupá-la e, quem sabe, vai surgir a verdadeira cidade, livre para todos – que não era tanto assim. Cada vez mais se vê que a cidade é de todos. Se você deitar na rua e dormir, ninguém te incomoda. Se você deitar e dormir em um bairro desses chamados “estritamente residenciais”, aparecem quatro jagunços armados para te expulsar, não é verdade? E tudo isso são degenerescências… Porque eu tenho impressão que é de tal maneira monumental a ideia da nossa condição no universo, que não vamos abandonar, deixar que se corra muito o risco de extinção da espécie humana. Hoje você até vê em estações orbitais instrumentos que mandam notícias lá dos anéis de Saturno. O senso de humor dos cientistas de chamar aquilo de Curiosity já mostra uma esperança. Quem tem senso de humor vai longe, né? Do que eu quero falar? De uma hipótese que não mais, então, diante desses fatos, é pura fantasia: a visão de, quem sabe, a possibilidade de expansão da vida humana no universo. Além desse pequeno calhau, que é o nosso planeta. Portanto, nós estamos aqui para continuar. Não estamos para sumir, desaparecer. Não podemos comer o planeta. Você vê, o petróleo é uma maneira de comer o planeta. Você tira matéria pesadíssima das entranhas da terra e transforma em matéria volátil, vapor, joga fora. Pode ser que um dia você desequilibre até o planeta, mude o eixo, isso aqui vai tudo pro brejo. É um absurdo, para fazer esse sistema fantástico de transporte individual. É puro mercantilismo, para mostrar o plano crítico que teremos que por como razão política para a transformação do nosso modo de encarar a vida. Um modo mais consciente em relação à paisagem, não como uma grande paisagem, o verde, essas besteiras, mas a natureza como conjunto de fenômenos.
Eu li alguma coisa em que você dizia que sustentabilidade é um modismo. A palavra.
Sustentabilidade. É, porque não se trata de sustentar, mas de transformar de modo adequado. Você pode não saber exatamente como fazer, mas tem a obrigação de saber exatamente, aquilo que, entretanto, não deve fazer. Como é o caso do transporte individual com motor a explosão. Só pelo nome do motor já era para pôr um pé atrás. Uma das caricaturas para agora reduzir a questão, do ponto de vista… uma conversa pública, um instrumento de convicção que é muito bom, que é a ironia e o humor, a estupidez do automóvel. Um carro pesa 700, 800 quilos e transporta um de nós, que pesa 60 quilos. Então, você transporta… uma lataria, todo esse panegírico de extração de petróleo, transformar matéria sólida pesante de todo o sistema da mecânica celeste, de conservação da energia pela matéria, tudo isso, você transforma em matéria volátil para transportar lataria de lá pra cá, de cá para lar, dizendo que está levando o indivíduo para casa, para comer, para trabalhar… Um absurdo. Portanto, a visão de transporte público, a concentração da população para a eficiência do transporte público, verticalização, tudo isso são engenhosidades que não podem ser postas como balela para pôr mercadoria para vender. Nós temos que fazer a crítica também da exacerbação da ideia de mercado, que exige inclusive e desfruta da propaganda. Nós devíamos ter pavor de propaganda, falou de propaganda, é nazismo para mim. Você não precisa fazer propaganda para o cara ter apetite por uma coisa deliciosa. Agora, se o seu negócio é meio porcaria, escorrendo mostarda pelos cantos, é preciso muita propaganda, porque não é atraente. Até como elegância, modo de comer, convívio nas refeições, a cidade é uma maravilha. Vários restaurantes, lugares de encontro, conversa, teatros, museus, escolas, universidades. A universidade, por excelência, é a cidade. Um dos grandes objetos da arquitetura e, portanto, da cidade, é permitir a conversa, permitir conversarmos uns com os outros. E daí para fora. E tudo isso para dizer o quê? Se você aceitar certo desaforo, do ponto de vista repórter, eu diria aceitar que é muito fácil fazer arquitetura: basta ser indivíduo. Porque as coisas estão aí para serem feitas e os recursos são todos disponíveis. Cálculo de estrutura, tudo isso que está aí nas escolas, disponível a qualquer um, principalmente hoje, com os recursos de computador, isso e aquilo. Formas muito mais viáveis de cálculos de grande complexidade. É muito interessante. Há uma história muito bonita, porque recente, de um senhor famoso, [Eugene] Freyssinet, o homem que teria inventado a protensão das armaduras de ferro dentro do concreto, para aumentar suas virtudes etc. Ele, engenheiro notável, viu e experimentou de um modo um tanto pragmático a eficiência dessa protensão. E ele mesmo não conseguia calcular. O cálculo era tão complexo que quem fez os primeiros cálculos de comportamento desse concreto protendido já foram os seus discípulos mais jovens, porque ele não conseguia, um grande matemático que era. Para você ver como é veloz o andamento do conhecimento. Hoje, com o computador, faz-se cálculos que levaria um tempo enorme.
Dentro dessa espécie de nova revolução que a gente vive, há uma decorrência das transformações tecnológicas nas profissões humanas e também na ocupação física das coisas. Isso é algo que você já viu antes, ou não?
Essa transformação por dentro dos edifícios?
A transformação da vida, da relação entre avanços tecnológicos e sua decorrência na vida cotidiana.
Eu tenho impressão que sempre foi assim. O que você tem que ver, porque é impossível deixar de ver, é que houve uma aceleração muito forte, por razão da eficiência da comunicação etc. Afinal de contas, nós somos americanos. Isso aqui foi descoberto há 400 anos, não é nada. Portanto, não se sabia se de fato existiam terras. Se o planeta é que girava em torno do Sol ou se o Sol… Discutia-se isso há 400 anos. 400 anos não é nada, não é verdade? Só de Niemeyer tem 100 anos.
E Paulo Mendes da Rocha, no ano que vem, 90.
Já não vai ser nada. Então, você vê, a velocidade com que o conhecimento avança. A revelação daquilo que eram grandes mistérios do universo… Deixam de ser. A constituição da matéria, descontinuidade, molécula, átomo, neutrinos etc, coisas que você não sabia. E, sabendo, um avisando o outro, o conhecimento avança muito. O que é um perigo. Faz com que tudo isso, na essência, sejam questões que residem, pelo que sabemos até hoje, no universo que chamamos da política. O que é importante na arquitetura é a política da cidade.
E isso quer dizer o quê, exatamente?
Quer dizer que nós estamos avançando muito lentamente para de fato saber gerir os espaços do planeta de modo humano. Como já desejamos, mas não sabemos muito bem o que fazer. Você vê, na nossa América Latina, a divisão dos países é uma estupidez, é uma coisa artificial. Não faz sentido você dizer que o Chile é daquele modo, horizontal norte-sul, confinado pela cordilheira. Que não é brincadeira, né, andina, debruçada no Pacífico. O Brasil mesmo tem 8 mil quilômetros de costa atlântica. Só tem a África do outro lado. Tudo isso é muito artificial diante da natureza realmente, como fenômeno. Portanto, se você imaginar que nós nunca fizemos uma ferrovia, que seria um modo de ligar o Atlântico com o Pacífico, escoamento de produtos, etc, nunca fizemos isso. Até hoje, não há nenhuma ligação dessa feita. Se você imaginar que agora, assumindo a responsabilidade, fica muito difícil mudar, cada um fica no seu país, responsável… Porém, uma questão como essa, vamos resolver de comum acordo. O Brasil não vai tirar uma ferrovia do Atlântico para invadir o Peru, a Bolívia. Tem que fazer acordos. A navegação fluvial, nunca fizemos. Nossos rios não se comparam com o que você vê no Rur, no Danúbio. O que você vê no Volga-Don, na Rússia, é uma coisa riquíssima. Navegação fluvial. O que implica necessariamente na construção de muitos portos fluviais como cidades importantes. Jamais existiria uma São Paulo com 20 milhões de habitantes, que é um absurdo. Portanto, nós enfrentamos muitos problemas que são frutos de erros por falta de planejamento e de política adequada para, de fato, desfrutar desse planeta. Nós começamos a conversar sobre a ideia de conservação. Portanto, não é uma ideia de conservação. É uma ideia de justa transformação. Correndo riscos. Esse justo pode ser sempre discutido. Mas dos interesses humanos. É pura política. E isso não fizemos nada, está tudo aí por fazer. Portanto, estamos aqui muito mais para corrigir evidentes erros do que produzir simplesmente acertos que é problemático você afirmar que sabe. Vamos experimentar. Mas experimentar em uma área onde o erro está sendo evitado. O que nós podemos saber é o que não fazer. Isso podemos saber como muita clareza, para experimentar, então, direções mais interessantes. Projetos em parceria, para podermos continuar. Uma coisa que se repete muito, porque muito bem dita e esperançosa, pelos filósofos, é que, se cada um de nós sabe que a vida é curta e que vamos morrer, sabemos também que não nascemos para morrer, nascemos para continuar. Daí a questão da formação da comunicação, da linguagem, seja falada, escrita… É o desejo de comunicar aquilo que descobrimos, para continuar.
Você se afeiçoa aos seus projetos? Acho que o Walter Gropius, na Bauhaus, dizia que arquiteto não é artista.
O Gropius queria levar isso ao extremo, contra a visão de pura arte. A arquitetura, sabe o que ela é? É arquitetura. Não tem definição. É inerente à condição humana, a arquitetura.
Mas, por exemplo, quando pega fogo o Museu da Língua Portuguesa, dói em você de alguma forma? Você sente isso como se fosse uma perda? Ou você está sempre em movimento?
Veja, você deu um exemplo que é um desastre. Não precisava ter sido eu que fiz. De fato, é uma tragédia, uma pena que um edifício enorme seja incendiado. Principalmente porque revela o desastre do mau uso. Se você entrega um museu ao delírio desses montadores de exposição, ficam puxando fio para tudo quanto é lado, acaba em curto-circuito e fogo. Levar material inflamável lá para dentro. São muito mal administrados os museus, particularmente. E tudo, de um modo geral, todos os ricos (…). Geralmente tem uma causa de erro humano.
É, foi o caso do Memorial também.
É, para você ver. Portanto, a ideia não é essa. Ao contrário, as coisas são feitas para serem usadas e transformadas. Eu não tenho muito apego às coisas que eu faço. Eu acho um desastre o mau uso da coisa, seja projeto meu, seja de quem for.
Agora, essa coisa de marcos na paisagem, que muitos defendem como uma espécie de ímã de atratividade não só econômico, mas de atividade humana. Tem esse Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, tem casos no mundo todo. É um desafio para o arquiteto criar isso ou para você não interessa o marco na paisagem, isso não é o seu ponto, nunca?
Aí você fez uma pergunta complicada. Porque as pirâmides do Cairo não deixam de ser extraordinariamente um marco na paisagem, né? Uma nova paisagem.
A Torre Eiffel também.
A Torre Eiffel… Tornam-se marcos da paisagem quando obras efetivamente notáveis. Veja as pirâmides do Cairo. Não é uma questão de forma. Você não encontra outras pirâmides ali, mesmo na cultura egípcia. Você sabe o que eu acho que ficou assim tão notável nas pirâmides? Porque elas são a máquina da sua própria construção. O plano inclinado é uma das máquinas simples, no primeiro capítulo da mecânica, da física. Alavanca, plano inclinado, que divide o esforço. Então, se você quer pôr uma pedra naqueles horizontes, para alguém saber que você está ali, a 120 metros de altura, a única maneira é fazer essa pedra subir no plano inclinado, pouco a pouco, que é a própria construção da pirâmide. É uma maravilha. Outra questão é que lá não havia pedra. Então, a pedra vem de longe pela navegação do Nilo. É uma realização que, sob esse aspecto, surgiu daquilo lá como material. Torna-se um verdadeiro símbolo de realização das tais necessidades e desejos. Não é, assim, qualquer edifício. A Torre Eiffel mesmo é o aparecimento da indústria do ferro. Tanto que aquele grupo, o (…) e a turma dele, venderam a França para o mundo inteiro, estruturas metálicas forjadas… Assim, você pode admitir uma ou outra coisa que passa a fazer parte da própria paisagem. É elegido como paisagem, como quem diz: “Isso aí deve ficar”. Porém, não qualquer edifício. O que marca a paisagem da cidade são as grandes transformações mesmo de caráter de comunicação, abertura de estrada, de caminhos… Toda arquitetura que está para ser vista – e hoje fala-se tão pouco, porque o episódio todo foi muito marcante – chamada do construtivismo soviético é que devia ser revista, comentada, publicada. Mas as escolas de arquitetura não falam mais disso. Porque são grandes transformações no território, justamente no porte do que estávamos falando, como ligação Atlântico-Pacífico na América Latina. Particularmente, é claro. Na América do Norte, eles também fizeram. (…) Coisas assim são muito mais marcantes do que se chama geomorfologia e geografia, mais que paisagem, como obra humana interessante na formação de tudo isso em habitável do que edifícios como forma isolada. Essa época passou um pouco, do edifício como forma isolada. Hoje mesmo se vê nos jornais uma notícia de que a China está fazendo uma ponte de 50 quilômetros, qualquer coisa assim… Que também não faz muito sentido como notícia, não é a maior do mundo. Porque, quando você diz “ponte”, é o vão. A famosa Golden Gate é uma maravilha. Se você repete aqui N vezes, você pode atravessar qualquer oceano, tudo bem. Precisa ver se você quer atravessar a seco ou de navio. Em todo caso, é uma obra em cima das águas, para o tráfico a seco, seja de trem, automóvel, não sei… 50 e tantos quilômetros é a maior do mundo.
São transformações na geomorfologia mesmo. Está ligado mais à questão dos fenômenos, atravessar a seco uma área de grande extensão de águas, no caso, mar, do que propriamente paisagem no sentido cenográfico. A ideia não é de cenografia, é de realização, em função do trabalho, eficiência em transporte, da própria vida. Mas eu fico constrangido, em uma conversa como essa, porque eu estou falando como se eu soubesse tudo. Eu só estou dizendo as coisas que eu penso. Mas eu não tenho convicção nenhuma nem interesse em fazer disso afirmações categóricas. É quase como quem diz perguntando: “E você, o que acha disso?”. Agora nós estamos em grandes transformações, em uma velocidade em que é impossível prever exatamente. Está sendo da noite para o dia, nessas relações. Por exemplo, feminino e masculino. Grandes transformações.
Quer dizer que, quando o Aravena fala da sua integridade ideológica, ele pode estar errado? Você pode ter tido dúvidas em relação a suas convicções?
Toda integridade ideológica é feita inclusive de uma justa dúvida. Essa é uma visão dialética. A ideologia dogmática não nos interessa, é o homem-bomba. Isso aí não faz sentido nenhum. Portanto, eu acho que você discutir aquilo que pensa envolve não fazer afirmações categóricas nunca, mas ir experimentando com cuidado. E como isso não pode ser feito do ponto de vista individual, cada vez mais é uma questão mundial. Você pode dizer que progredimos muito. Hoje os organismos internacionais existem. Há muito tempo já existiam. Mas com mais eficiência, enquanto fóruns permanentes de discussão, isso sim, isso não. Até mesmo intervenção em políticas de outros países. Corrigir o que para nós seriam rotas de desastre. Não se trata de querer ser dono da verdade, porque esses órgãos todos são feitos de assembleias múltiplas de discussão. É uma visão de conclusão democrática em relação a decisões delicadas etc. Tudo isso está melhorando. A hipótese de uma previsão utópica sobre a presença do homem no universo. Entretanto, nada garante que isso tenha sucesso. Podemos estar extintos amanhã, como tantas outras espécies que já foram extintas.
Por outro lado, parece uma unanimidade mundial que nós estamos vivendo um retrocesso político.
No momento, parece que sim.
Os ciclos parecem se repetir.
É muito desanimador você ver que a Europa não conseguiu resolver o infame problema da última guerra horrorosa que houve lá. Até hoje, a Europa não conseguir esse ideal da União Europeia é muito desanimador. Mas você também poderia dizer, particularmente, enquanto americano, brasileiro, que eles estão pagando o preço, não como punição, como experiência, da política colonial. Se voltou contra eles mesmos. Está se vendo que eles não conseguem deixar de ser colonialistas sobre si mesmos. Estão muito desorganizados quanto a isso. O grande erro, como sistema político, foi o colonialismo. Veja a Espanha em relação à África, ao Marrocos. A França em relação à Argélia. A Holanda o que faz com os homens de Sumatra, Bornéu. Volta-se contra eles mesmos, essa incompreensão da complexidade do mundo, e não do domínio desses sobre aqueles. O racismo, tudo isso está aí em discussão. Muito bom que esteja em discussão. Esse é o lado positivo. Entretanto, é muito desanimador que ainda estejam atrasados em relação a essas questões, um certo anacronismo de absurdos. Difícil.
E o Brasil, a inserção dele, que é sempre uma promessa? O Brasil entra no mundo, e aí damos dois passos para trás?
Já foi tanto dito, e é verdade: essa bateção no peito de “nós somos brasileiros”, esse elogio dessa brasilidadezinha frágil do samba é uma besteira que não tem tamanho. Esse lado lírico e poético o homem tem em todas as suas atitudes, não precisa ficar fazendo alarde… É difícil um país como o Brasil. Por outro lado, teoricamente riquíssimo. Só o que temos aqui de convivência de gente do mundo inteiro. Uma cidade como São Paulo, a influência italiana, além da portuguesa, lituanos, árabes, Japão… São Paulo é a cidade que tem mais japoneses fora do Japão. Isso pressupõe uma riqueza potencial, mas muito atrasada ainda. O Brasil está ainda muito aquém…
… das suas potencialidades, né?
É. Eu insisto um pouco, naturalmente. E isso vem de por razões até pessoais. Meu pai era professor de navegação. Portos, rios, professor na Escola Politécnica, em São Paulo. Eu ouvi falar isso sempre. Mas, em todo caso, é uma questão patente, que não é por isso só que eu falo. Navegação fluvial. Você vê, o rio Tietê nasce em cima do mar e, por um capricho da natureza, corre de leste para oeste, e deságua no rio Paraná. Como navegação, esse rio Paraná desce, passa pelo Paraguai, Uruguai, Argentina… É um rio transnacional e deságua na bacia do Prata. Olha que sistema de navegação: sair de São Paulo, atravessar vários países e sair na bacia do Prata. O que isso poderia representar nunca foi feito. E, sendo assim, você vendo na carta da América a área onde há o deságue desse afluente Tietê no Paraná, em relação ao norte, forma-se, correndo agora, em vez desse centro para o sul, desse centro para o norte,outra bacia extraordinária chama Tocantins Araguaia, com a famosa ilha de Bananal, a maior ilha fluvial do mundo. E deságua no Amazonas. Existem vários projetos desenhados pelos engenheiros já. Ligando essas duas bacias. Você liga a bacia Amazônica com a bacia do Prata, num sistema de navegação. É outro país, outro Brasil. Enquanto não se fizer coisas assim… Não é só isso, mas isso como exemplo. Não existe esse país tolo, que o nordeste não tem nada que ver com o sul etc. Independente de caráter distinto da coisa. Na gestão territorial do trabalho, não faz sentido. É um país atomizado o Brasil. Um país ainda inexistente. O que não tem grande mal, porque 400 anos, já dissemos, não é nada. Estamos (…) chegar lá, espera-se. Por outro lado, tem uma unidade incrível. A língua. Tem uma unidade linguística fantástica, que se deve a Portugal, pai da nossa língua. Falamos, como se fala na África, em vários países, a mesma língua. Essa dimensão da língua portuguesa é muito importante, por exemplo, para o Brasil. O que não desmerece nada, para por em contraponto agora, a língua espanhola, o inglês, certo? Acho muito interessantes essas línguas, mas que se pode falar no mundo inteiro. Acho bonito que a gente possa falar várias línguas, afinal de contas, a dança, a música, a pintura, o desenho são várias linguagens e, até certo ponto, línguas.
Que são compreensíveis universalmente.
Portanto, não é só o Brasil que está se fazendo, mas o próprio gênero humano. Estamos juntos. Eu só quis dizer que decantar muitas virtudes desse Brasilzinho de pequenas coisas, vamos com calma. Não é por aí que o Brasil será grande. O Brasil será grande na sua peculiar experiência em relação a um continente novo, do ponto de vista da ocupação pela inteligência, da cultura europeia etc. Até porque não é novo assim. Com uma revisão crítica da política colonizadora. Veja só o que os espanhóis fizeram com os incas, astecas, uma coisa horrível de massacre etc. Engraçado que o nosso índio nativo, dessa área chamada Brasil, por ser tão frágil aparentemente, nas coisas que fazia, construía, falava, usava como hábitos de vida, foi muito desprezado. No entanto, certas coisas são maravilhosas, como a própria arquitetura, a construção das ocas… São coisas incrivelmente interessantes.
As expressões gráficas são muito interessantes…
A cor, o uso da cor…
Bonito, né?
Retirada da própria natureza. As penas dos pássaros são uma coisa linda. Muito rico. E foi tudo isso jogado. São coisas irrecuperáveis. São outras possibilidades de compreensão do futuro, o que se pode fazer com isso.
Muito bem, Paulo, creio que estou satisfeito…
Está tudo por fazer. Você podia dizer assim, agora invertendo: mas, então, qual é o interesse fundamental da arquitetura? Primeiro, eu acho que é uma forma de conhecimento peculiar à natureza humana. O homem nasce arquiteto. Segundo, está ligado à ideia de educação. Você não pode ensinar arquitetura para ninguém, mas pode orientar como pensar, como estudar. Portanto, a educação é a base de tudo, do futuro. O que vamos dizer aos jovens que estão chegando? Está muito atrasado o ensino. De uma maneira geral. As crianças são massacradas nas escolas.
Uma coisa que eu ia te perguntar é sobre arquitetura popular. Por exemplo, nós tivemos um programa agora que foi ambicioso, chamado Minha Casa, Minha Vida. Que pretendia ampliar o direito à habitação…
É, nós temos que ver isso. A grande virtude da habitação, principalmente essa, chamada popular, para amparar o trabalhador, é o endereço. Não adianta fazer casa no subúrbio. Tem que fazer casa ao lado do metrô, vertical, etc.
E às vezes reutilizando edifícios pré construídos já.
Também. Até isso. Porque é possível e é interessante. O que precisava ver, entre outras coisas, são as ideias que parecem uma condenação. Minha Casa, Minha Vida, veja você. Se um homem nasce para dedicar a vida para ter uma casa, passar vinte anos pagando, com juros, isso pode ser um desastre. O trabalho devia dar direito a uma casa.
Você acha que o trabalhador se torna refém…
Não quero dedicar minha vida para ter uma casa. É transformar em tragédia algo que deveria ser uma graça, uma virtude. Bem, mas como você mesmo já propôs, chega. Eu repito as coisas que eu digo, não tem graça me entrevistar. Vê se você consegue dar um jeitinho.