
Eis uma síntese possível de Kubrusly – Mistério sempre há de pintar por aí [Brasil, 2024, 97 minutos; disponível no Globoplay; veja o trailer], comovente documentário sobre o jornalista que revolucionou o ofício, particularmente o cultural.
Há alguns anos acometido de um tipo de demência, Maurício Kubrusly foi com a esposa, a arquiteta Beatriz Goulart, para o interior da Bahia, fugindo do agito dos grandes centros de onde sempre tirou suas pautas, sempre muito interessantes.
Com a perda progressiva da memória, o nome dela é praticamente o único de que se lembra. Para além do amor e do cuidado envolvidos, o filme é também sobre o amor pela música, mais uma prova de que esta é a última memória perdida para doenças degenerativas e que tais.
Além de uma rotina de exames, consultas médicas e terapias, cenas da chegada da mudança ao novo endereço, com o desencaixotar de cds e outros objetos e a emoção expressa pelo protagonista a cada música que ouve (como se fosse a primeira vez?). “Que bonito isso!”, diz ao ouvir Itamar Assumpção (1949-2003). Adiante o casal relembra um dos hábitos do crítico de música: nas embalagens dos discos, costumava fazer anotações (sobre o que era bom e ruim em cada álbum, por exemplo) ou mesmo guardar textos e recortes de jornal. “Eu já fiz muita coisa, né?”, pergunta à esposa e a si mesmo, entre a humildade e o não se reconhecer.
O filme de Caio Cavechini e Evelyn Kuriki (com roteiro dela) é reverente e respeita o personagem em sua condição. Poderia ter usado mais imagens de arquivo e demonstrado, sobretudo para gerações mais novas, a importância de Kubrusly para o jornalismo cultural brasileiro, algo hoje talvez fora de moda, num tempo em que quem dita a curadoria são os algoritmos das plataformas digitais.
Com atuações memoráveis em impressos, rádio e televisão, Kubrusly é um profissional completo, mesmo tendo entrado para esta vida completamente “por acaso”, como ele conta em determinada altura, numa das imagens de arquivo.
Foi ele, por exemplo, um dos primeiros a prestar atenção a grupos como Rumo e Premeditando o Breque, como afirmam Luiz Tatit e Wandy Doratiotto em suas aparições. Os jornalistas Alberto Villas e Otávio Rodrigues, amigos e discípulos, reafirmam sua grandeza e papel formador entre histórias deliciosas, como por exemplo, o primeiro texto assinado por Kubrusly na imprensa, outro acaso: “Brigitte Bardot está menstruada”. Ele era estagiário do Jornal do Brasil e com sucessivos atrasos no voo que traria a estrela ao Brasil, foi mandado ao aeroporto. Ficou de tocaia, e ao avistar uma empregada sair, seguiu-a até a farmácia e conversou com ela, que deu informações sobre a atriz e modelo para o foca. O documentário resgata também sua cobertura para o ensaio fotográfico que a dançarina Carla Perez, então loura do É O Tchan, fez para a revista Playboy em pleno Pelourinho.
O subtítulo do filme é retirado de “Esotérico”, conhecida canção de Gilberto Gil. Na cena em que os dois se reencontram, Gil canta a música, acompanhando-se ao violão. Ao fim, ouvimos o elogio e a pergunta de Kubrusly: “que coisa linda! Quem fez isso?”.
A cena continua com Gil pegando um volume de uma coleção da Abril Cultural, o vinil dedicado a sua obra. Era um elepê vendido em bancas de jornal, cujo encarte, em textos críticos, abordava a trajetória de grandes nomes da música popular brasileira. Lê um trecho de um texto de Kubrusly no encarte, intitulado “Rompendo as amarras do convencional”, e diz ao autor: “foi você quem escreveu isso”.
De minha parte me pego pensando que este foi certamente o primeiro texto de jornalismo cultural que li na vida, aos seis ou sete anos, no encarte do disco da coleção de meus avós. Apesar de, à época, obviamente, não saber o que era convencional ou jornalismo cultural, hoje me toco também de que nunca esqueci seu título.
Vendo as coisas em panorâmica, penso que esta é mais uma demonstração da grandeza e importância de Maurício Kubrusly, cujas qualidades tornavam-no íntimo de seus leitores, ouvintes e espectadores, alguém que parece que sempre esteve nas horas e lugares certos desde sempre e faz muita falta no cenário.
A nós, resta agradecer e, inspirado por seu fazer, continuar tentando seguir seus passos.