Em 1975, recém-separado de Edith Wisner e recém-casado com a também estadunidense Gloria, Raul Seixas foi passar um tempo com a família da nova mulher nos Estados Unidos. Ali, reencontrou seu guitarrista, Jay Anthony Vaquer, irmão de Gloria, que o acompanhou a partir de 1970 no Rio e retornara ao seu país de origem para estudar Fotografia e Cinema (evitando assim ser preso por ter fugido do Exército para escapar ao alistamento à Guerra do Vietnã). Raulzito tinha ganhado de presente uma filmadora Super-8 do sogro e, ao se dar conta que o cunhado granjeara acesso a equipamentos de filmagens na sua universidade, resolveu escrever, dirigir e estrelar um filme, um autêntico road movie.
“Estou saindo para o Triângulo do Diabo para fazer meu primeiro filme. Escrevi todo o diálogo e nesse filme meu trabalho de todos os LPs lançados e não lançados está condensado em uma fita de duas horas de projeção. Quero o Oscar“, declarou Raulzito.
Lido hoje, o script inédito do filme O Triângulo do Diabo é uma revelação em cascata sobre as viagens da cabeça de Raul Seixas. A sinopse é a seguinte: Raul é ele mesmo (nos créditos, apareceria “Raul Seixas como Raul Seixas”), Gloria é ela mesma, Jay Vaquer é ele mesmo. Fascinado pelo mistério do Triângulo das Bermudas, no qual tinha desaparecido, em 1918, o navio USS Cyclops (e inúmeros aviões e embarcações), e sobre o qual tinha sido lançado um livro muito popular em 1974, de Charles Berlitz, Raul imaginou uma pequena expedição de investigação que partiria de New Orleans até uma ilhota nas Bermudas (a cerca de mil km de distância). Essencialmente, Raul queria, com seu roteiro, questionar a dualidade entre Bem e Mal, a fé na binariedade dos sentimentos, enfatizar o caráter supersticioso nas crenças em torno do Diabo e o paradoxo entre o Homem Novo de Nietzsche e os afetos inerentes à condição humana.
“O script não contém somente ideias e atitudes, mas é a expressão cinematográfica concreta, que dá ao filme identidade própria”, escreve Jay Vaquer. “Nele também está como se dispõem as tomadas, ou seja, as longas, médias, close-ups, o ritmo da edição, os ângulos da câmera e a interrelação do som e da ação indicados”. Vaquer estava constantemente filmando Raul e Glória em sua busca por locações, tanto em 16 mm quanto em 35 mm, e fotografando.
Na história, em preparação para a viagem, Raul entra em bares e hoteis da Bourbon Street, como o lendário Crazy Shirley’s, ou em praias de Biloxi, no Mississippi, tocando as próprias canções, como Eu Sou Egoísta, Rock do Diabo, É Fim de Mês (algumas que ainda nem tinha gravado, como Todo Mundo Explica, que ele chama de Não me Pergunte Por que), e vai construindo seus questionamentos metafísicos e existenciais. É como se fosse um portal para um mundo secreto de Raulzito – descobre-se, por exemplo, que ele queria usar uma composição do vanguardista John Cage, Music for Marcel Duchamp (1947), na trilha sonora. Que já planejava gravar Do You Know What It Means To Miss New Orleans, do repertório de Louis Armstrong (que registraria em 1977 no disco Raul Rock Seixas). As gravações disso chegaram a ser reunidas num CD em 2003 por Vaquer, mas a família do cantor baiano não autorizou o lançamento.
“A intenção da obra O Triângulo do Diabo era fazer o filme”, conta hoje Jay Vaquer, aos 77 anos. “Não aconteceu porque Raul não conseguia parar de beber álcool”. Raul logo se pirulitou de volta para o Brasil para trabalhar no novo disco e deixou o filme para lá. No final, o making of da pré-produção, realizado enquanto Raul, Jay e Gloria procuravam locações para o longa em New Orleans, acabou restando como o documento daquela aventura. Jay usou pedaços das filmagens para criar os videos e ajudar Raul na vendagem do seu disco Novo Aeon (daquele mesmo ano, 1975, o primeiro de Raul sem a participação do guitarrista). A foto da capa do disco Raul Rock Seixas é daquelas sessões de gravação em New Orleans, vendida por Jay para a gravadora.
Um ano após a morte de Raul, a mãe do baiano enviou a Jay, atualmente vivendo na Georgia, Estados Unidos, os manuscritos do script do filme O Triângulo do Diabo. O guitarrista reuniu o material fotográfico que tinha e organizou um volume para lançar pela Amazon Publishers. Mas a empresa “ferrou” com a ordem do material, reclama Jay. Fotos coloridas foram alteradas para preto e branco, a qualidade ficou horrível, aponta. O número de páginas e as legendas não foram encadeadas corretamente. “Me disseram que, para fazer as correções e submeter novamente à edição eles queriam US$ 1,5 mil por 100 cópias”. Também houve problemas com o ISBN da edição e a data de direitos autorais. Jay Vaquer imprimiu somente 90 cópias do livro-script, com as quais, eventualmente, presenteia amigos (pensa em fazer uma edição com IA e republicar). A edição traz os manuscritos e apontamentos que Raul fez para o roteiro.
Jay Anthony Vaquer foi casado com a cantora brasileira Jane Duboc, com quem teve um filho, o cantor carioca Jay Vaquer. O texto de apresentação que fez para O Triângulo do Diabo é rico em informações sobre o começo da carreira de Raulzito, seu método de composição (com controvérsias) e histórias de sua ascensão ao estrelato. Uma delas: em 1971, quando ainda tentava emplacar como artista (e trabalhava como produtor na RCA), Raul chamou Jay para irem à TV Globo. Tinham sido convocados por João Araújo, da Som Livre, que lhes disse que Chico Anísio estava gravando um LP para a trilha sonora do seriado Linguinha X Mr. Yes, um humorístico que era exibido após o Jornal Nacional. Chico pediu que fizessem a canção Mr. Yes. Assim foi: na faixa, cantada por Jane Duboc (por um erro da gravadora, o sobrenome foi grafado errado, Budoc). Nessa canção, a versão e a produção são de Raulzito e a guitarra e o arranjo são de Jay Vaquer.

Raulzito e Jay Vaquer então passaram a trabalhar para Chico Anísio fazendo versões de piadas de humoristas estadunidenses para o português. “Raul era bom em fazer as versões e trazer para o humor contemporâneo”, conta Jay. “Era um grande produtor”.
O filme foi um sonho que chegou a entrar em gestação. “Nós tínhamos que limitar nossas ideias conforme a verba disponível. Iríamos filmar em 16 mm e, com um baixo orçamento, fazer um filme cult como Easy Rider, com Peter Fonda”, lembra Jay. “Começaríamos nos Estados Unidos, na cidade de Columbus, na Geórgia, New Orleans, na Louisiana, Panamá City, na Flórida e em uma das ilhas do Golfo do México”.

A ilustração acima é um desenho em que Raul empunha a arma de raios gama que seria usada, no filme, durante a cena do Homem Novo em um lago
Desconhecia essa história,mais uma do baú do Raul.