Riachão, 103 anos, rumo ao infinito

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Riachão - foto Antônio Brasiliano
Riachão - foto Antônio Brasiliano

Se Deus Quiser Eu Vou Chegar aos 100 seria o título do quinto álbum de Riachão, que sai neste início de ano, quando o sambista baiano estaria prestes a completar 104. Riachão morreu aos 98, em janeiro de 2020, quando apenas iniciara a colocar voz nas canções. O álbum agora póstumo sai rebatizado de Onde Eu Cheguei, Tá Chegado, com aparições do cantor e compositor em quatro faixas. O projeto, bancado pela Natura Musical, se completa com um elenco vasto de convidados para interpretar as dez canções inéditas deixadas por Riachão, entre eles Martinho da Vila, Roberto Mendes, Teresa Cristina, Criolo e Josyara.

Conduzida pela dupla Caê Rolfsen e Paulinho Timor, a produção póstuma honra o imaginário de Riachão, apresentado nacionalmente em 1972, quando Gilberto Gil e Caetano Veloso, recém-chegados do exílio, gravaram num compacto seu samba “Cada Macaco no Seu Galho”. Nascido em Salvador, Riachão era filho de conterrâneos de Caetano em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano.

Gil e Caetano lançam “Cada Macaco no Seu Galho”, em 1972

A luz lançada por Caetano e Gil redundou na gravação do primeiro álbum do artista, então com 51 anos, lançado sob o nome Samba da Bahia e dividido com dois outros patrimônios imateriais do samba baiano, Batatinha (1924-1997) e Panela (circa 1937-1999). Ali, Riachão brilha em sambas como “Vou Chegando” e “Fufu“, enquanto Batatinha, lançado por Maria Bethânia em sambas como “O Circo” (1972), reivindica o “Direito de Sambar” e nomeia Paulinho da Viola Ministro do Samba“, 30 anos antes de Gil se tornar ministro da Cultura. Ainda em 1973 saiu o primeiro solo de Riachão, Sonho do Malandro, encampado pelo Banco de Desenvolvimento do Estado da Bahia, onde ele trabalhava como office-boy, de circulação restrita e reeditado em 1981 pelo selo comercial Tapecar.

Num tempo em que a indústria fonográfica nacional se concentrava e encastelava no eixo Rio-São Paulo, o ás do samba triste Batatinha estreou solo em 1976, com Toalha da Saudade, e deixou em vida apenas mais um álbum, Batatinha (1993), além do pungente CD póstumo Diplomacia – Antologia de um Sambista (1998), com participações de Caetano, Gil, Maria Bethânia, Chico Buarque e Jussara Silveira. Panela, autor e intérprete de “Não Suje Meu Caixão” e “O Patrão É Meu Pandeiro” no disco coletivo de 1973, morreu sem deixar registro solo em disco.

Em 2001, Cássia Eller resgata “Vá Morar com o Diabo”…

Não foi menos acidentada a trajetória de Riachão, registrada em apenas mais dois CDs, Humanenochum (2001) e Mundão de Ouro (2013). Sua obra artística sobreviveu mais por intermédio de outras vozes, como as de Roberto Ribeiro (em “Até Amanhã“, 1975), Luiza Maura (“Camisa Molhada“, 1979, onde está o verso “onde eu cheguei, tá chegado”, inspirador do título do álbum póstumo), Caetano e Gil (novamente “Cada Macaco no Seu Galho“, no álbum em dupla Tropicália 2, de 1993). Em 2001, com muito sucesso, Cássia Eller incluiu em seu derradeiro disco o áspero e pândego “Vá Morar com o Diabo”, uma releitura de “A Nega Não Quer Nada”, samba lançado em 1972 pelo cantor e compositor paraense Osvaldo Oliveira.

…lançado em 1972 por Osvaldo Oliveira, com o título “A Nega Não Quer Nada”

Situado entre o samba duro, o forró e o brega paraense, Osvaldo Oliveira expressava então a vida artística anterior de Riachão, que entre os anos 1950 e 1960 emplacou composições do universo caipira, em interpretações de Tonico e Tinoco (“A Marca da Ferradura“, 1956) e Moreno e Moreninho (“13 de Maio“, 1956; “Sombrinha de Prata“, 1957; “A Dança do Congo“, 1963), e no ambiente forrozeiro, coquista e junino, pelas vozes do então parceiro Jackson do Pandeiro (“Meu Patrão“, 1957; “Queima de Judas” e “Saia Rota“, 1962), do Trio Nordestino (“Retrato da Bahia“, 1963; “A Bochechuda“, 1964; “A Papuda“, 1965) e de Marinês e Sua Gente (“Terra Santa“, 1970). No mesmo ano da redescoberta por Gil e Caetano, Anastácia também gravou “Cada Macaco no Seu Galho”, marcando a transição definitiva do autor do forró para o samba.

No folguedo negro da congada, Moreno e Moreninho celebram o “13 de Maio” (1956)
“Cada Macaco no Seu Galho” como forró, por Anastácia, em 1972

Riachão por Criolo e Josyara

De volta a Onde Eu Cheguei, Tá Chegado, as intervenções de Riachão são preciosas, desde a faixa de abertura “Sou da Bahia”, em tempo de samba de roda do Recôncavo e adornado pela guitarra baiana de Roberto Barreto, da BaianaSystem. Rara gravação de Riachão em samba de roda, “Sou da Bahia” celebra o Morro do Garcia, em Salvador, onde o artista nasceu e morreu – e que volta explicitamente na faixa “Morro do Garcia”, nas vozes da baiana Juliana Ribeiro e do paulista Enio Bernardes (do grupo Siri Catado).

Especialmente emocionante é “Tintim”, em que Riacho divide vocais com o neto Taian Paim, recuperando ao final da vida um apelido de infância do futuro sambista: “Ô, Tuninho, ô, Tintim/ inda me lembro quando eu, criancinha, minha mãe tão cansadinha me chamava assim”. A Bahia fala alto em “Samba Quente”, com o filho musical santo-amarense Roberto Mendes, e “Oh, Lua”, com a bisneta musical Josyara espalhando languidez pelo samba duro do Recôncavo.

Riachão também aparece em pessoa em “Saudade”, que se chamava “Tango da Saudade” quando o artista o cantava nos palcos teatrais, agora retrabalhado em samba (triste) em dueto póstumo com o rapper (e sambista) paulistano Criolo: “Ai, saudade/ saudade do meu grande amor/ quanto mais o tempo passa/ mais aumenta minha dor”.

Com Martinho da Vila, Riachão sai do script em “Sonho do mar”, uma rara toada caipira negra e praieira, de levada dolente e hipnótica: “Quem olha pra areia/ quem olha pro mar/ quem dorme na areia/ quer dormir no mar/ (…) sonhei que fui à macumba/ e toquei zabumba no fundo do mar”.

O samba carioca diz presente ainda nas vozes de Teresa Cristina, em “Uma Vez na Janela”, e Pedro Miranda, em “Sua Vaidade Vai Ter Fim”. Teresa canta com amor a candidez da letra de Riachão: “Eu moro bem pertinho da mangueira/ ela, bem pertinho da jaqueira/ com saudade fico olhando da janela/ e entristeço cquando não vejo ela/ chegue uma vez na janela, ó, bela”.

Instrumental sempre virtuoso emoldura essas faixas e também a de encerramento, “Homenagem a Claudete Macedo“, que ilumina a sambista radicada no Pelourinho desde os 18 anos até a morte em 2023, aos 89, outro patrimônio imaterial baiano desconhecida do Brasil como um todo. A “mulheragem” de Riachão é interpretada por Nega Duda, “sambadeira” nascida em 13 de maio de 1968 na pequena cidade de São Francisco do Conde, no Recôncavo Baiano, e hoje conhecida como cantora do bloco Ilu Obá de Min, em São Paulo. Com palavras de resistência devotadas ao Pelourinho, quem encerra “Homenagem a Claudete Macedo” e Onde Eu Cheguei, Tá Chegado é Clarindo Silva, escritor, jornalista e dono do bar e restaurante Cantina da Lua, um dos mais tradicionais do centro histórico de Salvador, hoje com 82 anos.

Nas plataformas digitais a partir desta sexta-feira, 24, o álbum será acompanhado pelo lançamento de um site para Riachão, que promete concentrar discos, fonogramas, minidocumentários, documentos em vídeo, fotos e reportagens sobre o autor de “Cada Macaco no Seu Galho”. Não bastasse ser virtuosa e grandiosa por si só, a iniciativa de resgate da memória de Riachão traz na correnteza outras joias do tesouro imaterial baiano e brasileiro, como Claudete, Clarindo e Nega Duda. É como se Riachão chegasse aos 100 e os ultrapassasse, rumo ao infinito.

O samba duro da Bahia, pelas obras de Riachão, Batatinha e Panela

1 Gilberto Gil e Caetano Veloso, “Cada Macaco no Seu Galho” (Riachão),1972 – versão ao vivo

2 Riachão, “Cada Macaco no Seu Galho” (Riachão), 1973

3 Riachão, “Vou Chegando” (Riachão), 1973

4 Riachão, “Fufu” “Cada Macaco no Seu Galho” (Riachão), 1973

5 Maria Bethânia, “Só Eu Sei” (Batatinha-J. Luna), 1965

6 Maria Bethânia, “Toalha da Saudade” (Batatinha-J. Luna)/ ”Imitação” (Batatinha)/ ”Hora da Razão” (Batatinha-J. Luna), 1971

7 Maria Bethânia, “O Circo” (Batatinha), 1972

8 Batatinha, “Direito de Sambar” (Batatinha), 1973

9 Batatinha, “Ministro do Samba” (Batatinha), 1973

10 Batatinha, “Hora da Razão” (Batatinha-J. Luna), 1976

11 Caetano Veloso, “Hora da Razão” (Batatinha-J. Luna), 1974

12 Alcione, “Espera” (Batatinha-Ederaldo Gentil), 1975

13 Nora Ney, “Inventor do Trabalho” (Batatinha), 1974

14 Batatinha, “Diplomacia”/ “Só Eu Sei” (Batatinha-J. Luna), 1998

15 Juçara Marçal e Kiko Dinucci, “Imitação” (Batatinha), 2008

16 Panela, “Não Suje Meu Caixão” (Panela-Garrafão), 1973

17 Panela, “O Patrão É Meu Pandeiro” (Panela-Carlos Napoli), 1973

18 Roberto Ribeiro, “Até Amanhã” (Riachão), 1975

19 Luiza Maura, “Camisa Molhada” (Riachão), 1979

20 Riachão, “Camisa Molhada” (Riachão), 2000

21 Riachão e Caetano Veloso, “Vá Morar com o Diabo” (Riachão), 2000

22 Caetano Veloso e Gilberto Gil, “Cada Macaco no Seu Galho (Chô Chuá)” (Riachão), 1993

23 Riachão, “Chô Chuá (Cada Macaco no Seu Galho)” (Riachão), 2013 – nessa versão, Riacho conta sobre a antipatia da ditadura por “Cada Macaco no Seu Galho”

24 Cássia Eller, “Vá Morar com o Diabo” (Riachão), 2001

25 Osvaldo Oliveira, “A Nega Não Quer Nada” (Riachão), 1972

26 Altamiro Carrilho e Sua Bandinha, “Cada Macaco no Seu Galho” (Riachão), 1972

27 Tonico e Tinoco, “A Marca da Ferradura” (Lourival dos Santos-Riachão), 1956

28 Moreno e Moreninho, “13 de Maio” (Riachinho-Riachão-Teddy Vieira), 1956

29 Jackson do Pandeiro, “Meu Patrão” (Riachão-Jackson do Pandeiro), 1957

30 Jackson do Pandeiro e Almira Castilho, “Queima do Judas” (Riachão), 1962

31 Jackson do Pandeiro e Almira Castilho, “Saia Rota” (Riachão), 1962

32 Trio Nordestino, “Retrato da Bahia” (Riachão), 1963

33 Riachão e Claudete Macedo, “Retrato da Bahia” (Riachão), 2001

34 Trio Nordestino, “A Bochechuda” (Riachão-Lindolfo Barbosa), 1964

35 Trio Nordestino, “A Papuda” (Riachão), 1965

36 Trio Nordestino, “Vamos Pular, Gente” (Riachão), 1968

37 Claudete Macedo, “Eu Vim de Longe” (Zé Pretinho da Bahia-Marco Antônio), 1969

38 Claudete Macedo, “Bahia, Mulata e Samba” (C. Macedo-M. Carlos-Zé Pretinho da Bahia), 1969

39 Nega Duda, “A Bahia Deu Sinal” (domínio público), 2019

40 Nega Duda, “Quem Entrou na Roda Foi uma Boneca”/ “Me Deixa” (domínio público), 2019

41 Gang do Samba, “Cada Macaco no Seu Galho” (Riachão), 1999

42 Riachão e Carlinhos Brown, “Pitada de Tabaco” (Riachão), 2001

43 Moinho, “Baleia da Sé” (Riachão), 2008

44 Zélia Duncan, “Por Que Você Não Me Convida Agora?” (Riachão), 2015

45 Renato Braz e Chico César, “Vida da Semana” (Riachão), 2002

46 Riachão e Sabiá, “Vida da Semana” (Riachão), 2001

47 Riachão, “Por Que Você Não Me Convida Agora?” (Riachão), 2013

48 Gal Costa, “Cada Macaco no Seu Galho” (Riachão), 2002

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