“A Flipei vai acontecer e vai ser gigante”

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A organização da Feira Literária Pirata das Editoras Independentes garante inauguração amanhã, apesar do cancelamento do uso da Praça das Artes pela Fundação Theatro Municipal e pela prefeitura de Ricardo Nunes

Abraão Mafra ataca outra vez. A cinco dias do início da sétima edição da Festa Literária Pirata das Editora Independents, a Flipei, o diretor-geral da Fundação Theatro Municipal de São Paulo (FTMSP) determinou o cancelamento da cessão do espaço da Praça das Artes, no centro de São Paulo, para a realização do evento cultural. Não é uma decisão isolada do administrador público e bacharel em direito Abraão Mafra de Oliveira Lopes, nomeado para a direção da fundação em 2023, durante a gestão do atual prefeito paulistano, o emedebista Ricardo Nunes.

Em junho de 2023, Mafra participou pessoalmente do recolhimento de bandeiras LGBTQIA+ expostas na fachada do Municipal, interrompendo uma tradição iniciada em 2019, de marcar o Mês do Orgulho LGBTQIA+ com essa manifestação de solidariedade por parte do mais tradicional teatro municipal de São Paulo. A pecha censora volta a se pregar agora ao Theatro Municipal (e, por consequência, à gestão de Ricardo Nunes), desta vez num atentado contra a expressão livre de pensamento numa feira literária de princípios sabidamente progressistas e de esquerda. A produção da Flipei garante a inauguração do evento a partir de amanhã, no Galpão Cultural Elza Soares, no bairro central dos Campos Elísios, do coletivo Armazém do Campo, ligado ao Movimento Sem Terra (MST).

Em nota, a FTMSP alegou como motivo oficial do cancelamento o transtorno que a feira causaria no retorno às aulas da Praça das Artes, mas acrescentou mais um fator: “No lugar de um festival para promover a literatura independente, de grande valia, a feira tinha em sua programação conteúdo exclusivamente de apelo ideológico, com indisfarçável viés eleitoral. Por este motivo, a fundação suspendeu o evento por entender que seus organizadores usariam uma estrutura pública para interesses políticos e eleitorais”.

Outra gestão controversa de Mafra aconteceu em março de 2024, quando o Theatro Municipal sediou a entrega do título de cidadã paulistana a Michelle Bolsonaro, mesmo depois de o Tribunal de Justiça de São Paulo ter barrado a realização da cerimônia por risco de desvio de finalidade do bem público e falta de impessoalidade. Portanto, se não francamente bolsonarista, a gestão de Abraão Mafra se alinha aos preceitos da extrema direita, que preconiza liberdade de expressão seletiva, da qual exclui, por exemplo, a cidadania LGBTQIA+ e o pensamento progressista e/ou de esquerda.

A Flipei afirma que manterá a realização completa do evento, que traz entre os convidados deste ano o historiador israelense Ilan Pappé, crítico frontal do sionismo e do genocídio palestino por Israel; o ativista brasileiro Thiago Ávila, integrante em junho passado da tripulação da embarcação Madleen, que levava ajuda humanitária à Faixa de Gaza e foi interceptada por Israel; a jornalista franco-argelina Louisa Yousfi, autora do livro Permanecer Bárbaro (2023); a socióloga boliviana Silvia Cusicanqui, referência em pensamento decolonial; e a historiadora e romancista surinamesa Cynthia McLeod, autora de livros sobre relações raciais no período colonial escravista, entre muitos. Até esta terça-feira (5), o Theatro Municipal mantinha ativo um link para a programação da Flipei em suas dependências, embora o conteúdo do link já tivesse sido removido.

O cartaz da Flipei 2025, antes da interdição da Praça das Artes

Entre os temas abordados na edição 2025 da Flipei e considerados “eleitorais” pela FTMSP, constam o genocídio palestino e a ameaça sionista, África vermelha e a luta pan-africanista, luta de classes na era digital, América Latina entre o autoritarismo da direita e as contradições da esquerda, a relevância atual de O Capital de Karl Marx, educação antimachista, legitimidade da Polícia Militar na segurança pública, lutas anticoloniais e anticapitalistas, fanatismo religioso, combate à desinformação, luta contra a precarização e fim da escala 6 x 1 nas jornadas de trabalho, criminalização da cultura periférica, privatização do espaço público, racismo ambiental, ascensão da extrema direita e das big techs, violência neoliberal, corpos trans no esporte, anti-imperialismo no Sul Global, cem anos do martinicano Frantz Fanon (autor de Pele Negra, Máscaras Brancas, de 1952) e do piauiense Clóvis Moura (autor de Rebeliões na Senzala, de 1959, e Sociologia do Negro Brasileiro, 1988)…

Emendas revogadas

O envolvimento do prefeito Ricardo Nunes no cerceamento à Flipei ficou explícito na quinta-feira passada, um dia antes do anúncio da retirada da feira da Praça das Artes. Foi quando a Casa Civil da prefeitura anunciou a suspensão de três emendas destinadas pelos vereadores paulistanos Luana Alves (Psol), Nabil Bonduki (PT) e Sílvia Ferraro (Psol) para montar a infraestrutura básica da feira literária. “A gente interpreta que a partir do momento em que o presidente da Fundação Theatro Municipal olha a programação e se incomoda com ela, deve haver uma ação de bastidor para que o evento não aconteça”, afirma um dos produtores da Flipei, José Renato Fonseca. “Não tenho provas disso, mas a gente acha que tem a ver uma coisa com a outra.”

À parte as emendas, a 7ª Flipei recebeu patrocínio público federal, via Política Nacional Aldir Blanc, e do governo paulista, via ProAC (Programa de Ação Cultural). Estão previstas para esta edição festas, discotecagens e apresentações musicais do rapper Rincon Sapiência e da banda hardcore Dead Fish. A programação tem sido atualizada nas redes sociais da Flipei, que é gratuita para o público em geral e, diferentemente da maioria das feiras literárias, também para as editoras expositoras.

Leia a seguir entrevista de José Renato Fonseca sobre o cancelamento da parceria entre Flipei e Prefeitura, sobre a possiblidade de que o lobby sionista esteja por trás do cancelamento pela Fundação Theatro Municipal e sobre as medidas judiciais que a organização pretende tomar pelo rompimento do contrato fora do prazo (estipulado pelas partes em no mínimo 15 dias).

Pedro Alexandre Sanches: Você pode fazer um apanhado dos últimos acontecimentos envolvendo a Flipei e a Prefeitura de São Paulo?

José Renato Fonseca: A gente fez todos os trâmites junto com a Sustenidos, a OS [Organização Social] que gere o Theatro Municipal, para a realização da Flipei na Praça da Artes. Fizemos plano de implantação, tiramos toda a documentação para fazer o evento nos conformes que nos pediram e tudo mais. Apresentamos nossa programação completa para eles no dia 14 de julho, já com os nomes todos, Ilan Pappe, Thiago Ávila, todos os participantes, nomes das mesas, assuntos e temáticas que iam ser tratados. Na terça-feira da semana passada, dia 29 de julho, eles subiram a programação completa no site do Theatro Municipal, com todos os nomes. No dia 31, a Sustenidos teve uma reunião com o Conselho da Fundação Theatro Municipal para expor todo o planejamento e funcionamento, de como a gente ia atuar lá dentro em função da existência das escolas da Praça das Artes, que iam continuar funcionando junto. Apresentamos e batemos toda a programação, mostrando que não ia atrapalhar a programação das escolas.

PAS: Que retorno tiveram?

JRF: No dia 1º de agosto, às 17 horas, nós da organização da Flipei fizemos uma última reunião com a Sustenidos para arrematar e alinhar a operação, e tivemos o retorno de que foi tudo bem na reunião com o conselho, que estava tudo certo. Na segunda-feira [4 de agosto], iam começar a chegar materiais, equipamentos, ia começar a montagem. Íamos virar madrugada para fazer as coisas mais barulhentas e não atrapalhar a escola, com uma produtora para acompanhar a montagem na madrugada. Estava tudo caminhando bem. Toda a documentação para alvará e vistoria estava encaminhada, com visitas agendadas para a terça-feira [5 de agosto]. O alvará só sai com a estrutura montada. Tudo isso foi alinhado na reunião de quinta-feira às 17h. 

PAS: O que mudou então?

JRF: Na sexta-feira [1º de agosto], às 20 horas, eu recebo uma ligação da Sustenidos, me dando a notícia de que Abraão Mafra, em nome da Fundação Theatro Municipal, mandou para eles um ofício cancelando a cessão do espaço para a realização da Flipei. Isso aconteceu na sexta-feira às oito horas da noite. Colocamos que aquilo era arbitrário, que o contrato assinado da parceria entre a Flipei e a Praça das Artes não permitia uma comunicação dessa de última hora, faltando menos de 15 dias. A antecedência mínima de cancelamento de 15 dias era prevista no contrato assinado. Eles estavam infringindo um termo contratual, e avisamos que íamos tomar providências jurídicas para isso.

PAS: Como a Sustenidos se posicionou?

JRF: Fez uma reunião interna e posicionou para nós que, por parte das Sustenidos, eles bancavam o evento, ao que Abraão Mafra respondeu que ia mandar o caso para a Procuradoria. A partir disso a gente não teve mais reversão no sentido de uma autorização da fundação para a realização, apesar de a Sustenidos estar se colocando no lugar de querer bancar o evento, até para evitar processos. A fundação não voltou atrás, nós não temos segurança jurídica de que não vão fazer qualquer operação jurídica ou policial para impedir ou atrapalhar o evento. Dado isso, tomamos as medidas para a transferência do evento, que vai acontecer nos mesmos dias, nos mesmos horários, com as mesmas programações, no Galpão Elza Soares do MST, na Casa Luiz Gama, que fica ao lado, e no bar Sol y Sombra [na Bela Vista]. E a gente vai manter toda a nossa programação. 

PAS: Que prejuízos o cancelamento provoca?

JRF: Estamos tomando a medida de mudar para espaços privados que acolheram o evento, porque temos compromissos assinados com 600 trabalhadores, 180 editoras, 40 mesas, pessoas com viagem marcada, hospedagem reservada, equipe de trabalho, divulgação realizada. É impossível suspender esse evento nessa altura do campeonato para realizar depois. Temos uma série de compromissos assumidos com uma série de pessoas em viagens internacionais, inclusive, que impossibilitam a gente pensar em fazer isso depois. Então a gente vai realizar o evento nesses lugares e posteriormente tomar nossas atitudes cabíveis em relação à atitude da Fundação Theatro Municipal.

PAS: O prefeito Ricardo Nunes entrou diretamente em momento algum dessa cronologia?

JRF: Ele não falou com a gente em momento algum. Chegamos a ter conversas com seu secretário de Cultura, Totó Parente. Conversamos com ele sobre o evento na terça-feira passada, antes do cancelamento. Não tenho documento para comprovar, mas o secretário tinha se posicionado positivamente em relação ao evento, inclusive a nos ajudar na liberação de três emendas de vereadores que a gente estava tentando.

PAS: As emendas não serão liberadas?

JRF: Não vai ter nenhuma emenda para o evento. O secretário chegou e dizer que ia ajudar a liberação de pelo menos uma delas. Nessa conversa, ele se posicionou como achando o evento legal.

PAS: O prefeito então agiu pessoalmente, cancelando as emendas?

JRF: Não é que cancela, ele não assina a autorização. A Casa Civil enviou um e-mail para os três mandatos comunicando a não realização das emendas, isso entre quinta e sexta-feira, antes do documento da fundação. A Casa Civil mandou esse e-mail para os mandatos dizendo que as emendas não iam ser realizadas.

PAS: Há amparo legal para isso?

JRF: Tem amparo legal, emenda não é impositiva. A última decisão é do prefeito. Não é um ato ilegal. Mas uma das emendas, do vereador Nabil Bonduki, estava aprovada pela SPTuris, inclusive com dotação orçamentária indicada, aguardando só a liberação da Fazenda para a execução.

PAS: Ao que parece, há uma coordenação entre os dois acontecimentos, não? 

JRF: A gente interpreta que a partir do momento em que o presidente da Fundação Theatro Municipal olha a programação e se incomoda com ela, deve haver uma ação de bastidor para que o evento não aconteça. Achamos que tem a ver uma coisa com a outra, mas eu não tenho provas disso. Mas a partir do momento em que, em uma conversa com o secretário de Cultura, ele se coloca – em verbo, não por escrito – dizendo que vai tentar ajudar a liberação e depois, no dia seguinte, os mandatos recebem um e-mail de negativa e logo depois chega ofício da Fundação Theatro Municipal cancelando a cessão do espaço, a gente imagina que essas coisas se conversem, claro, apesar de não ter como provar.

PAS: As ilações de que seria uma ação do lobby sionista se baseiam em quê? 

JRF: Há uma suspeita de que tenha a ver com o lobby sionista e há uma suspeita de que é porque é uma programação que trata de temas que incomodam a atual posição do governo em relação a questões que envolvem sociedade, liberdade de expressão, discussões políticas que estão emergentes. Porque, ao mesmo tempo que essa nossa programação não pode, recentemente também mandaram tirar a bandeira LGBT que estava no Theatro Municipal. Mas ao mesmo tempo, também, uma homenagem a Michelle Bolsonaro no Theatro Municipal pode. Vai dizer que uma homenagem a Michelle Bolsonaro no Theatro Municipal não tem fundo político e ideológico?

PAS: …E eleitoral.

JRF: E eleitoral. Tem. É uma questão de posicionamento político.

PAS: Você pode fazer um apanhado histórico da relação da Flipei com os poderes públicos, nesses anos todos? 

JRF: A Flipei sempre enfrenta problemas políticos, sempre. Em Paraty, em 2019, teve a história do Glenn Greenwald no barco, os bolsonaristas ficaram soltando fogos e tentando impedir a programação de acontecer. Em 2023, a gente tinha mesas questionando a polícia e a presença da [filósofa feminista italiana] Silvia Federici, e tivemos vários problemas com a polícia de Paraty, que ficou tentando impedir o evento, fechar o evento mais cedo, interromper o show do KL Jay. É um evento que navega na contramão dos eventos hegemônicos, que traz um debate de questionamentos políticos-sociais importantes e progressistas em todas as suas edições. E em todas as edições teve alguma ação problemática, de tensionamento com os poderes públicos. Sempre aconteceu.

PAS: Mas nunca um cancelamento.

JRF: Nunca um cancelamento.

PAS: Como vocês vão contornar esse revés neste ano?

JRF: Começamos a contornar no final de semana, com várias articulações, uma onda imensa de solidariedade social na cidade como um todo, com várias pessoas, vários lugares, vários artistas e vários espaços se oferecendo para nos receber, entre eles o galpão do MST. A gente está levando a maior parte da programação para o galpão do MST, o Galpão Elza Soares, nos Campos Elísios. Estamos precisando reorganizar sete meses de trabalho em dois dias. Tem toda uma logística acontecendo, um diálogo com todos os fornecedores que já estavam contratados para fornecerem seus serviços na Praça das Artes, de reorganizar toda a nossa montagem, a partir de uma planta que tem que ser planejada do zero, que é o que gente está fazendo hoje [segunda-feira], para montar amanhã, para abrir o evento na quarta-feira, e a gente vai abrir o evento maravilhosamente bem. A Flipei vai acontecer a partir de quarta-feira.

PAS: E o caminho jurídico, qual será?

JRF: A gente ainda está avaliando, isso não tenho como dizer agora. Vamos tomar as medidas cabíveis, mas neste momento estamos nos precavendo de que a Flipei aconteça, inclusive com um corpo jurídico atuando para garantir segurança e tudo mais, para não aparecer nenhum tipo de confrontamento nos dias que o evento vai acontecer nos espaços parceiros. Depois que a Flipei passar vamos fazer os encaminhamentos jurídicos em relação ao que aconteceu com a fundação. 

PAS: Quanto ao público, que impacto vocês esperam após esses acontecimentos? 

JRF: A gente está contando que a Flipei vai ser gigante. É uma reação social à censura. A Flipei vai acontecer e vai ser gigante.

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