O que torna Lady Tempestade particularmente notável é a forma como a peça constrói uma performance sobre uma tríplice presença no palco. Andrea Beltrão não interpreta apenas uma personagem. Ela se manifesta em três dimensões distintas, mas interligadas. Há a figura da atriz, que enfrenta o desafio de um novo monólogo após o sucesso de Antígona; existe a personagem A., uma mulher que recebe e se angustia com a leitura de diários com revelações doloridas do período da ditadura militar; e, finalmente, há Mércia, a advogada-militante da vida real, cuja indignação e força invadem o palco com a força de uma tempestade.
Andrea Beltrão transita por essas dimensões de forma suave e orgânica, incorporando com a devida intensidade, os conflitos e as incertezas de cada uma. A atriz consegue fazer o público se reconectar com a trama já de partida, quando brinca no palco que todos devem desligar o celular, dando o exemplo a todos. Mas o que se destaca são as transições entre ela, A. e Mércia, que ocorrem tão naturalmente que poderiam até causar um certo desvio da atenção. Mas é pouco provável que isso venha a ocorrer, a atriz não permitirá.
O diálogo contínuo entre a mulher que resiste (Mércia), a que reflete sobre essa resistência (A.) e a que a personifica (Andrea) é a grande potência de Lady Tempestade, fazendo com quem uma luta histórica não tão popularmente conhecida deixe de virar uma abstração distante (inclusive, geograficamente) para se tornar uma experiência cênica visceral e palpável, que vai se manifestar na pele, na voz e no corpo da artista. A peça está em cartaz no Teatro Faap, até outubro, após cumprir uma temporada inicial em São Paulo no sagrado Teatro Anchieta, do Sesc Consolação, e antes, no Rio, no Teatro Poeira.
A jornada da pernambucana Mércia Albuquerque Ferreira, a Lady Tempestade, é o mote desta peça, dirigida por Yara de Novaes. A advogada começou sua luta após presenciar, em 2 de julho de 1964, o ex-deputador Gregório Bezerra ser arrastado seminu por militares. Ela decidiu então lutar com todas as forças para defender as vítimas da ditadura. Não uma, nem duas, mas dezenas de presos políticos nordestinos. E ela registrou tudo em anotações que um dia vão parar nas mãos de A.
Ao iniciar a leitura da caixa misteriosa, que continha cartas, processo jurídicos e anotações pessoais, esta personagem interpretada por Andrea Beltrão se vê voltando ao passado, mas refletindo os efeitos no presente cujos fatos insistem em se repetir. A dramaturga Silvia Gomez se uniu a Andrea Beltrão e Yara de Novaes para, de forma engenhosa, retratar o que foi esse período sombrio e infame da História brasileira.
Na peça, há escolhas cirúrgicas para discutir o tema, como a de não nominar os algozes da ditadura. Sabe-se quem são eles, os responsáveis pelas torturas, pela violência legitimada por um Estado ditador, mas ao evitar a reprodução do horror-explícito e até mesmo ao chamar os militares de “gafanhotos”, Lady Tempestade ganha uma nova faceta mais profunda e humana. A história foca nos dramas das mães, dos pais e filhos que buscaram ajuda na luta incansável da advogada, que chegou a ser presa 12 vezes pela ditadura. A narrativa se torna, dessa forma, um delicado e poderoso estudo sobre a resiliência e a dignidade humana.
O espetáculo Lady Tempestade força o público a um julgamento incômodo, mas indispensável. A presença do filho de Andrea Beltrão, Chico B., na sonoplastia, serve como um sutil e comovente lembrete: a luta das gerações anteriores ecoa na vida das que vieram depois. A mãe que defende os filhos dos outros é, em última instância, a mesma que protege o seu. Ao refletir sobre isso, a peça é um convite para que mergulhemos nas nossas próprias histórias, perpassadas por esse passado que não nos abandonará jamais. A obra Lady Tempestade se impõe, assim, não como uma biografia (o que já seria grandioso pela personagem), mas como uma investigação sobre a memória, a resistência e como o passado se projeta no presente de cada brasileiro.