O Sesc Copacabana censurou um texto do escritor e integrante da Academia Brasileira de Letras, o poeta Geraldo Carneiro. O texto, feito para a peça Iago (que estreia hoje, inspirada em Otelo, de Shakespeare), fazia ilações com a atual política brasileira, especialmente com a atuação da família Bolsonaro. Montada por Marcio Nascimento e Miwa Yanagizawa, a produção da peça encomendou o texto a Carneiro, mas, depois de recebê-lo, o comunicou que não poderia “haver nada político no espetáculo”. Ao autor, foi dito que a decisão vinha da direção do Sesc.
Geraldo Carneiro ficou chocado. “Já sofri muita censura de letras de música nos anos 1970. No século 21 é a primeira vez. Parece que entramos na máquina do tempo de volta para a Idade Média, sem passar pelo Renascentismo. Tomara que o governo não proíba o Iluminismo”, disse o escritor ao Farofafá.
O diretor, Marcio Nascimento, chegou a sugerir a Geraldo Carneiro que escrevesse outro texto. “Eu falei que o único texto que escreveria seria para denunciar o episódio”, disse o escritor ao jornal O Globo. Geraldo Carneiro é autor de livros fundamentais da poesia brasileira a partir dos anos 1980, como Verão Vagabundo (1980). Ele afirmou que sua decisão de revelar a censura foi para não compactuar com o cerceamento da liberdade de expressão. “Em uma conjuntura democrática, a gente tem que denunciar esse veto, essa censura. Senão, os caras de tornam donos definitivos da possibilidade de se manifestar. Recorrendo a um trocadinho, isso transforma uma indignação em uma nação indigna”.
O Farofafá reproduz abaixo, na íntegra, o texto censurado pelo Sesc Copacabana.
IAGO FEITO AQUI
Quando fui convidado para traduzir e adaptar Otelo, o Mouro de Veneza, de Shakespeare, tendo Iago como protagonista, adorei a ideia.
Só não percebi o alcance da aventura.
Logo descobri que Iago adoraria o mundo de hoje, onde suas fake news fariam sucesso nas redes sociais. Afinal, nunca houve personagem mais competente em matéria de armações e calúnias. Provavelmente ele seria o príncipe do marketing político. E descobriria algo de podre no reino da Dinamarca, sempre a favor do rei.
Aqui, nos subúrbios do Ocidente, a história é ainda mais oportuna.
Imagine um oficial de baixa patente que é preterido na carreira, e, movido pelo ressentimento, pretende destruir a república, representada pelo general Otelo e uma mocinha da classe dominante. A alegoria é tão clara que não me atrevo a decifrá-la. Fica a seu critério, caro espectador.
O americano Harold Goddard diz que Iago “está sempre em guerra, é um piromaníaco moral, que ateia fogo à realidade”. Também não farei analogias aqui. Só digo que a república de Veneza é um exemplo para o Brasil: nunca se meteu em negócios da China que não fossem do seu interesse e, desde o século XVII, não permitia a nomeação de parentes para cargos públicos ou embaixadas.
Em suma, há muitas lições a extrair da fábula. Sobretudo para nós que vivemos neste país pitoresco e extravagante, cujo nome começa com a letra b, de bye-bye.
Geraldo Carneiro