Maria Alcina, a cantora-operária

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Centrado na figura da anárquica cantora mineira Maria Alcina, o filme Sem Vergonha, em cartaz na 48ª Mostra de Cinema de São Paulo, é um documentário atípico. Nisso, não é diferente de outros trabalhos musicais/cinematográficos do diretor Rafael Saar, como Yorimatã (2016), sobre a dupla Luli & Lucina, e Peixe Abissal (2023), sobre o compositor Luis Capucho. Mais uma vez desobediente, ele foge completamente das regras e dos clichês da maioria dos documentários musicais brasileiros – a título de ilustração, Nelson Motta não costuma aparecer pontificando em seus filmes.

Sem Vergonha radicaliza em relação aos filmes anteriores de Saar, porque bate no liquidificador de uma vez só gêneros e subgêneros como ficção, comédia, filme musical, chanchada, o excesso felliniano, cinema udigrúdi, pornochanchada, o documentarismo de Eduardo Coutinho e mais. Em especial, honra a tradição de onde vem Maria Alcina, que passa pelos balangandãs de Carmen Miranda, o humor circense de Oscarito & Grande Otelo, a competição entre Emilinha Borba e Marlene, o futebol-arte de Fio Maravilha e o samba-arte de Jorge Ben, a teatralidade e a androginia dos Secos & Molhados e dos Dzi Croquettes, a brejeirice do baião de Luiz Gonzaga e Marinês e da música popular chamada (não raro pejorativamente) de folclórica, entre inúmeras referências, todas identificáveis no filme de Saar.

O formato documental habitual com profusão de depoimentos do biografado e/ou de gente que passou por sua vida é completamente ignorado, em prol de encenações comandadas pela própria Alcina, hoje com 75 anos. Onipresente em cena, ela é secundada por um elenco sortido que simula e parodia situações de sua vida e carreira e faz lembrar sucessivamente commedia dell’arte, teatro de revista, bumba-meu-boi, trupe saltimbanca, acampamento cigano, os anarquistas sexuais Dzi Croquettes, auditório televisivo de Chacrinha, Raul Gil ou Bolinha e assim por diante.

Ney Matogrosso e Maria Alcina cantam “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (1972), de Sérgio Sampaio

Os depoimentos de outros aparecem, não no formato modorrento de monólogos, mas de modo criativo e iconoclasta. Ney Matogrosso, por exemplo, surge num dos grandes momentos do filme, cara a cara com Alcina, encarnando o censor que em meados dos anos 1970 picotou a trajetória da artista em represália, supostamente, ao modo como ela se vestia. Em consonância com o livro Eu Não Sou Cachorro, Não (2002), do historiador Paulo Cesar de Araújo, Sem Vergonha reivindica seu lugar na mitologia de censura e repressão geralmente associado às dores de chicos e caetanos.

O pianista Antonio Adolfo, um dos primeiros a notar o talento de Maria (durante uma passagem pelo Festival Audiovisual de Cataguases, cidade natal da artista), surge num improviso em duo de piano e voz cantarolada de sua “BR-3”, balada soul vencedora do Festival Internacional da Canção de 1970 na Globo. Dessa fase, o filme tira do ineditismo “Pesadelo Refrigerado” (1966), tema com o qual o vozeirão grave da adolescente Maria Alcina, então com 17 anos, deu a ela o prêmio de melhor intérprete do festival local.

Maria Alcina e Antonio Adolfo se reencontram nas filmagens de “Sem Vergonha”

Adolfo confessa se sentir culpado por ter incentivado a jovem pupila a se estabelecer no Rio de Janeiro e tê-la abandonado partindo para o auto-exílio, o que conduz a um instante de evidente emoção de Maria no filme. A questão racial passa pela tela com sutileza, não apenas na referência ao festival que deu vitória ao intérprete Toni Tornado e o puniu pelo “excesso” de orgulho black power, mas também em comentário da artista sobre o fato de ser parda, mas ostentar o sobrenome Leite.

Quanto à lapidar interpretação do festim futebolístico “Fio Maravilha” pela jovem artista, Sem Vergonha desrespeita os cânones mais uma vez e não expõe o vozeirão masculino-feminino nos versos apoteóticos “Fio Maravilha, nós gostamos de você/ Fio Maravilha, faz mais um pra gente ver” – o samba-soul-rock-blues de Jorge aparece apenas em formato instrumental. Enquanto isso, Maria Alcina explica, poeticamente, sua intenção original em “Fio Maravilha”, de cantar a música como se estivesse jogando futebol e fazendo o gol, para o delírio da torcida (ou da plateia de festival do Maracanãzinho).

Além de “BR-3” e “Fio Maravilha”, outra canção de festival que surge na voz de Alcina, surpreendentemente, é “Gotham City”, em interpretação sob medida para o trovão grave da cantora. Pertencente ao núcleo tropicalista (mas também rebelde a ele), “Gotham City” vem estabelecer conexões complexas entre as máscaras e pinturas corporais dos glam rockers andróginos dos anos 1970 e o “morcego na porta principal” de que falava Jards Macalé em 1969. Decididamente, não eram só as máscaras e as roupas que colocavam em nervos os ditadores civil-militares de plantão.

Gêmeos artísticos, Maria Alcina e Edy Star interpretam “Com Que Roupa” (1930), de Noel Rosa

Amigo e parceiro da vida toda, o baiano Edy Star alegoriza a passagem de ambos pela boate setentista Number One, na zona sul carioca, na qual ele substituiu a estrela então em ascensão pela performance extraordinária de “Fio Maravilha”, de Jorge Ben, no Festival Internacional da Canção de 1972. Nos figurinos vermelhos como sangue, ambos fazem referência transmisturada, gay, lésbica e heterossexual, à verve carnavalesca e circense e à capa do fogoso primeiro LP de Alcina, de 1973.

Em “Maria Alcina” (1973), músicas de Assis Valente, Ary Barroso e Luiz Gonzaga

Coreógrafo do filme e um dos Dzi Croquettes originais, Ciro Barcelos integra-se à trupe de “underdogs”, assim como o (excelente) diretor musical de Sem Vergonha, Rovilson Pascoal, responsável por momentos surpreendentes e sonoridades que citam desde as origens da canção urbana brasileira com a pioneira absoluta Chiquinha Gonzaga, Noel Rosa e Carmen Miranda até a influência tropicalista absorvida por Alcina, jamais reconhecida ou louvada abertamente pelo grupo baiano. Sem demonstrar ressentimento, a cantora interpreta “Roda” e a introdução de “Procissão” (ambas de 1965), de Gilberto Gil, e cantarola irônica e lindamente “Fruta Gogoia” (1971), clássico da fase Fatal de Gal Costa: “Eu sou uma moça”.

Em voz e violão, Alcina e Rovilson Pascoal reinterpretam “Kid Cavaquinho” (1974), clássico de João Bosco e Aldir Blanc que ela teve a primazia de lançar

As falas de Maria Alcina, que a um tempo recorda e dramatiza sua própria história, são sempre profundas e contundentes, com auge no momento em que a ex-operária de fábrica em Minas Gerais se autodefine como uma operária da canção popular – a exemplo não da elite MPB de sua época, mas de artistas outsiders integrantes de um arco plural que abrange Angela Maria, Elizeth Cardoso, Clara Nunes, Waldick Soriano, Odair José, Núbia Lafayette, Agnaldo Timóteo etc. etc. etc. Não é à toa, portanto, que Sem Vergonha põe Alcina a interpretar “Três Apitos”, samba póstumo de Noel Rosa (lançado em 1951 por Aracy de Almeida) sobre a chaminé de barro e o apito da fábrica de tecidos que vêm ferir os ouvidos e os pulmões do narrador-operário.

Esse é o tom dado pela abordagem de Rafael Saar, que também nesse ponto se revela um desobediente do status quo do cinema e da música, tanto quanto 100% fiel e leal à desobediência mansa da própria Maria Alcina.

O termo “operária” parece justo e exato para definir Maria Alcina. Mesmo que não nomeada, a luta de classes no seio da MPB foi desde sempre uma das forças motrizes de sua carreira acidentada e marcada por interrupções. Alcina desenha no filme a perspicácia de ter superado a fase de censura e boicote recorrendo a popularíssimos folguedos maliciosos extraídos do Pastoril do Velho Faceta, em especial “É Mais Embaixo” (1979) e “Bacurinha” (1980), e do forró nordestino, como “Prenda o Tadeu” (1985), da alagoana Clemilda.

O dzi croquette Bayard Tonelli concorre a Miss Brasil em “Sem Vergonha”

Entre tantos méritos, Sem Vergonha transborda ainda o de construir um trabalho essencialmente anti-etarista, que preserva, celebra e valoriza o envelhecimento da protagonista e de seus coadjuvantes, jogando luz e beleza não só sobre o elenco jovem, mas sobre as rugas de Alcina, de Ney e do também ex-Dzi Croquette Bayard Tonelli, hilariante em todas as suas aparições, inclusive como concorrente num concurso de Miss Brasil (no qual outros atores interpretam, impagáveis, os papéis de Raul Seixas e Benito di Paula).

Celebrando a juventude de Maria Alcina artavés das interpretações dessa senhora em sua década dos 70 anos, Sem Vergonha revela-se um opositor ferrenho do esquecimento, da invisibilidade, do apagamento e da vergonha – e, portanto, um documentário por excelência, fiel à sensibilidade e à vida como ela é, e não a normas, disfarces, cacoetes e compadrios. Como o filme de Rafael Saar leva o espectador a concluir, quem deveria ter vergonha são os outros.

O repertório de Maria Alcina em Sem Vergonha

(*) em versões originais de época

“Ó Abre Alas” (Chiquinha Gonzaga), 1899

“Com Que Roupa” (Noel Rosa), 1930, com Edy Star

“Coração” (Noel Rosa), 1932

“Fita Amarela” (Noel Rosa), 1933

“Cantores do Rádio” (Lamartine Babo-João de Barro-Alberto Ribeiro), 1936, com Rogéria (*)

“Asa Branca” (Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira), 1947

“Escandalosa” (Moacyr Silva-Djalma Esteves), 1947

“Três Apitos” (Noel Rosa), 1951

“Paraíba” (Luiz Gonzaga-Humberto Teixeira), 1952

“Roda” (Gilberto Gil-João Augusto), 1965

“Pesadelo Refrigerado” (Alfredo Condé-Carlos Moura), 1966, nunca gravada

“Gotham City” (Jards Macalé-Capinan), 1969

“O Anunciador – O Homem das Tormentas” (Alfredo Condé-Carlos Moura), 1970, nunca gravada

“Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (Sérgio Sampaio), 1972, com Ney Matogrosso

“BR-3” (Antonio Adolfo-Tibério Gaspar), 1970, com Antonio Adolfo

“A Voz da Noite” (Augusto Magalhães-Sidney Mattos), 1973

“Como se Não Tivesse Acontecido Nada” (Ricardo Guinsburg-Miguel Paiva), 1974

“Kid Cavaquinho” (João Bosco-Aldir Blanc), 1974

“Bacurinha” (tradicional), 1978

“É Mais Embaixo” (tradicional), 1978

“Kataflan” (Du Moreira-Kuki Stolarski-Maurício Bussab-Fê Pinatti), 2003, com Bojo (*)

“Dionísio, Deus do Vinho e do Prazer” (Péricles Cavalcanti), 2013

“Mulher Viado” (Sidnei Oliveira), inédita

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