Jesuíta Barbosa, Demick Lopes e Lis Sutter em "A Filha do Palhaço", de Pedro Diogenes

A tristeza essencial do profissional que faz rir é o mito fundador do filme A Filha do Palhaço, do cearense Pedro Diogenes, em cartaz nos cinemas brasileiros desde quinta-feira, 30. O palhaço em questão é atípico: o protagonista vivido por Demick Lopes sonhou ser ator profissional e ganha a vida interpretando sem muita graça a personagem Silvanelly, construída nos moldes das drag queens que se apresentam em inferninhos gays e afins. A história se desenrola a partir do momento que a filha de 14 anos do palhaço, interpretada por Lis Sutter, vai passar uma temporada com o pai ausente, numa relação que se inicia pelo completo estranhamento de parte a parte. Não apenas palhaço, o pai é o folgazão que abandonou a filha bebê e foi viver outras aventuras, abrindo um abismo entre ambos.

Demick Lopes dá vida ao palhaço que se monta como a espalhafatosa Silvanelly

O diretor se inspira em seu primo Paulo Diógenes, que foi um dos comediantes mais populares do Ceará, deu vida à personagem cômica Raimundinha, terminava suas apresentações cantando o baladão dramático “Sonhos de um Palhaço” (1977), do paulistano Antonio Marcos, e morreu no início de 2024, aos 62 anos. O laço que o Diogenes cineasta estabelece aqui é com a tradição do humor cearense, caudalosa em figuras como as de Renato Aragão (com quem o protagonista Demick Lopes tem certa semelhança física), Chico Anysio, Tom Cavalcanti, Tiririca, Rossicléa e outros, várias delas enquadráveis na frequente contradição do palhaço triste, o artista que faz rir, mas, em sua vida real, mal sabe ou consegue esboçar um sorriso.

Para além da trama semi-romântica, A Filha do Palhaço investiga, ao mesmo tempo e com muita sutileza, o que há por trás de duas perguntas intrigantes: por que tantos palhaços são tristes na vida real?, por que o Ceará é um nascedouro de tantos e tão talentosos palhaços?

As respostas não são simples nem óbvias, mas a história dirigida por Pedro Diogenes procura decifrá-las, espalhando pelo caminho uma série de pistas, com grande sensibilidade. A relação entre pai e filha se inicia como choque e evolui entre altos e baixos, em situações não raro mais passíveis de fazer chorar do que rir.

Jesuíta Barbosa como o ator-saltimbanco Marlom

O palhaço triste não tarda a demonstrar traços de fragilidade que o diferenciam do modelo paterno/masculino predominante, o que acaba por gerar na filha, a contragosto, uma inesperada identificação – o pai tardio é bem mais um companheiro de infortúnios que um provedor-protetor. O ator e saltimbanco Marlom, encarnado pelo pernambucano Jesuíta Barbosa, surge para se tornar um mediador involuntário do difícil entrosamento entre o palhaço e a filha do palhaço. Na hora de cantar, Silvanelly e/ou seu criador elege(m) não os “Sonhos de um Palhaço” de Antonio Marcos, mas a igualmente kitsch e emotiva “Tô Fazendo Falta” (1990), gravada pela cantora carioca Joanna, ou o tristíssimo hino sertanejo “Assum Preto” (1950), sucesso do pernambucano Luiz Gonzaga. “Tô Fazendo Falta”, em especial, libera mais camadas de identificação desarmônica entre a filha e o pai.

O palhaço (Demick Lopes) e sua filha (Lis Sutter) na noite de Fortaleza

Assim como o trio disfuncional formado por Demick Lopes, Jesuíta Barbosa e Lis Sutter estabelece um balé entre gerações na cena de A Filha do Palhaço, sua trilha sonora viaja em águas mansas entre Luiz Gonzaga, Joanna e talentos jovens da cena cearense, entre os quais sobressaem Cozilos Vitor e João Victor Barroso, nos temas de fundo; o explosivo Getúlio Abelha (um cearense nascido no Piauí), em sua sofrência “Sinal Fechado” (2020); e Luiza Nobel, que aparece cantando com excelência sua bela “365 Dias” (2019).

A Filha do Palhaço confirma o Ceará como celeiro não apenas de humoristas, mas também de cantores e compositores, de atores e cineastas. Fortaleza se insinua como pano de fundo nas cenas de noites vazias, botecos, inferninhos e a Praia do Futuro que o conterrâneo Karim Aïnouz exaltou em seu filme homônimo de 2014. Os motivos da tristeza do palhaço serão revelados em gotas de colírio para quem for testemunhar as belezas acesas por dentro e apagadas pelo sofrimento de A Filha do Palhaço.

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