Próximas paradas do gaúcho, idealizador da Fábrica dos Gaiteiros, são São Paulo, São Luís e Brasília
O gaiteiro gaúcho Renato Borghetti está na estrada celebrando os 40 anos de lançamento de seu álbum de estreia, e de um feito ainda não superado na cena da música instrumental brasileira: Gaita Ponto, o citado título, é o único álbum da categoria a ganhar disco de ouro – título concedido pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD) quando a vendagem chegava a 100 mil exemplares.
O artista, também chamado carinhosamente de Borghettinho, preocupado com o fechamento de fábricas de seu instrumento no Brasil, criou a Fábrica de Gaiteiros, que ao longo de 14 anos de funcionamento, tem garantido ao Rio Grande do Sul destaque quando o assunto é gaita ponto – como é conhecido por lá o acordeom ou sanfona.
Acompanhado por Daniel Sá (violão acústico), Pedro Figueiredo (flauta e saxofone) e Vitor Peixoto (piano), Renato Borghetti se apresenta neste sábado (27), às 21h, no Sesc Pinheiros (Teatro Paulo Autran), em São Paulo; quinta (1º. de agosto), às 20h, no Teatro Arthur Azevedo (Rua do Sol, Centro, São Luís/MA), no Lençóis Instrumental 2024, programação que marca os 15 anos do Lençóis Jazz e Blues Festival; e sexta (2) e sábado (3), às 20h30, no Clube do Choro de Brasília.
Renato Borghetti conversou com exclusividade com FAROFAFÁ. Na entrevista, falou sobre as enchentes no Rio Grande do Sul, de que também foi vítima direta, dos 40 anos de Gaita Ponto, da Fábrica de Gaiteiros e dos shows que está preparando.
ENTREVISTA: RENATO BORGHETTI
ZEMA RIBEIRO: Antes de a gente falar dessa turnê propriamente, eu queria saber se você também foi diretamente impactado pelas enchentes que castigaram, e ainda castigam o Rio Grande do Sul, a gente acompanha o drama das famílias de longe e sabe como a classe artística, de algum modo, também foi afetada, algumas casas de espetáculo, enfim. Eu quero saber como é que você tem lidado com isso?
RENATO BORGHETTI: Com certeza! Eu acho que todo gaúcho, de alguma forma, foi impactado. O setor cultural muito, geral, e pessoas que vivem em situação, em locais à beira de rio, como é o meu caso, aqui na Barra do Ribeiro, a gente tem ali o nosso projeto, a Fábrica, a minha casa, uma propriedade que a gente tem, toda a parte ribeirinha encheu d’água, assim como a capital, Porto Alegre. Nessas cidades do outro lado da margem, Eldorado do Sul, que falavam muito, Guaíba, Eldorado do Sul, depois vem Guaíba, depois vem a Barra do Ribeiro, eu moro na Barra do Ribeiro. Então entrou água assim, muita água, uma casa foi toda, outra a gente conseguiu ajeitar, que é a que a gente mora, e a Fábrica também, foi muito afetada, mas a gente já recuperou, já botou as máquinas para funcionar, está quase plena.
ZR: Nossa solidariedade. É um momento difícil, mas a gente sabe que a arte também ajuda a superar esses momentos difíceis.
RB: E o momento agora, o momento atual, maio e junho foram talvez o auge, a situação bem mais complicada de tudo, de todos, e agora já está num momento de retomada, devagarzinho, as coisas estão acontecendo devagar.
ZR: Gaita Ponto é um marco em sua carreira e também na cena da música instrumental brasileira. Até hoje é o único álbum que conseguiu a marca de disco de ouro em se tratando, no Brasil, de um trabalho de música instrumental. O que isso significa para você?
RB: Claro que é muito importante para minha carreira. Esse disco, 40 anos, eu ainda devo muita coisa a ele. Não, talvez, por alguma marca de venda, mas muito porque eu acho que através desse disco eu me apresentei até para boa parte do Rio Grande do Sul, depois boa parte do Brasil, foi através desse disco, talvez o meu cartão de visitas tenha sido esse primeiro disco, Gaita Ponto, e o que é mais engraçado é que [quando] eu gravei, mas eu nem sabia que eu estava fazendo música instrumental, eu só não cantava, eu era muito novo, eu só registrei o trabalho como eu fazia na época, ainda hoje eu não canto.
ZR: A forma de consumir música, nestes últimos 40 anos, mudou bastante, e hoje em vez desse número de álbuns vendidos, a gente conta os plays nas plataformas de streaming. Como é que você lida com as novas tecnologias? A tua forma de ouvir música também mudou, enquanto consumidor, antes de criador?
RB: Eu sou analógico! Eu sou bem analógico. Claro que agora, como eu te falei, da enchente, as coisas que a enchente levou foram meus discos de vinil, que eu tinha ali na Barra, ali fora, mas como eu falei, a gente vai atrás de novo. Umas coisas que eu acho que são bem significativas: eu faço música instrumental, mas faço música regional, uma música bem aqui do Sul. Na minha época, até antes de eu gravar, de eu tocar, eu tinha que acordar às quatro horas da manhã, cinco horas da manhã, para escutar rádio, porque era a única forma de ter acesso à música feita no Rio Grande do Sul, à música regional. Quando chegava àqueles horários, a partir das sete, as rádios já paravam de tocar música regional e seguiam com a programação quase igual de todas elas. Então eu acordava cedo para fazer o chimarrão, para escutar rádio, para poder escutar música gaúcha, coisa que hoje parece maluca, mas era a forma de ter acesso à música. Hoje, graças a Deus, são essas facilidades que a modernidade, as novas formas de divulgação, quer dizer, hoje tu consegue saber o que está acontecendo do outro lado do mundo em tempo real, quer dizer, então, tem as facilidades, sem dúvida alguma, mas eu sou do tempo, ainda, de escutar rádio.
ZR: No próximo sábado, dia 27, você se apresenta no Sesc Pinheiros, em São Paulo, e já na próxima quinta, dia 1º. de agosto, aqui em São Luís, de onde estou falando com você, aqui no Teatro Arthur Azevedo, na programação do Lençóis Jazz e Blues Festival.
RB: Eu saio de São Luís e vou direto, no dia seguinte, eu faço Brasília, no Clube do Choro.
ZR: O que você está preparando para este show e o que os públicos paulista, maranhense e do Planalto Central podem esperar?
RB: Eu estou comemorando esses 40 anos e dou uma ênfase para este disco, mas uma coisa que também vale registrar, o repertório desse disco, o Gaita Ponto, é um repertório que eu ainda toco boa parte dele em alguns shows, eu não deixei de tocar. Eu tenho quase 30 discos, entre vinil, cd e dvd, o repertório do primeiro disco, volta e meia eu estou tocando. Eu acho que um dos motivos de ele ter dado certo, é que ele tem uma seleção boa de músicas. Eu vou focar um pouco nesse repertório do primeiro disco e vou tocar algumas músicas mais emblemáticas da minha carreira também nesses 40 anos.
ZR: No show do Sesc Pinheiros eu vi que você vai estar acompanhado por Daniel Sá no violão acústico, Pedro Figueiredo na flauta e saxofone, e Vitor Peixoto ao piano. Vai ser o mesmo time aqui em São Luís e em Brasília ou essa banda muda?
RB: Não, é o mesmo time. Esse pessoal me acompanha há muito tempo. O Daniel e o Pedro, que são violão e sax, já tocam comigo há 35 anos. E o Vitor Peixoto, que entrou depois, mas mesmo assim já está há quase 18.
ZR: Borghetti, tua última vinda à São Luís, se eu não estiver enganado, foi em 2009, quando você se apresentou no Circo da Cidade, um palco que não existe mais, você teve abertura de Chico Saldanha, um artista local, na turnê do álbum Fandango!. Eu quero saber que lembranças você tem do show e da cidade.
RB: Isso! Muito legal o Circo. Poxa vida! Eu me lembro bem certinho daquele local, do show, do evento, e eu acho legal esse espaço que fica do circo, porque aqui no Rio Grande do Sul, eu não sei se acontecia também por aí, em São Luís ou no Nordeste, ou em outros lugares, eu vejo que no Rio tem essa coisa também do Circo Voador, o circo era um palco. Eu não peguei essa época. Eu peguei a época que as pessoas já não usavam muito o circo como palco para a música, mas um pouquinho antes de eu começar a tocar, o circo era um grande palco da música também, além das atividades de circo, de fazer shows na lona. Eu acho muito legal, acho que isso aproxima, também fica uma acústica legal. Eu gosto do clima.
ZR: Em 2017 você dividiu o álbum Borghetti Yamandu com o violonista conterrâneo Yamandu Costa. Eu queria saber de ti que nomes têm te chamado a atenção na música gaúcha, nomes que você acha que deveriam ser mais conhecidos do brasileiro em geral.
RB: Pois tu sabe que a música gaúcha, ela tem algumas particularidades, eu diria que nem só a música, o gaúcho tem algumas particularidades, de fazer também uma migração para o Brasil, mas não aquela mesma aqui do Norte, Nordeste, que fazem buscando o centro Rio-São Paulo. O gaúcho faz uma migração, mas começa pelo oeste, oeste de Santa Catarina, oeste do Paraná, Mato Grosso, quando era um Mato Grosso só, depois já está no Tocantins, já deve ter aí no Maranhão, tenho certeza que deve ter um pessoal, normalmente lidando com alguma coisa agropecuária, que tem a vocação do gaúcho para isso. Então, existe essa migração do gaúcho no Brasil, só que de uma outra forma. Então eu acho que é legal isso também, porque é uma outra maneira de interagir com as culturas, as culturas de outros estados, porque queira ou não, o Brasil é muito grande. Aqui no Sul, às vezes, a gente acaba tendo um mercado mais localizado, aqui no Rio Grande do Sul, um pouco Santa Catarina, um pouco Paraná, e poder fazer esse corredor pelo oeste do Brasil, eu acho muito legal.
ZR: E nomes? Você apontaria algum? Diria: Zema, você aí no Maranhão tem que conhecer fulano, aqui do Rio Grande do Sul. Tem algum destaque?
RB: Isso que eu estou dizendo! Tu falaste no Yamandu, o Yamandu talvez até pela referência dele, tem sete cordas, Neuro Junior, tem sete cordas o Gabriel Selvagem, tem violão que não é de sete, o Marcelo Caminha, tem o Maurício Marques, depois no acordeom, tem desde o Luciano Maia, tem o Gilberto Monteiro, temos, porra, tem o Guilherme Goulart, tem o Paulo Goulart, são muitos nomes, que eu acho que a gente tem uma música com uma característica muito forte, que eu acho que, por exemplo, no Nordeste, a sanfona, e a gaita, que a gente chama a sanfona no Rio Grande do Sul de gaita, gaita ponto, eu acho que está esse mesmo sotaque, um pouquinho, eu vejo muito mais similaridades do que diferenças.
ZR: Você idealizou em 2010 a Fábrica de Gaiteiros, que é um projeto que trabalha educação musical de crianças e jovens de sete a 15 anos. Eu queria te ouvir um pouco sobre o projeto, seus objetivos e os frutos colhidos desde o seu começo.
RB: Quando eu comecei a tocar gaita, existiam algumas fábricas ainda no Brasil. Na realidade existiam três, duas no Rio Grande do Sul e uma em Santa Catarina. Mas deu uns dois, três anos, essas três que existiam, também desativaram, e faliram ou pararam mesmo ou migraram para outra atividade, assim como nós chegamos a ter 40 e tantas, quase 50 fábricas no Brasil. Todas elas pararam de alguma forma: ou faliram, muitas foram para a indústria moveleira, talvez pela madeira, e nós ficamos sem nenhuma fábrica de acordeom no Brasil, e isso me preocupou muito. E o acordeom não é um instrumento tão acessível, assim, para uma criança que pede para a família um instrumento para começar a tocar, porque gosta, porque se interessa. Aí então eu fui atrás, se eles fabricavam há 40, 50 anos atrás, hoje não que seja fácil, mas é possível. E fui atrás das pessoas que trabalhavam nessas fábricas, o que é que tinha de equipamento ainda, se é que existia, muito pouca coisa existia, então a gente foi fazendo matrizes. Hoje, resumindo, a gente fabrica uma gaita 100%, sem terceirizar nenhuma peça, por isso o nome do projeto, Fábrica de Gaiteiros. O de Gaiteiros é que faz a diferença de uma fábrica comum: uma fábrica de gaitas fabrica e vende as gaitas; a gente fabrica a gaita, mas quando fica pronta a gente não vende nenhuma gaita, a gente destina toda a produção para o ensino de crianças e jovens de sete a 15 anos, de forma gratuita, e eles têm também a gaita para poder levar para casa para estudar. Eles levam, como se fosse um livro de uma biblioteca, eles têm aquele momento de aula e levam para casa para estudar em casa.
ZR: Uma forma de manter viva a tradição, o instrumento e essa música riquíssima de vocês. Parabéns!
RB: Eu até pensava, pô, daqui a uns 100 anos, 50, os caras vão dizer assim: por que é que tem tanto gaiteiro nesse sul do Brasil? Aí iam dizer: o cabeludo louco lá que inventou. Mas não tem nada de 100 anos, 50 anos, o projeto tem 14 anos, e já tem muita gurizada já trabalhando com música, em que pese que o projeto não tem esse objetivo principal de formar o músico. A ideia é a gaita, o instrumento, a música como uma ferramenta de inclusão, de cidadania, de melhora no relacionamento familiar, escolar; é muito mais essa ideia, até porque trabalhamos com sete a 15 anos. Mas muitos seguem a carreira de músico e tem muitos já tocando pelo mundo, fazendo shows no exterior, é muito legal de ver.
ZR: Que bom que tem esse cabeludo maluco para proporcionar esse tipo de coisa. Parabéns!
RB: Obrigado! Te faço também o convite para ir ao show. Chegue no camarim, a gente sempre tem uma cerveja lá no fundo, vamos trocar uma ideia, sempre é bom. Eu já toquei no Festival Lençóis, do Tutuca [Viana, produtor], a forma como tem o respeito pelo artista, pelo músico e consequentemente pelo espectador também. Então é legal o cara poder chegar com uma estrutura sabendo que a estrutura [que vai encontrar] é boa, isso é bárbaro para a cultura, para a música. Eu fico muito feliz de estar participando do festival, aí em São Luís, e matar um pouquinho a saudade.
*
Ouça Gaita Ponto: