Às vezes eu ficava olhando o Flavio Migliaccio (1934-2020) na TV e pensava: menino, já imaginou se o Martin Scorsese descobre esse cara? Ele certamente engoliria filmes inteiros como um daqueles gângsteres de fundo que o Scorsese imortalizou (com sobrenomes como Cenatiempo, Pietrangelo, Riccobene, Maniscalco, Gallo). Em dois tempos, Flavio estaria ombreando Joe Pesci, sendo recebido como rei nas cantinas de Little Italy, esnobando produções da Marvel com repetidos “nãos”. Seu tamanho era esse!
Não venho aqui hoje para escrever nada de muito fundo sobre Flavio Migliaccio, venho apenas como fã de um desses estilhaços de humanidade que nos marcam toda a vida.
Como um Carlitos de subúrbio, Flavio apareceu pela primeira vez para mim como o Xerife da novela Primeiro Amor (1972). Era um tempo em preto e branco e Flavio era “escada” para Shazan (Paulo José), então em seus dias de galanato, mas tão irresistível era sua figura torta, atrapalhada, que ganhou a eternidade já ali. Sua sacada, de ambos, era atuar em harmonia com o “cenário” (a explosiva van-camionete-Rural Camicleta), agindo como se manobrassem uma marionete gigante em cena.
Shazan, Xerife & Cia virou seriado depois, um portento nacional no meio de uma profusão de enlatados de todo o mundo, até do Japão, com o seu National Kid inescapável, que soterravam nossa incipiente produção brasuca. O potencial de encantar crianças marcaria toda sua carreira, com personagens como Tio Maneco e Seu Chalita. Seu sotaque inventado não tinha a menor necessidade de verossimilhança, se ele queria ser libanês, era um direito dele, a gente assentia.
A versatilidade de Flavio era incomum. Manuseava doçura, mas também vilania com a mesma habilidade, como fez com o malandro-agulha Seu Jacques em Senhora do Destino. Infelizmente, não o vi no teatro. Também não o vi pessoalmente, somente pelo tubo ou pela tela. Quando conheci seu filho, Marcelo, que foi colega na redação do antigo jornal, não tive dúvidas em tietar o pai dele. Marcelo, já acostumado à babação de ovo, prometeu que ia me trazer um autógrafo (ou era uma miniatura da camicleta, agora não lembro mais).
Foi um daqueles atores cuja interpretação se reveste de seus próprios contornos físicos, que iam da maltrapilhidade à honorabilidade sem qualquer baldeação.
Vejam só: somente hoje descobri que ele já tinha 85 anos. Para mim, tinha a mesma idade de sempre, uma daquelas idades do tipo para sempre que encobre as identidades dos grandes atores.
Em sua carta de despedida, Flavio disse que a humanidade não deu certo. Como não? A humanidade nos deu o talento de Flavio Migliaccio, é um belo indicativo de que funciona. Precisa apena calibrar um pouco.