A cena é cinematográfica. Em ronda, o policial militar Nelson Antônio da Silva desfila pelo Morro da Mangueira montado em seu cavalo “velho e cego”, virtudes duvidosas que lhe permitem superar um medo atávico de equinos. Ao chegar no fulcro do morro, o mitológico Buraco Quente de Cartola, de Carlos Cachaça e da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, ele apeia do cavalo pangaré, amarra-o numa cerca e desce para o botequim, onde, entre violões, sambas e caninhas, assume sua persona mais popular, de Nelson Cavaquinho (1911-1986). Estamos no início dos anos 1930, tempo em que Nelson e Cartola (1908-1980) dão luz à única composição em dupla do autor de “A Flor e o Espinho” (1957) e do autor de “As Rosas Não Falam” (1976).

A história está rememorada com detalhes humorísticos suculentos, pelos próprios protagonistas, no livro Cartola – Todo Tempo Que Eu Viver (1988), de Roberto Moura, que explica por que não conhecemos o histórico samba feito a quatro mãos (as quatro patas do cavalo sem nome permanecem amarradas na cerca do Buraco Quente) por Nelson e Cartola. É tempo dos “comprositores”, que vendem os sambas que criam (e até os que não criam) para cantores como Francisco Alves e Mário Reis, por malandragem ou por necessidade de sobrevivência.
É Cartola quem conta o que aconteceu com o samba sem nome de que Nelson fez a primeira parte e Agenor de Oliveira (o Cartola, também chamado ANgenor por descuido do escriturário) fez a segunda: “O sargento cantou o samba, ‘pera aí, esse samba é meu’. ‘É meu, eu comprei do Nelson.’ ‘Mas a segunda parte é minha.’ ‘Ele me vendeu tudo.’ Vendeu o samba dele e a minha segunda parte e tudo. ‘Cadê o meu?’ – perguntei quando encontrei o Nelson. Ele me disse: ‘Ih, rapaz! Eu andava mal, precisava de um dinheiro aí, vendi um samba prum sargento, mas já gastei tudo, não leve a mal, não’. ‘Tá bem, mas nunca mais faço samba com você.’ Nunca mais fiz, ia fazer samba pra ele vender?” E assim terminou a parceria que (se) foi antes de ter sido.
No livro, Nelson conta mais ou menos a mesma história, com leves variações: em sua versão, o “comprositor” sem nome era tenente, não sargento, e seu colega de cavaquinho teria vendido apenas sua própria parte, não o samba inteiro. Eis a versão de Nelson: “Em todo lugar que ele aparecia ele dizia que o Nelson vendeu a música. Aí um dia eu me aborreci e disse: ‘Ô, Cartola, você anda dizendo que eu vendi a música, eu vendi a minha parte, agora tu vende a tua, porque a minha já vendi'”. Ao que parece, o sargento ou tenente desconhecido não chegou a gravar o samba, que existe na vida real, assinado por Nelson e (postumamente) por Cartola, porque entrou como samba de abertura do álbum Flores em Vida (1985), o derradeiro de Nelson Cavaquinho, sob o título “Devia Ser Condenada“.
As histórias se entrelaçam no livro de Roberto Moura, nas memórias dos dois compositores (sem “r”). “Nelson sempre foi aquilo mesmo, é boêmio inveterado. Ele chegava aí, bebia, um dia o cavalo foi embora, deixou ele sozinho”. Nelson confirma a veracidade da anedota: “Eu não gostava de trabalhar, mas me casei em 1931. Eles me cercaram e me jogaram na cavalaria. Eu tenho um medo de cavalo que só vendo. Eu gostava só quando ia rondar, eu montava só um cavalo velho e cego. Ia rondar, lá pra Mangueira, aquela coisa toda, foi quando conheci Cartola em 1933, mais ou menos, comecei a fazer choro, mas não agradava ainda, não”.
Nelson Cavaquinho prossegue: “Nesse tempo eu já tinha começado a beber. Então eu fui rondar a Mangueira e apeei do cavalo e amarrei numa cerca e fui com os outros cantar uns sambas no Buraco Quente. De repente, eu olhei lá pra cerca e o cavalo não tava mais amarrado lá. Era madrugada muito fria e os oficiais estavam descansando. Foi a minha sorte. Entrei pelo quartel, um cavalariço disse assim: ‘Ô, Nelson, o cavalo já tá há duas horas aí’. Eu fui na baia e o cavalo com a maior cara de sem-vergonha, parecia que tava zombando de mim”. Nelson conta essa história em 1981 e lamenta a partida do ex-(não-)parceiro: “O Cartola daquela época era o que estava vivo, estava em evidência, eu e ele. Agora estou sozinho, agora, quando eu vou eu não sei. Tomara que eu não vá. Tô até diminuindo para durar mais, né?”.
Sem vocação para aquele tipo de ronda, Nelson Cavaquinho logo deixou a polícia, mas Cartola tem mais revelações a fazer sobre o quase-parceiro: “Mandaram ele pedir a baixa dele porque ia ser expulso, ia acabar sendo expulso. Não dava pra isso mesmo. Quando você chegava no quartel lá tava ele deitado tocando cavaquinho. Depois botaram ele como bombeiro. Ah. Nelson saía com aquela pipa e eles ficaram esperando ele voltar, ele tava no botequim tocando cavaquinho”. Asas à imaginação é pensar em Nelson subindo o Morro da Mangueira em farda de extintor de incêndio, não mais a bordo de um cavalo “cego e velho”, mas de um caminhão-pipa.
Cavalos e caminhões-pipas à parte, não há como ouvir essa coleção de histórias saborosas sem lembrar a “Nega Luzia” do genial sambista Wilson Baptista (1913-1968), em dupla com Jorge de Castro. Esse parceiro, veja só, era um banqueiro de apostas clandestinas em corridas de… cavalos, tido como “comprositor”, que seria parceiro de Wilson em coisa de uma centena de sambas (é o que conta o biógrafo Rodrigo Alzuguir (em Wilson Baptistaq – O Samba Foi Sua Glória!, de 2013).
Um pouco mais jovem que Cartola e Nelson Cavaquinho, Luzia veio ao mundo em 1956, pela voz de teleco-teco de Cyro Monteiro. É um colosso a história tragicômica da Nega Luzia:
Lá vem a Nega Luzia
No meio da cavalaria
Vai correr lista lá na vizinhança
Pra pagar mais uma fiança
Foi canjibrina demais
Lá no xadrez
Ninguém vai dormir em paz
Vou contar pra vocês
O que a nega fez
Era de madrugada
Todos dormiam
O silêncio foi quebrado
Por um grito de socorro
A nega recebeu o Nero
E queria botar fogo no morro
Tocando “Nega Luzia” para os alunos em suas aulas de história da música popular brasileira na USP, o escritor, professor e violeiro Ivan Vilela abre um glossário para decifrar para as novas gerações os termos de época de Wilson Baptista: “cavalaria” é a polícia (montada); canjibrina é cachaça (ou gim tônica?); “xadrez” é prisão; Nero é o imperador doidão que tacou fogo em Roma no século I a.C.; “receber o Nero” é incorporar o santo na roda de (como se dizia à época) macumba; Nero é o exu que baixou em Nega Luzia em crise por overdose de canjibrina ou d personalidade.
Elaborado há 70 anos, o samba “Nega Luzia” é um espetáculo cinematográfico: cada verso é em si uma cena de filme. No prelúdio, Luzia desce o morro de camisola, desgrenhada, em surto, escoltada por uma tropa de policiais a cavalo – é plausível que entre eles estejam o cabo Nelson Cavaquinho e o sargento-tenente que comprou aquela antiga parceria com Cartola.
A tensão dramática é densa como um muro de tijolos: o que aprontou Nega Luzia para que se mobilizasse contra ela toda a Polícia Militar de Mangueira, do Rio de Janeiro, do Brasil, do planeta? Vamos devagar com o andor.

Mal Luzia desce o morro algemada rumo a outro buraco quente, a comunidade de Mangueira imediatamente se mobiliza para pagar a fiança de uma prisão que não é a primeira nem a segunda nem a terceira (“pra pagar mais uma fiança”).
É apostar que quem lidera a passeata e o crowdfunding em prol dessa “Charles, Anjo 45” feminina é um certo Cartola, secundado por uma pequena tropa não-militar: Carlos Cachaça, Dona Zica, Zé da Zilda (anteriormente conhecido como Zé com Fome, porque papava todas nos velórios e gurufins do morro), Zilda do Zé, Geraldo Pereira, Dona Neuma, Nelson Sargento (sargento???), Clementina de Jesus, Heitor dos Prazeres, Xangô da Mangueira, Jamelão, Leci Brandão, Guilherme de Brito, Alcione, Synval Silva, Beth Carvalho, Padeirinho, talvez visitantes circunstanciais como Pixiguinha, Ataulfo Alves, Cyro Monteiro, a divina dama Elizeth Cardoso, o poeta da Vila Isabel Noel Rosa, a dama do Encantado Aracy de Almeida, o parceiro-amigo-rival Paulo da Portela, a transcultural Elza Soares, quem sabe o maestro erudito e mangueirense honorário Heitor Villa-Lobos – uma pequena multidão.

A propósito, um portelense que não tem (quase) nada a ver com a cavalaria marítima mangueirense, mas mereceria entrar nessa rifa é Paulinho da Viola, se não por outro motivo graças à versão espetacular de “Nega Luzia” que criou em 1973, após 17 anos de esquecimento da obra-prima de Wilson Baptista.
Quanto às canjibrinas, bem, Nega Luzia certamente tem um extenso currículo, de bebedeiras e escândalos no barraco, nos botequins do Buraco Quente, no asfalto, no xadrez onde nesta fatídica noite “ninguém vai dormir em paz” – alguma dificuldade em visualizar o pagode-pugilato que ela arma a cada passagem por trás das grades? Difícil será convencer Luzia deixar o partido alto no buraco quente do xadrez para voltar filha pródiga ao Buraco Quente de Mangueira.
Como se diz hoje em dia (infelizmente em inglês), cinema puro é o clímax da tragicomédia, a madrugada vazia em que Luzia incorpora um exu chamado Nero e bota fogo no barraco, sob risco de o incêndio se alastrar pelo Morro de Mangueira. É hora de cabo Nelson voltar à cena, ex-machina, desta vez não a cavalo, mas sim dirigindo o caminhão-pipa que vai debelar a crise. E a volta triunfal pós-fiança?, merece ou não uma reentrada triunfal em Mangueira, com as honras e a trilha sonora do “Charles, Anjo 45” (1969) do salgueirense Jorge Ben (Jor)?
Dito isso tudo e contada tanta história, uma interrogação ribomba aos cinco (seis, sete) sentidos (que a pasteurizadora Globo Filmes não nos escute agora): como é que até hoje ninguém pensou em fazer o filme biográfico da amazona Nega Luzia e de sua cavalaria?
“Lá Vem a Nega Luzia”, a trilha sonora para um filme que nunca foi feito
- Nelson Cavaquinho, “A Flor e o Espinho” (Nelson Cavaquinho-Alcides Caminha-Guilherme de Brito), 1972 – maldição do samba, Nelson só ouviu sua própria voz em disco em 1968, quando participou do álbum coletivo Fala Mangueira!, e em 1970, quando lançou o primeiro de três LPs individuais; suave a um minuto do nascimento da bossa nova, a primeira gravação de “A Flor e o Espinho”, o clássico que marcou o pontapé inicial da dupla com Guilherme de Brito, é de 1957, por Raul Moreno
- Cartola, “As Rosas Não Falam” (Cartola), 1976 – Cartola registrou sua voz em disco pela primeira vez em 1942, no álbum coletivo Native Brazilian Music, coordenado pelo maestro Leopold Stokowski dentro da política (bélica) de “boa vizinhança” dos Estados Unidos ouvir sua voz gravada em disco que não foi editado comercialmente no Brasil e não está nas plataformas digitais; à parte tentativas passageiras de ser cantor em 1964, 1968 e 1970, só em 1974 Cartola gravou o primeiro de quatro LPs solo lançados em vida
- Cartola, “Chega de Demanda” (Cartola), 1974 – o primeiro samba composto por Cartola, no longínquo 1928, pregava pacificação e unidade entre as escolas de samba – e ficou inédito até 1974, quando o autor finalmente o cantou num disco coletivo para a Mangueira, bancado pela audaz gravadora de Marcus Pereira
- Carlos Cachaça, “Não Quero Mais Amar a Ninguém” (Carlos Cachaça-Zé da Zilda-Cartola), 1976 – clássica parceria de Cartola com Carlos Cachaça e Zé da Zilda (ex-Zé com Fome) com Cartola, colegas na ciência e na arte do Morro da Mangueira e da escola de samba Mangueira, “Não Quero Mais Amar a Ninguém” foi lançada pela genial Aracy de Almeida em 1936
- Carlos Cachaça, “Lacrimário” (Carlos Cachaça), 1976 – outra obra-prima de Carlos Cachaça, lançada por ele em 1968 no coletivo Fala Mangueira!, “Lacrimário” cresceu quando Clementina de Jesus cedeu espaço ao compositor para que a cantasse (e também “Não Quero Mais Amar a Ninguém”) em seu próprio LP de 1976
- Nara Leão, “Luz Negra” (Nelson Cavaquinho-Amâncio Cardoso), 1964 – em seu LP de estreia, Nara rompia parcialmente com a bossa nova (que até então a tivera como mero mascote), adentrando pela canção de protesto e jogando luz sobre Cartola, Nelson, Zé Keti e Elton Medeiros; no ano seguinte Elizeth Cardoso apresentou sua versão em estilo pré-bossa para “Luz Negra“, no histórico LP Elizete Sobe o Morro
- Chico Buarque, “Divina Dama” (Cartola), 1997 – o compositor Cartola estreou em disco em 1929, com “Que Infeliz Sorte“, na voz de Francisco Alves – o mesmo cantor que lançaria seu primeiro sucesso comercial, “Divina Dama” (1933); os encontros musicais de Chico Alves e Cartola estão indisponíveis no Spotify e que tais, assim como a maior parte da obra do “cantor das multidões”
- Francisco Alves e Mário Reis, “Rir” (Cartola), 1933 – primeiro a subir o morro para comprar sambas de Cartola, Mário Reis cantou o compositor do morro em dois duetos com Chico Alves: “Perdão, Meu Bem” (1932) e “Rir”
- Carmen Miranda, “Tenho um Novo Amor” (Cartola-Noel Rosa), 1932 – a segunda voz a interpretar Cartola foi a de Carmen Miranda, numa raríssima parceria do mangueirense com o maior poeta da Vila Isabel, Noel Rosa
- Ataulfo Alves, “Não Posso Viver sem Ela” (Bide-Cartola), 1942 – mineiro aquilombado nos morros cariocas, Ataulfo foi dos poucos a gravar Cartola na década de 1940, numa parceria com Alcebíades Barcelos, o Bide, um dos bambas do asfalto que remodelaram o samba a partir de 1927 a partir do bairro do Estácio
- Cyro Monteiro, “Rugas” (Nelson Cavaquinho-Augusto Garcez-Ary Monteiro), 1946 – o cantor Alcides Gerardi foi o primeiro a gravar Nelson Cavaquinho, em “Não Faça Vontade a Ela“, fonograma de 1939 que não circulou comercialmente; Cyro Monteiro foi o primeiro a convertê-lo em sucesso, lançando “Não Te Dói a Consciência?” (1942) e “Rugas”, entre outros sambas de fossa
- Roberto Silva, “Degraus da Vida” (Nelson Cavaquinho-César Brasil-Antônio Braga), 1950 – o segundo a levar Nelson Cavaquinho às ondas do rádio foi Roberto Silva, intérprete de bossa nova antes da bossa nova, no samba dramático e fatalista “Degraus da Vida” (1950): “Sei que estou/ no último degrau da vida, meu amor/ já estou envelhecido, acabado/ por isso muito eu tenho chorado”
- Dalva de Oliveira, “Palhaço” (Nelson Cavaquinho-Oswaldo Martins-Washington Fernandes), 1951 – a primeira voz feminina de Nelson foi Dalva de Oliveira, seguida por Elizeth Cardoso (“Amor Que Morreu”, em 1953), Ruth Amaral (“Cinzas” e “Garça”, em 1955) e Lucy Rosana (o monumento “Pranto de Poeta”, em 1957)
- Arranco de Varsóvia, “Devia Ser Condenada” (Cartola-Nelson Cavaquinho), 2021 – tardia, a primeira gravação para a única parceria Nelson-Cartola foi lançada em 1985 por Nelson Cavaquinho e não está disponível nas plataformas digitais
- Blecaute, “Pedreiro Valdemar” (Wilson Baptista-Roberto Martines), 1949 – a formidável galeria de tipos de Wilson Baptista foi inaugurada sete anos antes de “Nega Luzia”, em versos corrosivos de luta de classes: “Você conhece o pedreiro Valdemar?/ não conhece, mas eu vou lhe apresentar/ de madrugada toma o trem na circular/ faz tanta casa e não tem casa pra morar/ (…) o Valdemar, que é mestre no ofício,/ constrói um edifício e depois não pode entrar”
- Cyro Monteiro, “Nega Luzia” (Wilson Baptista-Jorge de Castro), 1956 – coube a Cyro Monteiro trazer a Nega Luzia ao mundo
- Roberto Silva, “Mãe Solteira” (Wilson Baptista-Jorge de Castro), 1954 – Maria da Penha viveu o mesmo drama da prima Nega Luzia, mas recebeu o Nero em condições extremas e trágicas: “O morro está triste/ e o pandeiro, calado/ Maria da Penha, a porta-bandeira/ ateou fogo às vestes por causa do namorado/ (…) parecia uma tocha humana rolando pela ribanceira/ a pobre infeliz teve vergonha de ser mãe solteira”; Martinho da Vila Isabel resgatou “Mãe Solteira” do esquecimento em 1982
- Jorge Veiga, “Meu Mundo É Hoje” (Wilson Baptista-José Batista), 1966 – assim como Jorge de Castro, o bicheiro José Batista (também conhecido como China da Saúde) foi outro notório “comprositor”, que assinou dezenas de “parcerias” com Wilson Baptista
- Aracy de Almeida, “Louco (Ela É Seu Mundo)” (Wilson Baptista-Henrique de Almeida), 1946 – “Louco” estreou na voz da futura jurada de programa de calouros Aracy de Almeida, provando que a Nega Luzia não era a única personagem doidona de Wilson Baptista: “Louco/ pelas ruas ele andava/ o coitado chorava/ transformou-se até num vagabundo”
- Elza Soares, “Louco (Ela É Seu Mundo)”, 1967 – Elza acrescentou novas potencialidades ao “louco” de rua que poderia fazer par tragicômico de vasos com a Nega Luzia
- João Gilberto, “Aos Pés da Cruz” (Zé da Zilda-Zilda do Zé), 1959 – lançado por Orlando Silva em 1942, o samba católico de Zé e sua Zilda transformou Mangueira em bossa nova plena pela voz de João Gilberto
- Geraldo Pereira, “Escurinha” (Geraldo Pereira-Arnaldo Passos), 1952 – mineiro de Juiz de Fora estabelecido em Mangueira, Geraldo tensionou com os fundadores-unificadores da Estação Primeira, propulsionou o samba sincopado e foi outro que viveu às voltas com “comprositores” – seria “Escurinha” uma prima de Nega Luzia, ou mesmo a própria Luzia?
- João Gilberto, “Bolinha de Papel” (Geraldo Pereira), 1961 – lançado pelos Anjos do Inferno em 1945, “Bolinha de Papel” também passou pelo raio modernizante bossa-novista de João Gilberto, em seu terceiro LP
- Gal Costa, “Falsa Baiana” (Geraldo Pereira), 1970 – o mesmo fez João Gilberto com a “Falsa Baiana” (lançada por Cyro Monteiro em 1945) de Geraldo Pereira (seria talvez um beliscão em uma Carmen Miranda já americanizada por Hollywood?); João, nesse caso, chegou três anos atrasado em relação à versão também bossa (e fossa) nova de Gal
- Cartola, “O Sol Nascerá” (Cartola-Elton Medeiros), 1964 – a voz do dono só vai se revelar ao Brasil como cantor 25 anos depois da primeira gravação de uma música sua, nesta parceria com o discípulo Elton Medeiros, incluída no primeiro e único compacto duplo de Cartola e lançada simultaneamente por Nara Leão
- Elizeth Cardoso, “A Flor e o Espinho”, 1965 – a “divina” (dama) Elizeth resgatou “A Flor e o Espinho” de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito no antológico Elizete Sobe o Morro, dividindo com Nara Leão a primazia de revigorar os sambistas de morro em meados dos anos 1960, a partir da casa de samba, comida e canjibrina Zicartola, aberto por Cartola e sua esposa Zica na Rua da Carioca, no centro do Rio
- Guilherme de Brito e Trio Madeira Brasil, A Flor e o Espinho, 2003 – parceiro histórico de Nelson do Cavaquinho, Guilherme também cantou “A Flor e o Espinho”, em 1973 (num pot-pourri de parcerias-duetos com Nelson), em 1976 (com introdução falada do “amigo Nelson”), em 1980, em 1997 (com Fagner), em 2003…
- Nelson Cavaquinho, “Juízo Final” (Nelson Cavaquinho-Élcio Soares), 1973 – a particularíssima voz bêbada do dono trouxe ao mundo o pré-apocalipse: “É o juízo final/ a história do bem e do mal/ quero ter olhos pra ver/ a maldade desaparacer”
- Clara Nunes, “Juízo Final”, 1975 – dois anos depois, este samba apocalíptico encontrou na portelense mineira Clara Nunes a primeira de suas (inúmeras) grandes intérpretes – entre elas Zizi Possi, Alcione, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Teresa Cristina, Fabiana Cozza, Simone Mazzer…
- Cartola, “O Mundo É um Moinho” (Cartola), 1976 – quatro anos antes de morrer, Cartola apresentou mais uma canção-símbolo, que o roqueiro Cazuza, já doente, transformaria em dor aguda em 1988
- Cazuza, “Luz Negra”, 1986 – Cazuza já fizera o mesmo dois anos antes com “Luz Negra”, de Nelson Cavaquinho, numa profunda e cortante gravação ao vivo
- Bando da Lua, “Mangueira” (Assis Valente-Zequinha Reis), 1935 – o baiano Assis Valente também se rendeu à Mangueira, louvando-a por intermédio de múltiplas vozes, a começar pelo Bando da Lua, quatro anos antes de partir com Carmen Miranda para a Broadway e para Hollywood
- Aracy de Almeida, “Mangueira” (Assis Valente-Zequinha Reis), 1966 – depois de 30 anos, Aracy de Almeida abriu a temporada de releituras de “Mangueira” e exaltações à Mangueira (o morro, a escola, o estado de espírito), no que foi seguida por Elizeth Cardoso (1967), Elis Regina (1968), Demônios da Garoa (1974), Gal Costa (1991), Alcione (2005), Maria Bethânia (2019)…
- Odete Amaral, “Sei Lá, Mangueira” (Paulinho da Viola-Hermínio Bello de Carvalho), 1968 – esse samba em ode à Mangueira foi assinado (em dupla com Hermínio Bello de Carvalho) pelo portelense Paulinho da Viola, que teve de se redimir em 1969, devotando “Foi um Rio Que Passou em Minha Vida” à sua Portela; outro favorito das cantoras de Mangueira, o samba-manifesto “Sei Lá, Mangueira” passou desde 1968 pelas gargantas de Elza Soares, Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Alcione, Beth Carvalho, Leci Brandão…
- Leci Brandão, “Eu Sou Mangueira” (Zagaia), 1974 – a mangueirense Leci surgiu em 1974 no programa Ensaio que Fernando Faro dedicou a Cartola, cantando enquanto o padrinho musical batucava a caixa de fósforos
- Leci Brandão, “A Mais Querida” (Paulo Menezes-Maria Luísa Imperial), 1975 – Leci também se declarou à Mangueira em “A Mais Querida”, samba lançado dois anos antes por Beth Carvalho, mangueirense nascida na Gamboa
- Clementina de Jesus, “Coleção de Passarinhos” (Paulo da Portela), 1966 – tal como Paulinho de Viola e um monte de gente, Clementina dividiu paixões entre Mangueira e Portela, gravando postumamente a sublime “Coleção de Passarinhos” do fundador Paulo da Portela
- Monarco e Tia Doca da Portela, “Deus Te Ouça” (Cartola-Paulo da Portela), 1984 – morto em 1949, aos 47 anos, Paulo da Portela deixou perdidas, mas soltas feito passarinhos, algumas raras parcerias entre-escolas com Cartola, caso desta “Deus Te Ouça” e de “Perdoa“, apresentada por Nelson Sargento em 1994, num álbum de inéditas em homenagem ao bardo, de mangueirense para mangueirense
- Alcione, “Autonomia” (Cartola), 1987 – a maranhense mangueirense ultra-romantizou a obra-prima tardia apresentada pelo autor em 1977
- Elis Regina, “Folhas Secas” (Nelson Cavaquinho-Guilherme de Brito), 1973 – Nelson e Guilherme deram para Beth Carvalho, mas Elis chegou cinco minutos antes e furou a fila: “Quando eu piso em folhas secas/ caídas de uma mangueira/ penso na minha escola/ e nos poetas da minha Estação Primeira”
- Beth Carvalho, “As Rosas Não Falam”, 1976 – Beth precisou de menos de dois minutos para transformar “As Rosas Não Falam” um pilar da música popular brasileira de qualquer tempo
- Jamelão, “Cântico à Natureza” (Nelson Sargento-Alfredo Português-Jamelão), 1957 – o porta-voz mangueirense Jamelão uniu-se ao mangueirense (inicialmente) rebelde Nelson Sargento para compor um hino, classificado por Cartola como “uma das mais belas músicas que já ouvi”
- Paulinho da Viola, “Falso Moralista” (Nelson Sargento), 1972 – quase parece Wilson Baptista, mas é Nelson Sargento: “Você condena o que a moçada anda fazendo/ e não aceita o teatro de revista/ arte moderna pra você não vale nada/ até vedete você diz não ser artista/ você se julga muito bom e até perfeito/ por qualquer coisa deita logo falação/ mas eu conheço bem os seus defeitos/ e não vou fazer segredo, não/ (…) você não passa de um falso moralista”
- Paulinho da Viola, “Nega Luzia”, 1973 – mais fascinado por Wilson Baptista que por seu contraparte branco Noel Rosa, Paulinho enobreceu sambas baptistianos já muito nobres como “Mulato Calado” (com Clementina em 1975, sozinho em 1997), “E o 56 Não Veio” e “Emília” (ambos em 2000, num álbum de Cristina Buarque para Wilson) e “Mundo de Zinco” (1991, num pot-pourri em trio fabuloso com Chico Buarque e Caetano Veloso), entre outros
- Aracy de Almeida, “Mulato Calado” (Wilson Baptista-Marília Baptista-Benjamin Baptista), 1947 – musas de Noel, Aracy de Almeida e Marília Baptista (aqui como co-autora) curvam-se ao gênio Wilson Baptista nesse primo (namorado?, marido?, amante?) maldito de Nega Luzia, mulato calado que “já matou um, já matou um”: “A polícia procura o matador/ mas em Mangueira não existe delator”
- Paulinho da Viola, “Chico Brito” (Wilson Baptista-Afonso Teixeira), 1979 – em 1950, numa época pródiga de batistas profanos, Dircinha Batista apresentou outro par endiabrado de Nega Luzia: Chico Brito (mais um mulato calado?, ou o mesmo?), personagem cinematográfico resgatado 29 anos mais tarde por Paulinho da Viola, capitão de bola, jogador de baralho, defensor de teses e também encalacrado com a cavalaria: “Lá vem o Chico Brito/ descendo o morro nas mãos do Peçanha/ é mais um processo/ é mais uma façanha”. Chico Brito é “valente no morro” e, dizem, “fuma uma erva do norte” – é bem possível que estivesse presente na cena do crime na madrugada em que Nega Luzia recebeu o Nero
- Paulinho da Viola, “Acontece” (Cartola), 1972 – nem só de revivar a sabedoria passada dos velhos sambistas viveu o jovem Paulinho; para ele, Cartola entregou uma obra-prima ainda inédita em 1972: “Esquece nosso amor/ vê se esquece/ porque tudo no mundo acontece”
- Gal Costa, “Acontece”, 1974 – Gal Costa fez sua leitura dois anos depois (ao mesmo tempo em que Cartola entregou a versão de autor), igualmente antológica
- Jorge Ben e Caetano Veloso, “Charles, Anjo 45” (Jorge Ben), 1969 – podia ser Wilson Baptista, mas é Jorge Ben: o que há em comum entre Charles e Luzia?
- Wilson Baptista, “Nega Luzia”, 2023 – pai da matéria, Wilson Baptista só chegou ao disco quando disco não havia mais, 110 anos após seu nascimento e 55 anos depois de sua morte, num projeto de resgate coordenado por seu biógrafo Rodrigo Azulguir (leia aqui a história) – só então ouvimos pela primeira vez a voz do dono não apenas em “Nega Luzia”, mas também em “Ó Seu Oscar” (1939), “Mulato Calado“, “Louco (Ela É Seu Mundo)” (em duo póstumo com Ney Matogrosso), “Chico Brito“, “Flor da Lapa” (1952), “Mãe Solteira“, “Conversa Fiada” (1956), “Meu Mundo É Hoje“, “Despedida Cruel” (1966) etc. Dá uma peça de teatro, um filme, uma série, uma novela…
- Jorge Ben, “A Fonte de Paulus V” (Jorge Ben), 1986 – a cavalaria marítima de Jorge
- Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus e Cartola, Seleção de Sambas de Mangueira: “Fiz por Você o Que Pude” (Cartola)/ “Pranto de Poeta” (Guilherme de Brito-Nelson Cavaquinho)/ “Mangueira”/ “Mundo de Zinco” (Nássara-Wilson Baptista)/ “Semente do Samba” (Hélio Cabral)/ “Lá em Mangueira” (Herivelto Martins-Heitor dos Prazeres)/ “Onde Estão os Tamborins” (Pedro Caetano)/ “Levanta, Mangueira” (Luiz Antônio)/ “Sabiá de Mangueira” (Benedito Lacerda-Eratóstenes Frazão)/ “Exaltação à Mangueira” (Enéas Brites-Aloísio A. da Costa)/ “Praça Onze” (Herivelto Martins-Grande Otelo)/ “Despedida de Mangueira” (Benedito Lacerda-Aldo Cabral), 1967 – em A Enluarada, Elizeth reverenciou a Mangueira, tudo e todos ao mesmo tempo agora, reunindo Clementina de Jesus, Assis Valente, Heitor dos Prazeres, Benedito Lacerda, Grande Otelo, Herivelto Martins, Pedro Caetano, o coronel do exército Luiz Antônio… – além de Cartola, cantando com sua voz até então semi-inédita o samba semi-mórbido e semi-inédito “Pranto de Poeta”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
- Nara Leão, “Pranto de Poeta”, 1966 – antes de clamar por “flores em vida”, Nelson e Guilherme deram as senhas que Cartola também cantou: “Em Mangueira quando morre um poeta todos choram/ vivo tranquilo em Mangueira porque/ sei que alguém há de chorar quando eu morrer”
- Nelson Cavaquinho, “Quando Eu Me Chamar Saudade” (Nelson Cavaquinho-Guilherme de Brito), 1972 – o recado é reto (e foi parcialmente ouvido): “Se alguém quiser fazer por mim/ que faça agora/ me dê as flores em vida/ o carinho, a mão amiga/ para aliviar meus ais/ depois que eu me chamar saudade/ não preciso de vaidade/ quero prece e nada mais”
- Paulinho da Viola, “Meu Mundo É Hoje (Eu Sou Assim)”, 1972 – “Meu mundo é hoje/ não existe amanhã pra mim”, cantam em coro Wilson Baptista, Paulinho da Viola, Nega Luzia, Chico Brito, Maria da Penha, Waldemar e toda a cavalaria
Enfim,alguém cita ”Luz Negra” na bela interpretação de Cazuza!