Flor de Mururé - foto: Rafaela Kennedy/ divulgação
Flor de Mururé - foto: Rafaela Kennedy/ divulgação

Num álbum pautado na sonoridade dos terreiros das religiões de matriz africana, o cantor e compositor paraense Flor de Mururé literalmente incorpora: a estes vai agregando elementos da cultura pop(ular) como a guitarrada, na esquina com o bolero – além de coco, hip hop e carimbó. É festa!

Croa (Psica Gang/ Natura Musical, 2024), seu álbum de estreia – que sucede o EP Eu Sou Flor (Na Music/ Tratore, 2019) –, abre com o tambor de mina “Chegada” (Flor de Mururé) e continua com “Exú Marabô” (Flor de Murué/ João Feijão), em que a citada agregação começa a ser percebida, nas presenças dos paraenses Manoel Cordeiro e o Trio Manari – que comparece também a “Dona Mulambo” (Flor de Mururé/ João Feijão), “Menino Atotô” (Borblue/ Flor de Mururé/ Iris da Selva) e “Sabiá” (Flor de Mururé/ Yago Mathias).

O título é corruptela de coroa, expressão utilizada no candomblé e na umbanda, para descrever a coroa de um orixá. Croa é potente e Flor de Mururé é pioneiro: trata-se do primeiro artista transgênero da Amazônia a lançar um álbum. Não é um álbum qualquer e sua importância não se deve tão somente a este abrir picadas.

Na capa de Croa, a imagem de Flor de Mururé montando um cavalo no meio de um caminho é repleta de significados: “cavalo”, em algumas religiões de matriz africana, é a pessoa que incorpora as entidades; postado ali, é como se ele estivesse protegendo seu ouvinte e o álbum traz uma forte carga de resistência a violências como o racismo, a LGBTfobia e a intolerância para com os cultos afro.

Croa é verdadeiro: nele Flor de Mururé imprime sua própria trajetória, de quem saiu de casa aos 16 anos diante de tensões familiares relacionadas a sua orientação de gênero. Por 10 anos o artista estudou violão, canto coral, violino e flauta no Conservatório Carlos Gomes, em Belém/PA, uma das mais respeitadas instituições do ramo no país. Tornou-se artista de rua nas rodas de carimbó e passou a pesquisar ritmos ancestrais. O álbum é resultado destas absorções.

Num terreiro de tambor de mina encontrou a Mãe Rosa de Luyara, enfermeira, travesti e líder espiritual. “O nosso corpo é marginalizado em todos os lugares e ambientes. A gente não tem espaço nem para o espiritual. Então, quando eu me deparo com a Mãe Rosinha, vejo nela um corpo trans, minha imagem e semelhança. Sinto que ali poderia seguir o meu caminho”, afirma Flor de Mururé no material de divulgação distribuído aos meios de comunicação.

“Eu nunca tinha visto um homem trans no palco. Então quis ser a minha própria referência. Pra mim, o que importa é nosso corpo-território vivo”, continua.

O poeta, compositor, violonista e intelectual baiano Tiganá Santana comparece a “Resgate” (Flor de Mururé/ Tiganá Santana): “meu corpo é segredo porque é presença”, declama, na faixa gravada ainda com a participação especial de Mitchell Long (violão e guitarra).

Parceiro em duas faixas, João Feijão toca contrabaixo e violão (banjo em “Sabiá”) no álbum. Croa tem produção do mago André Magalhães (A Barca), que pilota diversos instrumentos em várias faixas. Croa congrega artistas trans da região amazônica (Anastácia Marshelly, Valesca Minaj, Mulambra, Rafaela Kennedy, Rafaela Cardoso, Iris da Selva, Borblue e Isabella Pamplona), num registro diverso e plural a que comparecem ainda gravações realizadas em terreiros no Pará e no Maranhão (Terreiro de Encantaria Caboclo Tucuero e Casa de Nagô, além da Escola Acapus de Capoeira Angola, para citar os espaços ludovicenses), numa conexão geográfica, musical e religiosa sui generis.

Croa, o álbum, e Flor de Mururé, o artista, precisam deixar de ser segredos porque são potência.

"Croa" - capa/ reprodução
“Croa” – capa/ reprodução

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Ouça Croa:

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