toni tornado na br-2006

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e aí você está diante da tv, assistindo o cara no conforto da sua poltrona, família homer, rede globo. e o cara lá, fazendo papéis sempre subalternos, um perpétuo prisioneiro do sistema, do esquema.

mas e se o cara tem toda uma história por trás, que você nem pode supor ao apenasmente vê-lo viver tantas cores na telinha, sempre interpretando o “escravo”, o “capataz”, o “leão-de-chácara”?

está ele lá, dando sopa…

e a você?, já lhe ocorreu perguntar sobre a história por trás desses caras & dessas caras todo(a)s que aparecem por aí todo dia, boiando no circo eletrônico? ou eles batem no seu espelho, olhos capatazes de lá e de cá, emparedados pelo medo de saber mais sobre as coisas que estão no mundo e pelo hábito de sempre admirar, pelo espelho, apenas a superfície, a película cor-de-rosa, a(falta da)quele “hype” nosso de cada dia de que nos fala nossa amiga-vizinha denise?

[o que poderia haver atrás do espelho? você? ele? alice? outro você?]

sras. e srs., com vocês o grande, grande, grande músico, ator e ativista toni tornado, recolhido das páginas de “carta capital” 403, 26 de julho de 2006. podiscrê, amizade, há muito mais coisas entre o céu-inferno da dinamarca & o inferno-céu do brasil do que supõem nossas v(f)ãs filosofias…

TONI TORNADO NA BR-2006
O ator recapitula as agruras que o afastaram da carreira musical

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

Quando Toni Tornado subir ao palco para cantar seu maior sucesso, BR-3, estará quebrando um tabu que se estende desde pouco depois de aquela música ter se consagrado vencedora do V Festival Internacional da Canção (FIC), em 1970. Estará interrompendo a recusa a reviver os tempos de cantor pioneiro de soul e funk à moda brasileira, que se avolumou a ponto de ele hoje ser conhecido apenas como ator global de novelas e seriados, em personagens quase sempre secundários.

A volta se dá no contexto do festival Soul Brasil, que reagrupa no sábado 22 e no domingo 23, no Sesc Pinheiros de São Paulo, nomes como Hyldon, Luis Vagner, Bebeto, Carlos Dafé, Banda Black Rio, Claudio Zoli e Max de Castro. O empenho para convencer Tornado a participar foi de Wilson Simoninha, diretor da reunião e filho do cantor Wilson Simonal (1939-2000), colega de infância de Toni numa escola agrícola no interior do Rio de Janeiro. “Era uma escola de recuperação de menores, foi brabeira”, lembra o artista, que em geral tem se mantido reticente também ao contato com a imprensa.

Voltar a cantar não é fato isolado: Tornado, 75 anos, já ensaiava uma mudança de postura em novembro do ano passado, quando fez um desabafo público durante a entrega do Troféu Raça Negra [CartaCapital 370], na Sala São Paulo, um elegante reduto da “minoria branca” brasileira. “Todos sabem que trabalho numa emissora eminentemente branca, e que consigo sobreviver no meio disso tudo. Mas vocês não têm idéia do que é ser negro trabalhando naquele lugar”, disse, chorando, diante de celebridades e autoridades constrangidas.

Sua história musical foi-se dissipando com o passar do tempo, mas é repleta de lances tão espetaculares quanto dramáticos. Vão do aperto de mão do então presidente Emílio Garrastazu Médici no Palácio das Laranjeiras, em 1970, a prisões sucessivas (ele contabiliza nove passagens pelo Dops), de quatro anos vividos nos Estados Unidos, na década de 60, até o exílio político, nos anos 70, em países como Tchecoslováquia, Chile, Uruguai, Egito e Cuba.

O convescote com Médici se deu pela torcida do presidente para que BR-3 vencesse a fase internacional do V FIC e consolidasse, assim, a recente vitória do País na Copa do Mundo e o projeto de integração nacional que a TV Globo ajudava a propagar.

Tornado avalia, hoje, a adesão-relâmpago do presidente-general ao movimento black que se avolumava no País. “Ele que não o fizesse naquele momento. Estava pedindo a vitória não para mim, mas para o governo dele. Não fui lá de bom grado, até porque ia contra todos os meus princípios o regime militar, apesar de eu ser militar também. Fui por imposição.”

Enquanto isso, a edição daquele ano do festival era tomada por uma voga avassaladora de “música negra brasileira”. No ano anterior, Simonal havia chegado ao auge de popularidade, em antológicos shows fora de competição no IV FIC. O movimento se amplificou na etapa nacional do V FIC, com Tornado e o Trio Ternura cantando a vitoriosa (e dramática) BR-3, o maestro negro Erlon Chaves comandou um coral negro com a debochada Eu Também Quero Mocotó, de Jorge Ben (sexto lugar no resultado final), e o arranjador Dom Salvador apresentando Abolição 1860-1960 (quinta colocação).

Embora branco, o estreante Ivan Lins levou o segundo prêmio imprimindo acento soul à ufanista O Amor É o Meu País. O samba, até então tido como expressão maior da música negra brasileira, chegava no máximo à sétima colocação, com Meu Laiaraiá, do também novato Martinho da Vila.

No mesmo contexto de imposição, Toni participou com outros artistas de shows patrocinados pela ditadura, como nas Olimpíadas do Exército, que estigmatizaram Elis Regina como simpatizante do regime. “Chegava um aviso, ‘estamos convidando o senhor, o preço acertado antecipadamente é xis, agradecemos sua participação’. Eu não tinha acertado preço nenhum, era uma intimação, não tinha como escapar”, conta o artista.

Setores progressistas voltaram baterias contra artistas como Elis e Simonal – esse, envolvido em espisódios violentos e nunca totalmente esclarecidos, viu se grudarem em si as pechas de colaboracionista e delator, mas acabou condenado e preso pelo próprio regime militar, em 1974. Tornado comenta o “patrulhamento”, liderado pelos jornalistas do tablóide O Pasquim: “Eles não entendiam que o que faziam no fundo era um desserviço. No fim, mesmo eles acabaram cassados. Estava todo mundo no mesmo barco”.

Ele opina sobre o que considera um componente racista na ruína de Simonal: “Como é que um cara chega no Maracanã e vai reger um coro de 40 mil pessoas? Como é que esse cara vai ter duas Mercedes, morar em Ipanema e ter os três últimos andares do prédio só para ele? Como é que as socialites ficam todas falando ‘ai, que negro lindo’, ‘como ele é charmoso’? Isso incomodava, muito. Eles precisavam de alguma coisa para acabar com Simonal, mas poderia ser um outro negro qualquer”. Poderia ser ele mesmo – como foi, guardadas as proporções.

A história secreta do que aconteceu no intervalo entre o boom negro, o cumprimento do general e o exílio do cantor num país do bloco socialista permanece obscura, mas começou a ser elucidada pelo pesquisador e testemunha ocular Zuza Homem de Mello, no livro A Era dos Festivais – Uma Parábola (editora 34, 2003).

Lá está documentado, por exemplo, o escândalo causado por Erlon Chaves (1933-1974) na final internacional do V FIC, com concorrentes de vários países e transmissão mundial a partir do Brasil (nessa etapa, BR-3 ficou apenas com a terceira colocação). Ao apresentar Eu Também Quero Mocotó fora de competição, Chaves, que então namorava a jovem Vera Fischer, se fez acompanhar por quatro louras seminuas que dançavam ao seu redor e o beijavam sensualmente.

O maestro, que trabalhava com Simonal, Elis Regina e a Globo, foi advertido, interrogado pela Censura Federal e preso por conta do episódio. “Comentava-se que as esposas de alguns generais ficaram extremamente ofendidas com sua performance”, relata Zuza no livro.

A fala de Toni Tornado, hoje, vem enriquecer a compreensão sobre o clima radical instaurado a partir do FIC de 1970. Tornado lembra que também causava desconforto seu namoro e casamento com a atriz Arlete Salles, que era uma das apresentadoras do festival. “Eu dediquei o festival a ela no ar, aí foi para matar. Daí para frente foi só porrada. Quando eu ia ao cinema com Arlete, aquilo incomodava as pessoas a ponto de deixarem bilhetes no carro, falando ‘negro sujo, procura a sua raça’. Era nessa base.”

E havia a questão política. Durante o percurso de BR-3, Tornado portava no peito a tatuagem de um sol, símbolo dos Panteras Negras, força motriz do movimento black power norte-americano, de cuja influência ele voltou embebido dos EUA. “Depois tive que fazer um peeling, tive que raspar aquilo tudo. Estava me sentindo mal, estava um peixe fora d’água. Não tinha muito a ver com a nossa política interna. Aqui é mais flower, mais florido. É uma pena, porque é um racismo velado, é feio, é pior”, avalia.

O fantasma do vínculo com os Panteras Negras ressurgiu em 1971, durante o VI FIC. Tornado participou de uma apresentação da presidente do júri, Elis Regina, em que ela cantava a provocativa Black Is Beautiful, dos louros Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle.

“Imagine Elis cantando comigo hoje cedo, na rua do Ouvidor/ quantos brancos horríveis eu vi/ eu quero um homem de cor. Eu saí de lá algemado, porque tinha cerrado os punhos durante a música.” Os punhos cerrados cruzados sobre a cabeça eram outro gesto característico dos Panteras Negras. A marcação sobre Tornado também ficou cerrada.

Em campanha amplificada pelo colunista social Ibrahim Sued, BR-3 (composta por Antonio Adolfo e Tibério Gaspar) foi classificada como apologia cifrada às drogas, entre outras razões porque falava em “estrada multicolorida”. Tornado recusa essa versão: “Se eu fosse um postulante… Não era o caso. A gente corre, a gente morre na BR-3. BR-3 não é nada mais que a estrada da vida, entende?”.

Um disco compacto com a música Deus Negro foi interditado pela Censura. Dois álbuns foram lançados entre 1971 e 1972 na Odeon (hoje EMI), o primeiro deles com duas músicas especialmente compostas por Roberto e Erasmo Carlos e o segundo com o funk Podes Crer, Amizade, sucesso até hoje em bailes black Brasil afora. A seguir, Toni saiu da gravadora, para até hoje nunca mais voltar à indústria fonográfica.

“Fomos mandados embora da Odeon pelo Milton Miranda, que era o diretor musical, porque estávamos querendo inovar. Fomos eu, Simonal, Dom Salvador, Oberdan Magalhães (da futura Banda Black Rio), os agitadores musicais da época. Vinha pressão do próprio governo, ‘vamos tirar essa negrada daí’. Eu gravava tudo que era chamado pelos americanos de protest song. Eu trouxe para cá e tentei impingir essa situação aqui, mas entrou num choque que você não tem idéia.”

Sob pressão, Tornado passou a se retrair. “Algumas pessoas falavam ‘olha, nós estamos sabendo, cuidado que isso pode te trazer um problema mais sério’. Eu, também já preocupado com família, comecei a tomar meus cuidados. Se bem que não adiantou muito também, não (ri). Foi uma barra. Mas a gente conseguiu vencer. Hoje está tudo bem, moro aqui num condomínio bom, casinha, minha piscininha, meus cachorros”, ele recapitula.

A reconstrução aconteceu dentro da Globo. A emissora tem hoje 41 anos de idade, 32 dos quais testemunhados por Tornado, na pele de personagens que vão de capatazes de escravos a pais-de-santo e, num momento de ápice, o guarda-costas de Getúlio Vargas, Gregório Fortunato (na minissérie Agosto, de 1993). Nos anos 80, incrementou a atuação no cinema, iniciada já na época de BR-3, participando de filmes como Pixote: A Lei do Mais Fraco (1981), Quilombo (1984) e, mais recentemente, Redentor (2004).

Afirma que é histórica a tensão de trabalhar na Globo, que ele verbalizou ao receber o Troféu Raça Negra. “Eles mandam tomar laser para escurecer. Tem situações em que, se pudessem, pintariam até, para escurecer. Sonia Braga fez aquela mulher lá que subia no telhado, Gabriela (na novela homônima, de 1975). Era a mulher do Antônio Pitanga que ia fazer, Vera Manhães. E não fez, quem fez foi Sonia Braga. Pintaram a dona, mandaram a dona para a Bahia jiboiar no sol. Essas coisas todas é que violentavam a gente, até em termos étnicos.”

Mas o que lhe teria dado coragem de romper o próprio silêncio, após 32 anos? E como reagiu a Globo a seu desabafo? As duas respostas vêm simultâneas: “Me afastaram, mas eu já estou acostumado. Eu quero que eles me mandem embora, que eu já estou cansado. Eu não quero mais compactuar com isso, não. Estavam todos infiltrados lá naquele dia, depois que acendeu a luz é que fui ver o que tinha de diretor global lá dentro. Na hora não falaram nada, é o famoso tapinha nas costas, ‘valeu, Tornado, é isso aí’. Depois eu senti, quando me chamaram no quinto andar”.

Chamaram para dizer o quê? “É tipo ‘nós estamos falando isso em nome da empresa, como se dá o direito de ir para lugar público e falar da empresa da maneira que você falou?’. Estou cansado disso, já recebi muitos memorandos. Não foi o primeiro nem vai ser o último”, volta a desabafar.

Mas faz isso enquanto assiste à ascensão do ator negro Lázaro Ramos, na condição incomum de um dos protagonistas da novela Cobras & Lagartos, como Foguinho. “O Foguinho é o ator principal, né? Essas coisas são boas, a gente fica muito feliz e fala até com certo orgulho, porque a gente plantou tudo isso.”

Ele diz que procura observar de perto e aconselhar os novos que chegam. “Eu posso, tenho cabedal para falar com os atores, quando estão começando aqui na Globo. Tenho oratória, falo com a negrada nova que chega, ‘olha, dom, dá um jeito aí, não está legal’, ‘não deixa esse cara falar assim com você’, ‘não fale isso’, ‘não é por aí do jeito que você está seguindo’. Porque eles se empolgam, é normal. Eles ouvem, pelo menos os conscientes sabem da minha representatividade dentro do contexto negro.”

Esse senso de observação diz respeito à música também: “Me afastei, até obrigado mesmo, mas a minha praia sempre foi música, sempre. Continuo ouvindo de tudo, e continuo sabendo, sem falsa modéstia, de tudo. Só não participo mais”. Se o palco do Sesc Pinheiros terá o poder de animá-lo a querer reconquistar o posto abandonado de músico popular brasileiro, o futuro próximo é que poderá dizer.

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