as marcas da pantera

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na “carta capital” 408, de 30 de agosto de 2006, tentamos adentrar brevemente no universo da impagável maria alice vergueiro – você sabe quem é, não sabe?

na maluquice destes pós-tempos, maria alice vive in(=in?=)esperado surto de revalorização, a bordo do sucesso virtual (e gremlin) do curta-metragem “tapa na pantera”, dirigido por rafael gomes, esmir filho e mariana bastos.

abaixo, segue a “brasiliana” dedicada a ela. mais abaixo ainda, em seleção extra, segue uma amostragem mais ampla do pensamento vivo (vivíssimo) e rico (riquíssimo) de maria. obrigado, maria.

A marca da pantera
A atriz que descobriu um milhão de “netinhos”

POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES

O telefone tocou novamente, mas desta vez não era Daniella Cicarelli, nem um emissário dela. Era Maria Alice Vergueiro, uma das mais importantes atrizes brechtianas do Brasil, em pessoa. Assessora de imprensa informal de si mesma, ela gostaria de ser entrevistada por CartaCapital, entre vários motivos porque apreciou sobremaneira o tratamento dado a Daniella pela revista (A Cicarelli ligou, edição 399).

Pedagoga, ex-professora de teatro na USP, integrante histórica dos grupos teatrais Arena e Oficina, co-fundadora do Teatro do Ornitorrinco e atriz da Globo em Sassaricando, ela contrasta com Daniella em quase tudo, até no fato de que vive seu momento de mais alta popularidade, aos 71 anos de idade.

Tornou-se celebridade espontânea nas malhas da Internet, com o vazamento involuntário de sua atuação no curta-metragem Tapa na Pantera, dos jovens diretores Esmir Filho, Mariana Bastos e Rafael Gomes. Em menos de um mês, o curta, em que interpreta os devaneios de uma debochada senhora maconheira, já foi visto cerca de 1,3 milhão de vezes no site de troca de vídeos YouTube (www.youtube.com). Em termos de cinema nacional, só teve menos espectadores, neste 2006, que o último blockbuster caseiro do diretor global Daniel Filho, e essa contabilidade nem inclui a forte circulação por e-mail, blogs, Orkut etc.

Depois disso tudo, Maria Alice ainda deseja o mesmo que Cicarelli desejou: um “reposicionamento de marca”. “Chegou a hora exata de eu, como é que se chama?, revigorar a marca?”, afirma-pergunta, em estado de graça com os últimos acontecimentos, mas também preocupada porque se sente folclorizada desde que tirou do armário a expressão “dar um tapa na pantera”, que usa desde a juventude para designar o ato de fumar maconha.

CartaCapital aceita de bom grado o convite à entrevista, mas se pergunta: qual seria a marca da pantera, a nova marca almejada pela grande atriz? “Para vocês, posso revelar o que eu penso, como a Cicarelli também pôde”, sintetiza, bem acomodada no amplo apartamento em que mora com a mãe, de 93 anos, no coração de um tradicional bairro paulistano.

O esforço de reposicionar a marca Maria Alice Vergueiro no mundo (mais que no “mercado”) acaba de atingir novo cume: motivada pelo burburinho virtual, ela pela primeira vez na vida terá acesso ao computador. “Vendi um brinco de brilhantes da minha avó para comprar um. Vendi pelo exato preço do computador, R$ 2,5 mil, que comprei no Ponto Chic, quer dizer, no Ponto Frio”, revela, temerosa da reação da filha. “Minha família tem medo que eu venda as coisas. E eu vendo tudo, mesmo.”

Pisamos em areias folclóricas, ainda. “As revistas de situação não sabem como dar a notícia. Estou famosa, mas, ao mesmo tempo, eles não podem comprar essa, então querem falar de YouTube, fenômeno de mídia, e ficam por aí, ‘é uma atriz que esteve no Oficina’. Zé Celso (Martinez Corrêa) é um gueto, os louquinhos estão presos lá, ali pode. Mas agora está uma assim, solta em Higienópolis?”, gargalha. Enquanto isso, a Folha liga, a Trip marca entrevista para o dia seguinte, a Veja quer fazer sessão de fotos…

Tentemos por outros caminhos. A pantera brechtiana poderia falar sobre suas marcas de origem? “Tive uma educação cartesiana. Minhas origens são burguesas, alta burguesia, uma coisa de republicanos, fazendeiros pródigos, generosos, de uma generosidade até um pouco autoritária (ri), de senhores de engenho – engenho, não, porque era café.”

Entre 1969 e 1974 esteve integrada à elite uspiana. Ali, sofreu duas sindicâncias internas, uma delas por estrelar a peça Cabaré da Rainha Louca, na qual era violentada em cena por um aluno (Cacá Rosset, futuro parceiro no Ornitorrinco). “Comecei a ter uma contradição muito grande com minhas origens. O Oficina virou meu quartel-general, mas no próprio meio eu era um pouco tratada como a burguesona que está dando um acesso de culpa de classe (ri). Muitas vezes vesti essa carapuça, mesmo.”

Abandonou a USP em favor de Brecht, estrelou a versão para cinema d’O Rei da Vela de Zé Celso. “Foi quando comecei a tomar mais contato com minha espontaneidade. Só que aí ela jorrou demais, e comecei a perder o controle. Tive sorte, tinha medo de não ter tempo de catar esses caquinhos e entender tudo, que é o que acho que está me acontecendo agora”, narra, atando as “pirações” passadas à “piração” presente de Tapa na Pantera.

“Muitas pessoas que se recuperam (ri) ficam divididas, ‘eu visitei o demônio’. As pessoas da minha geração ou piraram ou… piraram para a direita (ri). Nessas, o lado artístico ficou abafado, e já não bebem mais, não fumam mais, não transam mais, ficam posando, são meio autoritários… Muitos vão para a religião, ou então têm muitas verdades, ‘não vi e não gostei’. É talvez o que o governador Cláudio Lembo queira dizer com sua ‘minoria branca'”, diz, revelando outra fonte de inspiração, enquanto se afirma também reeleitora entusiasmada de Lula.

Semelhante a Lembo, reposiciona suas próprias marcas do alto do oitavo andar de minoria branca higienopolitana, exalando ironia e discurso de tolerância às drogas de onde menos esperava. “Quero dignificar a espontaneidade, salvaguardar Higienópolis e aquelas senhoras que, tenho certeza, fumavam cachimbo escondidas, fumo de corda. Pode ser a senhora sua avó, de onde você vem? Nossa, tinha muitas lá (gargalha)”.

Se outros vários já se viram em apuros judiciais por causa de maconha, com ela até agora nada aconteceu. Diz contar com o escudo dos dizeres esta é uma obra de ficção, que aparecem no início do curta, mas vai além: “Tenho 1,3 milhão de ‘netinhos’ que posso acionar (ri). Se me pegarem, uma senhora de 71 anos, deficiente, vão me prender em jaula de vagabundo? Dá medo, porque Lembo falou tudo isso, mas é governador, mal ou bem está lá ele com suas sobrancelhas”.

Durante a entrevista, acende o cachimbo só uma vez, para posar para a foto, e dá uma única baforada. Um mosaico de afirmações vai compondo a personagem que quer se impor por trás da “véia chapada que fuma há 30 anos” (como a descrevem “netinhos” do YouTube):

“Eu não agüento mais mentira. Não é que eu não minta, mas não há mais tempo para isso.”

“Essas atitudes são importantes para reiterar a democracia. É esse o espetáculo que estamos dando.”

“Esses meninos são lutadores, talentosos. E nem fumam pantera, não gostam, nem você também, né? O que tem de mais subversivo nisso tudo é a felicidade. É a risada, não é o discurso. Se você está feliz, quer a felicidade do outro.”

Nesse contexto, diz que, não, não se sente fazendo apologia. “Estou só, com isso, querendo me aceitar um pouco.” Diz que, por conta do prestígio familiar de Rafael (um dos diretores e também sobrinho de sua nora), se sente mais aceita do que jamais foi, dentro de sua própria família.

A reportagem retribui o convite, propondo um passeio pela praça Buenos Aires: alguém reconheceria a pantera reposicionada, ou mesmo a atriz da novela de 20 anos atrás? Numa manhã dominada por crianças, babás e idosos, alguns cochicham, a maioria fica indiferente, ninguém a aborda. Uma mulher jovem passa com três poodles. “Olha ela toda de preto, com três cachorrinhos brancos. Passa e nem me olha”, Maria Alice gargalha.

Auxiliada pelos “netinhos” (os três diretores também estão na praça), ela anda, faz exercício, sobe e desce ladeiras, pensa em voltar ao teatro, proclama felicidade. Lá em cima, um computador ainda não instalado aguarda os primeiros tapas de uma nova pantera.

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maria fala: a internet

“comprei um computador, rapaz, hoje. é uma coisa realmente de idade média que eu tenho [ri]. eu não li nenhum recadinho do netinho aí que quer ser neto da pantera. me contam.”

“não fui eu, foi o computador que se interessou por mim.”

“você já não é mais aquele ídolo passivo. já está interagindo como espectador. o espectador já troca.”

“é como diz [o filósofo] michel onfray [no livro ‘a arte de ter prazer’]: ‘o homem já não é artista, é ele próprio obra de arte’.”

“eu falo, seu ouvido capta, você concorda, mas já está passando pela sua forma de entender, então há uma transformação. isso vai fazendo se perder uma autoria. isso havia muito em 1968, essa tentativa da comunicação fraterna, não mais hierarquizada. nessa fraternidade, a gente aprende a aprender. seria o que a democracia devia ser, não o que se fala disso.”

um passa-palavra

“a história de maconha foi um ícone, um tabu, sobretudo porque pôde trazer a risada, e não discurso. ao mesmo tempo é uma senha, se 1,3 milhão receberam isso de repente é um passa-palavra. é cifrado a ponto de escorregar. antigamente, quando você falava nisso no telefone, dizia ‘livros’, ‘sabe, aquele livro?’. falava tanto em livro que se denunciava. agora eu brinco dizendo ‘tenho aqui uns flagrantes’ [ri]. quer dizer, a gente começou a rir.”

“não sei bem como começou isso de ‘tapa na pantera’, mas sei que era uma brincadeira, ‘mexe com o bicho’, ‘vamos dar um tapa na pantera’.”

“este é um grande momento teatral. eu tenho a metáfora. o negócio de tapa na pantera é a metáfora. tanto é que nisso também se revelaram os meninos.”

“essas atitudes são muito importantes para reiterar a democracia, é esse o espetáculo que estamos dando. ninguém nasce bom ou mau, é a circunstância, realmente, que faz o homem. eu sou capaz de matar, você sabe disso. até de comer carne humana. então o que acho é que a missão de um homem, mais ampla, é detectar esse condicionamento, essa necessidade… não estou falando nenhuma coisa nova, é o conceito até marxista de liberdade. é ter consciência da sua necessidade, porque daí você vai tentar não chegar a esse extremo. lula só tem falado isso, com outras palavras.”

“a criatividade não pode ter segredos.”

maria & o tempo

“nesta hora, seria a hora, eu penso. você pode ir para a religião, porque já tem de pensar no fim do caminho, na morte… mas estou achando formidável, o passado está me fazendo lembrar de coisas ótimas, que me inspiram e motivam agora, mas no real, no real. porque amigas minhas às vezes não estão aceitando a passagem do tempo. como é aceitar a passagem do tempo?, você pode me perguntar. vamos supor que esta prótese me impeça de andar correndo, mas… eu já não corria há muito tempo! estou sentindo que está havendo o impulso do contrário, por eu ter ficado mais, digamos assim, inválida, estou me movimentando muito mais. sonho muito que estou correndo de salto alto. no sonho, penso assim: dá para andar. mas eu já passei pela possibilidade de não andar, não é que voltei aos meus 15 anos.”

“este resgatar da inocência não é uma volta à infância, de ficar gagá. é uma volta do ‘não tenho mais nada a perder’, e obrigar as pessoas, com isso, a lhe verem de uma maneira mais universal, menos como a vizinha.”

maria & a espontaneidade

“estou dignificando a espontaneidade. antes parecia que eu era aquela sub-star, aquela que estava lutando contra a correnteza, uma coisa que identifico muito em zé celso, que teve uma época de ser o decano do ócio. nós vivemos essa utopia juntos. quando você vê um colega voltando a fazer o que ele dizia que ia fazer…, é isso! eu estive nos primórdios disso, de pegar uma picareta e tentar demolir o oficina.”

“o que me toca é a espontaneidade. com ela você se desarma. se desarmando, você reconhece a possibilidade de o outro também não estar lhe invadindo. você não tem uma defesa. é botar o outro numa boa, e ficar numa boa. por você ficar numa boa, você já deixa o outro numa boa, não deixa?” [deixa!!!]

higienópolis, maringá

“eu quis salvaguardar higienópolis, mãe coragem e seus filhos, e aquelas senhoras que, tenho certeza – pode ser a senhora sua avó -, fumavam cachimbo escondidas, fumo de corda. de onde você é? [sou de maringá…] nossa, tinha muitas lá [risos]. mexer com os tabus também não é ir lá e esculhambar com tudo. tenho uma manicure que leu na “quem”, mas ela não pode imaginar que eu faça uma coisa dessas, porque ‘ela é de higienópolis’, entende? ela precisa da personagem para continuar minha manicure. mesmo que não pense que é uma personagem, há uma cumplicidade em deixar eu ser assim. ela meio que entende, só não quer dizer [faz voz viajandona] ‘ó, dona maria alice, ó aqui, ó’, porque ela não é bem assim. fica uma coisa meio simpática, porque tem uma risada no meio. não é como as feministas, que às vezes acho muito chatas, ‘tem que fazer’. hoje não tem que fazer nada. tem que ser.”

maria & estamira

“está vendo esse filme da estamira?, também está mexendo com um tabu, que é a loucura. o que é loucura?, o que é sensatez? a loucura é quando você acha que o outro está louco.”

maria & a família

“minha mãe, há uns 30 anos, achou e jogou no lixo. ela ia nas minhas gavetas e achava. eu falei ‘mãe, mas por quê?, é tão caro…’. ela foi lá e pegou de volta [gargalha]. e depois não se tocou mais neste assunto. [será que sua mãe já deu um tapa na pantera?] não, não. acho que o caso dela é que jogava pif-paf, tomava um estrega, tinha outras maneiras de tocar no inconsciente. ela é simpática, está sempre sorrindo, gosta de estar perto de mim. e eu gosto de estar perto dela.”

“quando eu era contra a família, ‘vou padecer, mas não preciso dela’, fiquei mesmo meio usuária da família. aceitar as contradições é bom também. é bom ter uma certa infra, um chazinho de mãe, até mesmo para poder pirar. porque se você fica dependente demais do dinheiro, você passa a não ser escravo da família, mas vai ser escravo do patrão ou de alguma coisa. a gente quer é não ser mais escravo, né?, ninguém mandar mais, ninguém obedecer mais. o ideal não seria isso?”

“depois que o rafa entrou na minha família, eu passei a ser mais aceita. a sua avó, que é uma mulher decente, me trata muito bem, não me folcloriza.”

“minha filha é que não aceita muito. ‘você viu o que está acontecendo com a mamãe?’, ela disse para o meu filho. ‘quer fazer o favor de guardar o cachimbo, que o zé francisco [neto de maria alice] está aqui e não é bobo?'”

maria & brecht

“fiquei meio que orgulhosa de mim própria, de ‘migo’, de voltar a contatar amigas antigas, atualizando uma relação. não é saudosismo, é dizer ‘oi, comadre, olha onde eu estou’. foi através dos ‘netinhos.’ essa história de idade não existe. o que estou sentindo, aos 70 anos, é uma segunda plenitude, mais acabada. estou mais épica. entrei tanto no brecht que de repente virei personagem de mim mesma.”

maria & as mulheres

“acho tão interessante descobrir também uma parceria com as mulheres. eu tinha um problema com as mulheres da minha geração, porque quase todas elas… eu admirava muito essas mulheres do morro, que sobem o morro, aquela bundona, têm seu negão, vão lavar roupa, choram, são meio mães-de-santo. isso é muito bonito você ver, essas mulheres bravas, fortes. as nossas são meio chorosas, nunca está nada bom, deus, não sei que lá… eu não tinha muita afinidade com esse tipo de mulheres da minha classe social. acho que não é que essa mulheres viram o ‘tapa na pantera’, eu é que me porto diferente depois disso.”

maria & beckett

“gabriel villela acabou de me convidar para fazer um beckett, mas acho que não vou fazer. estou querendo sentir qual vai ser meu teatro agora. eu não queria ficar falando aquilo, já fiz o beckett, não sei mais se preciso do beckett para falar o que eu tenho vontade. sinto um certo tédio, de não ter encontrado uma forma nova. eu achei a ‘pantera’ uma forma nova.”

maria acadêmica

“queriam que eu fizesse tese de doutorado, se quisesse continuar na faculdade eu tinha que ter uma vida acadêmica. mas eu estava querendo fazer um show de brecht. foi aí que o teatro me revelou a mim mesma.”

“na usp, entrei numa área chamada teatro aplicado à educação, no departamento de artes cênicas da ECA, de 1969 a 1974. eu lecionava professores a depois lecionarem. fui posta para fora, tive duas comissões de sindicância. uma vez eu quis ir para portugal com o oficina e fui nas férias, porque eles não me deram permissão oficial. se você se afastava em tempo integral sem autorização oficial, estava cometendo um ato de desobediência. em 1973, fiz um negócio chamado ‘cabaré da rainha louca’, foi um aluno que escreveu uma peça para mim num curso de dramaturgia. a gente montou no campus, e eu fazia uma rainha louca [lê trechos de um artigo assinado por maria da paz na ‘istoé’, em 1977]: ‘os que já não gostavam porque isso contrariava o distanciamento previsto entre professor e aluno ficaram mais irritados durante a apresentação’, agora eu abro aspas: ‘em determinado momento do espetáculo, eu era violentada por um aluno, e eles se aproveitaram da cena para instaurar a segunda sindicância’. era o cacá rosset que me enrabava [ri]. fui afastada da usp em 1974, quando embarquei para lisboa. mas foi ótimo, porque aí as coisas estavam se definindo, me ajudando. eu não precisava tomar uma atitude a priori. a gente se entrega ao momento e de repente o próprio momento fala por você. [como agora?] é verdade…”

maria em diamantina

“me ligou uma educadora do colégio de aplicação, que tem a minha idade e vai votar no alckmin. nós vivemos uma vida muito rica juntas no aplicação. fizemos com os alunos uma viagem para mostrar o brasil velho e o brasil novo, ouro preto e brasília. quando passámos [acentua agudamente o ‘a’, como faz a personagem de ‘tapa na pantera’] por diamantina, fomos ver uma casa de jóias, de pedras, um garimpo. nossos alunos roubaram tudo [ri]. chegamos em brasília e já havia um aviso nos esperando. não queríamos que uns denunciassem os outros, passámos a noite inteira para que eles pusessem as pedras de volta, que a gente tinha que devolver, senão teríamos que voltar embora para são paulo. foi um trabalho de improviso educacional. fico até arrepiada, essa senhora, a julieta, estava comigo. na época eu já achava ela uma senhora mais… eu artista, ela educadora… ela me telefona agora para dizer que viu a ‘pantera’… mas, voltando, os alunos devolveram. tinha uma lá que não tinha roubado, mas era lindinha, todos roubaram para ela [gargalha]. mas foi muito interessante, foi um ato educacional fantástico que nós aprendemos, porque eles todos devolveram – um disse que tinha perdido, a gente não ficou atrás. mas sobraram umas pedrinhas… algumas foram entregues para julieta quando ela já estava aqui. ela não ia remeter outra vez para lá, guardou, não sabia o que fazer com as pedrinhas. tempos depois, num almoço, a gente sorteou, e eu fui uma das sorteadas [mostra a pedrinha verde que lhe restou]. é verde. é uma verde. como é que chama a verde? esmeralda? não, não… ametista, não? acho que é ametista. mas, então, sabe o que acontece? essas professoras da época, de educação mais cartesiana, me adoraram, telefonaram para dizer que adoraram saber que eu estava fazendo as coisas, riram. [dada essa história, ‘tapa na Pantera’ seria também um trabalho de improviso educacional?] [gargalha] pode ser.”

maria atriz

“uma época, meu apelido era árvore. sou mesmo uma árvore, frondosa.”

“eu comecei a perceber que estava concedendo para ser boa colega, e isso estava me colocando numa posição meio de autocompadecimento, não, de acomodamento. é algo interessante que acho que a velhice tem que me trazer, uma espécie de, embora o corpo não vá, você poder entrar numa plenitude mais acabada.”

maria no teatro oficina

“eu tinha uma atitude meio kamikaze, acho que a turma do oficina até tinha razão quando via em mim uma culpa social, aquela que vai exorcizar. deve ser um saco ter perto de você uma pessoa que está o tempo todo querendo ser exorcizada à sua custa [ri], uma burguesona que cai no meio da moçada que está vindo das favelas e quer já logo se enturmar. a gente viveu impactos muito fortes, muito interessantes. zé celso tem uma coisa que não é de professor, é de mestre. tem mesmo, tem, até um ponto que, chega uma hora, você tem que matar o mestre. [fez isso com zé celso?] tenho a impressão que sim. não sei qual é a opinião dele sobre a “pantera”. mas tenho quase certeza que ele vai gostar.”

“quando fiquei nua n’o rei da vela’, tinha dificuldade, vergonha, quando ele dizia ‘agora todo mundo nu’…”

controle, descontrole

“no tempo em que eu estava dividida, eu me sentia uma péssima atriz. construía o personagem muito de fora para dentro. a partir de “o rei da vela”, o filme, é que comecei a tomar muito mais contato com minha espontaneidade. só que aí ela jorrou demais, e eu comecei a perder também o controle, sabe? dionisos começou a se impor, é quando há um certo desbunde. não sei se era necessária essa catarse. eu tive sorte, tinha medo de não ter tempo de catar esses caquinhos e entender tudo, é isso que acho que está me acontecendo agora.”

“de repente, a única coisa que estou contente é de saber ou pensar que posso fazer alguma coisa para ajudar este momento de ida que estou sentido. como digo na ‘pantera’ [faz gesto como no filme], você vai… depois você pergunta para onde foi. porque está voltando um entusiasmo que fazia muito tempo que eu não tinha, e vejo que não é uma coisa voltada para mim mesma. é uma coisa que dá… será que a gente pode falar em esperança? não é aquela esperança babaca, de paz e amor, entende? é essa que a gente sentiu em 1968. e a gente percebe que não adianta mais alguém prometer, não é mais o getúlio. agora é cada um na sua função, ele lá e eu aqui. eu escolho ele para ficar lá.”

maria & lula

“acho o momento de agora maravilhoso. vejo essa crise como um grande momento histórico, que a sabedoria de lula permite. ele deve ter levado um susto muito grande, mas retomou. vou falar como atriz que também é espectadora: eu olho na cara de lula e vejo a espontaneidade dele. olho na cara dele e sei que ele quer que todo mundo tenha três refeições. eu sei que o poder para ele é um meio, é como o teatro para mim. eu sinto, sinto que existe na marisa, na relação deles…, eu olho os dois e gosto de vê-los juntos. ele aprendeu muito, hein? quem quer falar do lula anterior está querendo falar de mim anterior, de você anterior… ninguém pode falar de você tendo te cristalizado no tempo. tem que sentir você agora, o que foi que o tempo fez com você agora. ele tem uma equipe, ele tem amigos. começa pela marisa, ninguém fala dela, ela é uma puta mulher, inclusive bonita e gostosa [ri]. a gente sente isso, você não sente? e é um tabu. este tipo de senha é que não tive nas mulheres de um modo geral. geralmente, a minoria, quando ainda não está dignificada, é muito combativa entre ela mesma. não existe uma solidariedade. só existe solidariedade quando você resgata a sua individualidade e a do outro, quando não quer transformar o outro, nem idealiza o outro.”

“é dialética. a liderança real, democrática, ela cutuca. ela cutuca. ela não fala nem que é bom nem que é ruim. ela cutuca. cutuca por quê? qual é a subversão disso? é você se expor, num lugar onde tudo tem que ser falado ao contrário. você assiste a essas cpis e percebe claramente que quem está atacando lula está armado. agora é que parece que o cláudio lembo, com o ministro da justiça, márcio thomaz bastos, está começando a ficar interessante. não se fazia isso.”

“o que você pode fazer? não é por desculpar as suas limitações, mas ser gentil com você mesmo. é perceber que não é, como diz essa heloísa helena, ‘sou honesto, porque nasci assim’, não sei que lá, ‘eu não roubo, mas você rouba’. não é por aí. é criar condições para que não haja necessidade. educação é uma coisa muito importante mesmo, eu acho, e um presidente agora que dê essa possibilidade de a gente entender… claro, vamos punir dentro do possível, mas eu não gosto da posição do fernando gabeira também, sabe? não é caça às bruxas, mas é um pouco ‘eu sei, você não sabe’, ‘você roubou’. vou votar, por exemplo, no josé eduardo cardozo, que teve um posicionamento firme dentro das cpis, mas não ficou dono da verdade, cagando regras, não abandonou o barco também. é sobretudo dando seu exemplo, fazendo as coisas, tentando… é difícil, porque é um crescimento, é você também querer crescer, não ser mesquinho, e não ser também utópico, não é mesmo? porque também é de repente aceitar um pouco seu caminho, ser feliz. se você está feliz, você quer a felicidade do outro.”

maria & lembo

“achei fantástico o cláudio lembo, surpreendente. sabe o que me aconteceu depois disso? comecei a perceber que não tem partido. é claro que partido existe, mas você tem que começar a descobrir um outro veio de comunicação. como são as pessoas? como elas se portam nessa hora?”

maria & a situação

“as revistas de situação não sabem como dar a notícia. eu sou famosa, mas, ao mesmo tempo [ri], eles não podem comprar essa, e querem falar de you tube, do fenômeno da mídia, e ficam por aí, ‘é uma atriz, esteve no oficina’. zé celso é um gueto, os louquinhos estão presos lá, então pode. agora está uma solta assim em higienópolis? só avisem que eu estou de muleta, então não vou muito longe [ri]. tem a revista ‘higienópolis’, que circula aqui no bairro, nessa eu queria sair. [essa não procurou você?] não, menino, imagina. não dá. pegaram débora bloch, marília pêra, que estava no teatro aqui… é preciso ser famosa de alguma maneira, mas, para ficar famosa na visão da situação, eles têm que me folclorizar. aí dá. [sente que está sendo folclorizada?] sinto. a vida toda… se eu quiser ficar do ponto de vista deles, eu me estrepo. é a mesma coisa de ser convidada para ir a uma casa chiquérrima e vai com seu vestidinho, você se sente fora. mas, no meu caso, eu sou artista, então tenho meu universo. não é que eu queira me esconder atrás da pantera, é que eu sou a pantera. então me respeitem, porque eu mordo. [morde como?] tenho 1,3 milhão que dá para acionar. quer dizer, não estou querendo sair para a briga, mas também não estou querendo ficar na janela.”

maria folclórica?

“sabe o gueto? o meio pode entender, mas no gueto. o gueto conhece o seu lugar. até aí tudo bem. brecht tem muito esse tipo de personagem, a mudinha de ‘mãe coragem’, que tem um pouco a ver com dom quixote, com ‘o idiota’ de dostoiévski… são pessoas que trazem uma forma utópica de relacionamento, mas são colocadas como subnormais, às vezes até extra-normais. mas são pessoas que acabam sendo aceitas porque esse é a louca da aldeia, você se acostuma com ela. inclusive, é até bom, porque ela fica meio pára-raio das coisas, ou então você se sente fazendo uma grande caridade, ‘coitada, ela é tão simpática, mas é despirocada’, embora possam ser profetas do seu tempo, como antônio conselheiro. [bodes expiatórios?] entra no bode expiatório, mas sobretudo representa uma espécie de esgoto de todos.”

o “tapa na pantera” é “uma obra de ficção”?

“o texto, se você vir, é um monte de piadas antigas, piadas de papagaio. eu não me esqueci, de jeito nenhum, das divas de brecht, que são donas do prostíbulo, mas não são realistas-naturalistas: elas já estão falando sobre a própria coisa, então elas já cantam com um certo afastamento.”

“a piada às vezes é ao contrário. você faz uma piada sobre si mesmo justamente porque você sai de você e se coloca na posição de todos. aí você pode rir, se colocar no lugar.”

maria atrás da pantera? maria na frente da pantera?

“em cima da pantera [ri]. saci [ri], a saci-pantera [ri]. estou achando o humor uma coisa muito interessante. vejo que todas as vezes que se fala a favor da maconha, mas fazendo uma cara assim [faz expressão grave], não é tão subversivo quanto rir um pouco. a minha risada é a risada da própria situação. eu já estava antevendo, na gravação os meninos me pegavam na máquina e cagavam de rir na minha frente. eu estava rindo deles. você vê que a montagem desse filme é que é o grande roteiro. o tempo que dá é uma linguagem. foi por isso que comprei um computador, eu tenho que ver isso.”

“o mais interessante é quando você tem um movimento de dentro para fora e, depois, toma consciência da importância… não é importância, há uma coincidência. as pessoas já não agüentam mais, já estão sentindo outros valores, os valores da alegria, da verdade, do prazer.”

“quando a polícia pega aquelas toneladas me dá uma pena, penso ‘nossa, agora eles vão ter que plantar tudo de novo…’ [ri]. gente, se eu for presa eu levo vocês, hein? mas acho que agora a gente tem mesmo que decodificar um pouco, vulgarizar um pouco, não? é político, né?, vulgarizar um pouco. e eu tenho sempre o filme lá, eu sou uma atriz, pronto.”

maria E medo, maria OU medo

“não estou com medo. quando, em 1968, zé celso foi preso, foi preso com meu carro, e eu também fiquei pensando que já, já iam me pegar. estava professora da usp e tal. também acho que, realmente, não estou fazendo apologia. estou só, com isso, querendo me aceitar um pouco. descobri, por exemplo, que o vício não está na bebida, não está no cigarro, não está aqui [no cachimbo]. está em você não saber usar e por que usar. se você usa para acabar com sua auto-estima, para se mortificar, ou para morrer, isso é que acho uma coisa absurda. mas, se você tem um sítio, planta sua maconha… [você planta?] não, mas já plantei. agora não, porque não tenho terra. é ‘a parte que me cabe nesse latifúndio’ [ri]. também não foi para ser rebelde, foi porque a gente tinha galinha também, tinha isso, tinha aquilo, era gostosa a vida. também fui um pouco de sítio, nessa época todo mundo era.”

maria & a globo

“acho que para novela da globo só iam me convidar se eu ficasse mais folclórica ainda, se ficasse consuelo leandro, ‘zorra total’, escolinha de não sei quem, ‘a velha maconheira’… se fosse para ser um papel que glória menezes faria, e que acho que faz muito bem, eles sabem que eu não vou fazer bem. eu também sei que não vou fazer bem. cada macaco no seu galho. mesmo sendo personagem, será que fernanda montenegro faria a pantera? eu acho que não, não por ela ser uma má atriz, mas porque prolonga, depois de certo tempo a sua persona é também a atriz. isso é em todo o mundo, não só no brasil por ser um país onde a cultura é mais maniqueísta, mas, depois de um certo tempo, a máscara meio que adere em você, sobretudo numa atriz como eu, que também tinha vasos comunicantes entre o que fazia e o que estava representando. com zé celso, a gente era a gente mesmo, eu me apresentava como professora universitária.”

“não deu tempo de ser reconhecida na rua [na época de ‘sassaricando’]. eu também não ficava muito na rua. hoje ainda falam assim: ‘aaaaah… a senhora é aquela… como é que é seu nome?…’, querem que eu fale. se não falo, ‘não, você trabalhou com aquele… paulo autran!… eu me lembro muito da senhora!’. pensam que sou a jandira martini. ninguém sabe muito bem. precisa ficar muito na revistinha. quando comecei a perceber que era isso que tinha que fazer, percebi que eu não tinha talento para isso. não dava.”

maria & o $uce$$o

“muitas vezes as pessoas, por ter a globo atrás, têm grana, têm um teatro bom, o público vai porque tem segurança… [mas já não podem falar o que realmente pensam?] exatamente. nem sei mais se pensam, também. já viciaram em viver aquilo que está ali, não correr risco.”

“mas qual é o ator que quer ser anônimo? a.a., ator anônimo? [risos] não!”

“o sucesso também dá dinheiro, né? eu fico com pena de não ter mais dinheiro. imagine se eu tivesse r$ 1 por cada netinho. imagine a vaquinha, ‘maria alice pede r$ 1 para cada netinho’ [gargalha]. estava rica, ganhei na mega, r$ 1,3 milhão. caridade, né?, ‘pantera entra no asilo’ [ri].”

“esse anonimato da televisão é bom também, porque geralmente quando a pessoa fica celebridade tem um pouco um comportamento de que não gosto, que é meio mentiroso, quer pegar em você para ficar igual, meio submisso, ou autoritário – não pensa você que essa gente também não te rasgava, não queria também que você morresse. é a mesma coisa de quando você vai ao circo, o maior espetáculo é o trapezista cair. é duplo esse sentimento do outro que faz por você. se o outro faz por você, você tem um ódio intrínseco. você tem uma admiração, mas é uma admiração relativa. o ideal seria você também fazer.”

o assédio à pantera

“aqui no prédio, todo mundo deve ter visto. tem o luiz fernando, do sétimo andar, que disse ‘dona maria alice, estou telefonando para cumprimentá-la’ [ri], que gracinha. ‘mudei agora há pouco, gostei muito, viu?’, como se estivesse falando de uma roda de shakespeare.”

“teve o jornaleiro, ele me disse assim ‘meus filhos adoraram a senhora’, os filhos pequenos dizem ‘meu pai é que dá jornal para ela’. ele também já gosta de mim, aí é que está, se a persona é a velhinha, não é o neguinho…, o meio é a mensagem, muda muita coisa. se ela é de higienópolis, então…”

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