coisa finíssima, raríssima: a gravadora (bem) nacional atração fonográfica está distribuindo o espetacular dvd “100% favela”, que, segundo os manos que o produziram, é o primeiro de nossa história a ser produzido na favela, pela favela e (majoritariamente) para a favela.


a liderança do projeto é do grupo de rap negredo, que locomove o projeto periferia ativa na favela godoy, capão redondo, periferia sul da abandonadíssima e estressadíssima são paulo – o mesmo local onde acontece o festival “100% favela”, esse que virou dvd de produção, finalização e conteúdo esmeradíssimos.

é essa a história, mas há muito mais, dentro do disco rígido de embalagem colorida: um documentário sobre a construção de bastidor do festival (sob direção de sophia bisilliat), depoimentos de periféricos ativos como ferréz, sérgio vaz, gog etc., sessão de criação no estúdio de gravação com negredo e mano brown, passeio pela madrugada da sul com mano brown no volante, discurso de mano brown durante a entrega de um prêmio nalgum lugar da sul, debate de ferréz e dos negredo com mano brown

em outras palavras: após um período em que mv bill esteve surfando em todas as ondas do hip-hop popular brasileiro [e da mídia, é nóis!], mano brown volta de manso a se pronunciar, a interferir, a acrescentar, a se posicionar. [você pode até torcer o nariz – “e o que é que eu tenho com isso?” -, mas se liga, mano(a), que dizer “mano brown” e “mv bill” hoje em dia é como dizer “chico buarque” e “caetano veloso” em 1968, ou como dizer “john lennon” e “bob dylan” nos estados (des)unidos de cima & de fora.]

trabalhando numa entrevista com ferréz, para a edição 407 da “carta capital”, acabou que transcrevi do dvd várias amostras do pensamento em movimento de mano brown – coisa rara, rara, raríssima, que não é todo dia que a gente consegue se aproximar do imaginário de um cara como esse.

vão abaixo reproduzidas algumas das falas de brown – e, mana(o), não esquece que o que ele pensa e diz lá na periferia faz espelho simétrico e invertido (esperto ao contrário, estamira?) com o que a gente pensa e diz aqui no centro (ops, você está no centro? eu estou no centro? onde é o centro da superfície de uma bola?).

1
brown discursa sobre “arrogância” e “humildade” ao receber um prêmio da cooperifa, prêmio de manos para manos, cultura de mano a mano [e de mano para playboy, será?]:

“humildade é sabedoria. arrogância é burrice, e muitas vezes eu fui burro. a burrice vem da neurose, do ódio, da revolta. você passa na frente de uma favela, dá ódio, dá raiva. dá raiva até da favela. por que eles aceitam isso aí? por que nós não vamos fazer alguma coisa? a revolta traz a arrogância. você pode tratar um playboy com arrogância, um cara porque tem os olhos verdes e não é a mesma cor que a sua. você acha que ele é rico, vai tratar ele mal porque você viu gente igual a você sofrendo. isso é burrice, eu já fiz isso“.

mais adiante, ele arremata, gênio:

“vou tentar ser menos burro daqui para frente”.

2
na mesma ocasião, brown reflete sobre fama e solidão:

“é uma honra estar aqui entre vocês. a minha falha é não estar sempre, mesmo porque tenho problemas, tenho inimigos, preciso ganhar dinheiro para pagar as dívidas que fiz depois que fiquei famoso. porque isso é uma prisão, acontece isso. que saudade eu tenho de quando eu era só mais um mesmo andando na multidão, desconhecido. infelizmente não dá para ser mais isso, mas vamos administrar os problemas que aconteceram depois.”

(…)

“às vezes não estou junto, mas preciso estar junto, não me abandonem. às vezes eu fico sozinho, dentro do meu mundo pequenininho de problemas individuais meus. não me abandonem, me chama, me liga. por incrível que pareça eu estou facinho, firmeza?” [ele ri, todos riem].

3
brown dirige o carro na madrugada grande da zona sul, e pensa alto, e fala:

“já sonhei eu preso várias vezes. já me imaginei várias vezes sendo preso, várias vezes. morto, nem tanto”.

4
no estúdio de gravação do cd “mundo real” (atração fonográfica, 2006), do negredo, brown parlamenta com o grupo, tenta melhorar a letra de um rap, copia-a manualmente num caderno, coloca-se sutilmente contra o excesso de violência no poema [e tensiona o ambiente]:

“tem uns baratos que acho que tem que pôr uma rima. (…) três frases seguidas sem rima, isso não pode. (…) ‘chumbo grosso, tiro, tensão’… o que você acha de tirar essa palavra ‘tiro’? chumbo grosso já é tiro…”.

5
conversam brown, ferréz e os rapazes do negredo. sobre o papel do rap, primeiro [atenção para as fagulhas de autocrítica, de periferia para periferia (da periferia para o centro? do centro para o centro? do centro para a periferia? quem vai encarar?)]:

“rap não é a música de realidade? não foi a coluna que segurou toda essa estrutura de rap de todo mundo aqui? o que é a realidade da periferia? pobreza, trabalhador também, ladrão também, cara também que é playboy e mora na quebrada, playboy de favela que vive às custas do pai, vários. enquanto ele tem um pão e um cafezinho com leite de manhã par ele tá bom. no dia que faltar ele quer meter revólver”.

6
brown reflete sobre ser elite [brown também é elite? e você que mora aí no asfalto, você é mano(a) também?]:

“para virar elite basta você estar numa corrida, se a coisa acontecer do jeito que você quer, está arriscado a virar elite. o cara pode ver o brown e falar ‘o brown é o rap de elite, venceu’. (…) a gente mesmo forma a elite, pode se transformar em elite sem ver. (…) eu sou um escravo, eu nem sou elite, eu sou um escravo da elite“.

7
o tema ainda é o rap, mas a discussão, agora, versa sobre “união” versus “individualismo” [você já ouviu falar desse assunto, aqui no cimento-purpurina? aliás, qual seria o lema do “centro”?]:

“se você parar para analisar, periferia é desunido. o rap ainda é uma exceção que fala de união dentro de um lugar que não se fala. qual é o lema da periferia? ‘cada um, cada um.’ e o rap, o que é? ‘é nóis na fita’, é outra idéia. esse bagulho de ‘é nóis’, ‘é nóis’ é coisa de rap. malandro quando tem dinheiro se joga. o cara quando ganha um dinheiro vai embora, ele tá ligado, os próprios caras de quebrada vão crescer o olho, vai cavar uma casinha para ele cair. e o rap ainda pega o contrário, ‘vamos tentar’. vocês [refere-se aos negredo são unidos, tô vendo que vocês são unidos. não é tão individual assim. (…) é uma teia. fora daqui você não vai ver isso muito, você não vai ver isso na rua. essa união que nós estamos falando não existe em lugar nenhum, em movimento nenhum, em profissão nenhuma“.

8
todos discutem as relações do rap brasileiro com a música brasileira, com a mídia brasileira. brown intervém [e fala de alienação, e se refere a outros com algum grau de incompreensão e intolerância (os mesmos que os do “centro” dedicam aos de “periferia”?), e, de quebra, faz mais autocrítica]:

“vocês estão colocando o rap como se fosse o centro do universo da música, e não é, né? se você parar para analisar os outros compositores de outros estilos musicais, tá todo mundo fechado num mundinho também. pega música da zélia duncan, tá falando daquelas poesias dela vagas, que só dizem respeito a ela e à namorada dela, ou namorado. pega qualquer outro, caetano veloso está no mundo dele, também, de intelectual inteligente pra caralho. não tem como os pobres analfabetos entender o que caetano veloso muitas vezes fala. tá todo mundo meio elitizado, meio no seu mundo. o rap também. é tribo, várias tribos, tribo de roqueiro, de reggae, de rap. dentro da nossa tribo, nós somos alienados na nossa cultura. o rap também é alienado, nós somos alienados na nossa cultura de rap”.

instala-se um debate com ferréz, eis trechos velozes:

ferréz – “pro cara pobre você não compactuar com a elite é um crime, é um crime, porque o cara quer pertencer àquilo, e você diz não. nossa, você ofende ele, mano”.

brown – “que tipo de pergunta [feita pela mídia] poderia quebrar as pernas de um grupo de rap hoje? eu não vejo, a ponto de quebrar as pernas, na televisão, a ponto de prejudicar o grupo…”.

ferréz [simulando a pergunta] – “‘o que você faz pela favela?'”.

brown – “um tipo de pergunta dessa você tem que responder com outra pergunta. ‘eu te pedi voto? eu pedi voto para alguém? eu sou cantor de rap, não sou…'”.

ferréz – “um cara me perguntou isso uma vez, em vez de explicar o que eu faço eu falei assim: ‘e o que o caetano faz pela favela? vende um milhão de discos’. ‘ah, mas ele não fala de favela.’ eu falei: ‘não interessa, o assunto da música pode ser o que for’.

brown – “ele não é brasileiro?“.

ferréz – “ele tá aqui, ele pode ser assaltado… então, o que ele faz?”.

brown – “é isso que eu acho errado. o rap não é obrigado a fazer as coisas. é lógico, ele faz de coração, certo? mas por que o rap é obrigado a fazer e o chico buarque não é? (…) é uma pergunta para punir você por ter tocado no assunto, ‘vou te punir porque você cutucou a ferida’“.

ferréz – “uma vez o chico césar me disse uma coisa que ficou guardada para mim até hoje. mano, o que vocês fazem através de um livro, de um cd, é mais do que qualquer projeto social. você dá orgulho no cara que tá trancado no quarto dele. à luz da vela, você dá orgulho no cara. o cara cantando sua música na rua, trampando de camelô, você dá orgulho nele, você injetou um bagulho que ninguém injeta, nenhuma ong, nem escola, nem nada. então esse trabalho já é muito, mano”.

9
o assunto agora é a qualidade do rap, e dê-lhe mais autocrítica na tela colorida de seu dvd [está acostumado? eu nem estou, essa parte não está nas “páginas da vida”…]:

“pra quem curte rap, é necessário que ele se mod… não vou dizer modernizar, mas…” [alguém diz ‘evoluir’, outro menciona ‘profissionalizar’] …o mais rápido possível, senão não vai sobrar nada para ninguém, porque as pessoas estão reclamando muito da ruindade do rap. falta qualidade, falta tudo. falta som, falta luz, falta letra, falta batida, falta idéia. as próprias pessoas que curtem estão reclamando da pobreza do rap, pobreza em todos os sentidos, entendeu? de idéia, de roupa, palavra, som, banheiro sujo, ambiente carregado. o nosso próprio povo quer modernizar“.

10
e conclusão, ainda é necessária alguma conclusão explícita? pois tem, sim, senhor(a):

“o cara que vem da favela tem que se impor o tempo todo, o tempo todo ele tem que se impor”.

100% favela, 100% brasil, pois não?

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