Na próxima quarta-feira (27) chega às plataformas digitais Cartas de Marear (faça aqui o pré-save), quinto álbum solo de Juliana Amaral, cantora, compositora, professora, escritora, atriz e artista gráfica. Suas múltiplas ocupações nos permitem ver/ouvir um trabalho também plural.
Cartas de Marear nasce das reflexões da artista, aprofundadas ao longo da pandemia de covid-19, sobre ser mulher e envelhecer – ela acaba de completar 50 anos –, na série “Cartografias Ou Um Corpo Que Res/Existe”, um conjunto de textos e autorretratos, poéticos e políticos, que busca abarcar o tempo impresso em seu próprio corpo, num processo particularíssimo.
Para o processo de composição e realização do álbum, Juliana Amaral (vozes, composição e direção musical) acercou-se de Erica Navarro (violoncelo, violão e composição), Larissa Oliveira (flugelhorn e composição), Lua Bernardo (contrabaixo, flauta, produção e composição), Talita del Collado (voz, percussão, produção e composição), Thais Nicodemo (piano, piano preparado e composição) e as Clarianas – Naruna Costa, Naloana Lima e Martinha Soares – (vozes e composição).
O resultado é diverso, entre reescrita, a mutação de prosa em poema (e destes em letras de música) ou mesmo o musicar textos em prosa – cada convidada teve liberdade para experimentar e criar.
Juliana Amaral conversou com exclusividade com FAROFAFÁ.
ZEMA RIBEIRO: O título Cartas de Marear é um leque que se desdobra em múltiplos significados. Gostaria que você comentasse um pouco este conceito.
JULIANA AMARAL: Meus discos são desenhados. Eu gosto dessa palavra – desenho – porque ela tem a mesma raiz etimológica de “desígnio”, que por sua vez tem algum parentesco semântico com “desejo”. Por outro lado, um “desenho” inicia sempre de um “risco”, o primeiro movimento que irrompe o silêncio, o vazio – no espaço, no tempo. Todo movimento que compõe uma obra (disco, espetáculo), é sempre uma escolha, um risco. Estou querendo dizer que este álbum nasce da (e é construído pela) minha necessidade incontornável de dizer e de me arriscar em fazer isso do meu jeito. E fazer uma obra é, em alguma medida, empilhar camadas de sentido, costurá-las, bordá-las, para revelar, para esconder, enfim. As palavras, como você pode ver, são para mim um negócio seríssimo, eu gosto delas como de pessoas. O ponto de partida de tudo, como você sabe, é a série de textos chamada “Cartografias Ou Um Corpo Que Res/Existe”, e este até poderia ser o nome do disco. Cartas de Marear é um sinônimo de “Cartografias”, mas acresce ao nome original algumas camadas de sentido que me interessam muito: os elementos água e ar, muito presentes nos textos; a carta como mapa mas também como aquilo que se lança para o outro em distância (ou em segredo); o movimento constante e incontrolável, a não estabilidade de um chão que não é firme (que nauseia, emociona ou embriaga). E, por fim, é também uma homenagem discreta ao Hélio Eichbauer [1941-2018], cenógrafo e pessoa absolutamente incrível que eu tive o prazer de conviver um pouco, cujo livro de memórias tem este mesmo título.
ZR: O conceito do álbum passa também pela passagem do tempo e as marcas que deixa no corpo, que é algo do qual ninguém pode fugir, mas que a sociedade machista, patriarcal e misógina não perde a oportunidade de apontar o dedo para as “imperfeições”. Como você lida com a questão e quando percebeu o incômodo, trazendo esse tipo de reflexão mais escancaradamente para tua obra, a ponto de realizar um trabalho multimídia abordando tais questões?
JA: Já há alguns anos eu tenho para mim como prerrogativa inegociável a não reprodução da lógica colonial nas minhas ações e relações. Em qualquer âmbito da minha existência, porque não vejo como dividir ética, poética, política, estética, artística, meu “eu” pessoal ou público, ou seja, eu sou uma mesma pessoa sempre. E minha obra sempre foi profundamente atravessada pelo presente. Em Açoite [2016], por exemplo, o desejo/desenho do disco (e do espetáculo) era reconhecer o “desigual e combinado” formador da cultura brasileira e da própria brasilidade, e tentar transmutar a dor e a violência em beleza. Era 2016 e mal sabíamos onde íamos parar. Quando chega 2018 eu me senti completamente asfixiada – o Brasil caminhando a passos largos para o fundo do poço, meu disco Açoite subitamente era “velho”, eu não conseguia mais fazer show, e parecia que a fórmula mágica de permanecer no “mercado da música” era me autopromovendo nas redes sociais – e eu definitivamente odeio fazer vídeo de mim mesma. Eu tinha 45 anos, estava entrando no climatério, tecnicamente minha voz estava estranha, e meu corpo pareceu, de repente, irreconhecível. Foi quando eu decidi (foi uma decisão mesmo) que eu ia fazer aula de dança e me super-expor nas redes (em textos e fotos nua), fazendo disso minha pesquisa artística, tentando dar ao meu corpo o protagonismo – um dos esforços decoloniais que considero dos mais importantes. Daí veio a pandemia, e tudo ficou exponencialmente mais terrível. Entre abril de 2019 e janeiro de 2023 publiquei 44 textos que escarafuncham essa tentativa de reabitar meu corpo, de entender o que ele significa e o que ele sente, como se move, neste tempo e neste lugar. É uma reflexão muito pessoal que, por um lado, nunca se pretendeu generalista, ou seja, nunca escrevi na tentativa de “representar” outras mulheres (até porque sei da minha posição de mulher branca cis muito privilegiada, inclusive afetivamente). Mas por outro, eu intencionalmente deixei meu corpo permeável, atravessável, num mergulho bastante corajoso (e às vezes violento pra mim mesma) de revisitar memórias, perceber movimentos, refletir sobre o que veio antes, enfim, escancarar aquilo que a gente e os outros não querem ver.
ZR: Cartas de Marear é seu primeiro álbum completamente autoral e realizado quase inteiramente por mulheres, o que é bastante coerente, dada a temática. Vamos falar um pouco sobre essa escolha.
JA: Seguindo com meu compromisso inegociável de não reproduzir a lógica colonial em tudo o que faço, há alguns anos decidi trabalhar prioritariamente com mulheres, mesmo antes deste projeto. Quando fui contemplada pelo edital de Fomento à Música da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, não seria diferente. No projeto, a proposta era escolher oito artistas para compor e tocar no álbum – a ideia nunca foi formar uma “banda”, mas o grupo precisava constituir uma sonoridade interessante e suficiente para o disco. Aprofundando o recorte, me propus ainda outras tarefas: elas deviam ser de regiões diferentes da cidade, e eu queria uma maioria de mulheres negras. E antes: elas precisavam ter vontade de cancionar os meus textos, fazer deles a sua própria voz. Então foi um quebra-cabeças delicado e minucioso, sete meses para conseguir consolidar o grupo. A equipe técnica também é de mulheres – engenheira de som, iluminadora, assessora de imprensa. E tem outra coisa importante: não adianta colocar mulheres para executar um projeto e manter uma estrutura verticalizada, em que a tomada de decisões e escolhas artísticas são feitas por uma só pessoa (pior ainda se for um homem). Então no disco, a direção musical e artística foi minha, mas da composição à masterização, tudo foi discutido de modo muito horizontal, todas tivemos muito espaço para trabalhar e possibilidade de escolher, transformar e decidir.
ZR: Chama à atenção também o processo de composição, desde a série de fotos e textos que você publicou nas redes sociais, que foram as reflexões iniciais sobre ser mulher e sobre envelhecer, e que acabou sendo o ponto de partida das composições de Cartas de Marear. Vamos falar um pouco sobre o processo de composição e produção do álbum.
JA: Ao convidar as compositoras, minha primeira atitude foi enviar as “Cartografias” e perguntar se aquilo fazia sentido para elas – porque meu palavrório poderia não lhes dizer nada, né? Dos 44 textos escritos, eu fiz uma seleção de 16, e durante o processo, cada artista foi trabalhando sobre um deles. Curiosamente, não houve escolhas repetidas. Meu objetivo primordial foi proporcionar o encontro e o diálogo, então não houve qualquer orientação, recomendação, diretriz quanto à composição – nossa única limitação era o prazo (edital é uma correria) e a arregimentação do álbum, ou seja, não dava, por exemplo, para fazer uma canção que precisasse de uma harpista, porque eu não poderia chamar uma para gravar. Era muito importante para mim que cada convidada fizesse com os textos o que quisesse, sem pudores. Foi um exercício lindo de confiança e responsabilidade, de desapego e afeto, e eu fiquei extremamente honrada com o que fizemos. Para gravar as faixas, seguimos do mesmo jeito – muita troca, muito diálogo, muito espaço. Teve compositora que deixou o arranjo escrito, mais fechadinho; teve arranjo que foi decidido mais coletivamente; teve faixa que foi praticamente composta no estúdio. Acho que para dar certo e no prazo, contamos também com a excelência e a sensibilidade da engenharia de som da Florencia [Saravia-Akamine] e com a minha experiência na produção e direção, porque eu tive sempre muita confiança no processo e muito respeito pelo afeto depositado por cada uma no trabalho.
ZR: Ao longo das faixas a gente percebe músicas em poemas/letras de canção e também textos em prosa, e em determinadas faixas ambas as coisas ao mesmo tempo, quer dizer, cada texto escolhido para compor o repertório final teve um trajeto muito particular. Chega a um ponto que a obra parece caminhar com as próprias pernas? Ou isso tem a ver também com a equipe envolvida?
JA: Acho que tem a ver com as pessoas e com a proposição inicial. Ter um repositório poético único de fundo garantiu uma unidade artística para o álbum, deixando muito espaço para cada uma trabalhar. E eu não tinha, de verdade, uma expectativa prévia com relação às composições, fui surpreendida com o que foi chegando – nada é comparável com essa alegria. Acabou que os procedimentos de composição foram muitos variados, e talvez por isso essa sensação de “caminhar com as próprias pernas” (o que me soa como um baita elogio, obrigada). “Corpo-Movimento” e “Súbito” (da Erica Navarro) e “Corpo Continente” (da Thais Nicodemo) foram feitas diretamente sobre os textos em prosa, com pequenos ajustes de prosódia. “Dançar Nunca Foi Opção” (da Talita del Collado) combina palavras ou versos cantados sobrepostos à leitura de trechos em prosa vindos de duas “Cartografias”, em estrutura contrapontística. “Palavras Justas” (da Lua Bernardo) e “Ritos de Passagem” (das Clarianas) são canções em que as compositoras escreveram versos seus a partir dos meus textos, e cancionaram. Em “Ponto Encruza”, a Larissa Oliveira fez um tema instrumental inspirado em uma das minhas “Cartografias”, e então rescrevi o texto para caber na melodia. Das minhas composições de letra e música, “Cartografia 22” preserva o texto original, foi feita de enfiada; “Lâmina” e “Trabalho” foram resultado de processos mais demorados de reescritura dos textos pra servir à estrutura cancional (e vice-versa), e “Meu Corpo Não Esquece” foi um exercício de construção vocal em camadas sobrepostas de melodias (com e sem letra), ruídos, ritmos, efeitos etc.
ZR: Ouço seu novo álbum como uma espécie de manifesto pelo empoderamento da mulher, uma insurreição contra as violências e negações de direitos a que as mulheres são submetidas cotidianamente, mas sem querer reduzi-lo somente a isto, inclusive em razão da sua obra e formação serem plurais. Havia esta intenção?
JA: Como respondi ali em cima, não havia essa intenção não, e segue não tendo. Havia (e ainda há) a minha necessidade incontornável de lidar com o real – a hiper-exposição nas redes, o momento histórico-político-social violento, os processos no meu corpo e na minha voz, minha memória, tudo isso atravessado por uma pandemia. E também a vontade do encontro, do diálogo, de ter outras gentes por perto, de aprender e trocar. Uma vez uma amiga me disse que sempre que uma mulher resolver falar, haverá por que ouvi-la. E tem aquela outra frase célebre, se quer falar sobre o mundo, descreva sua aldeia. Eu penso muito e sofro muito (e falo-escrevo muito [risos]), coloco meu corpo a serviço, então acho que acabo sendo veículo de algumas coisas. Escrevi anos atrás que a minha voz é condão e condenação – ou de um jeito mais poético, minha voz é cond(enaç)ão.
ZR: Entre outros, o álbum explora conceitos como “corpo pessoal e corpo coletivo” (“Mapa-Movimento”), trabalho (“Trabalho”), aquele trabalho não remunerado que é empurrado para as mulheres e etiquetado como “amor”, os cuidados com a casa e com a família, a obrigação da maternidade (“Ritos de Passagem”); quer dizer, aborda as dificuldades da mulher, ao mesmo tempo em que propõe a superação destas dificuldades pela liberdade. Quais as dores e as delícias de ser mulher, de ser artista-mulher e de envelhecer mulher no Brasil, hoje?
JA: Olha, acho que tem mais dor que delícia. Somos um povo e uma cultura fruto de um projeto colonial extremamente violento, e isso está impregnado na gente. Nossa maravilha e nossa desgraça têm a mesma raiz, e ser mulher aqui é responder a este legado. Eu amo ser mulher, não me imagino outra coisa, mas não posso me furtar a reconhecer minha posição que é contraditória – sou mulher mas sou branca, sou branca mas sou bissexual, sou classe média mas sou artista, sou mãe e estive muito solitária, mas nunca abandonada, estou envelhecendo ao lado de quem me ama, e tenho condição de pensar sobre isso. A diferença, eu acho, é que eu pude e posso escolher, e eu tenho de saber que isso neste país neste momento é um privilégio. Ou seja, a todo tempo tenho que reconhecer a minha posição: ter força e coragem para não fazer qualquer concessão; oportunizar acesso e escolha para mim e para outras mulheres, inclusive dar o meu lugar quando for o caso; e vigiar meu gesto para não reproduzir o horror que eu posso, mesmo que sem querer, causar.
ZR: Cartas de Marear terá edição física? Pergunto tanto por ser adepto ainda da mídia física mas também porque percebo o álbum como um trabalho multidisciplinar, no diálogo entre a música e o que a antecedeu, a tua série de textos e retratos publicados nas redes sociais e em um blogue, e eu queria saber da intenção em juntar todo esse material em um encarte ou coisa parecida.
JA: Além de cantora, compositora e professora de voz, escrevo, sou atriz e artista gráfica. Então não consigo pensar as coisas separadamente, tudo conversa com tudo – acho que por isso essa sua percepção de ser um projeto multidisciplinar. Nesse sentido, tem o espetáculo que está sendo gestado junto com o disco, com direção de arte do Humberto Pio, meu companheiro de vida e parceiro artístico há 17 anos. Para o espetáculo, eu costurei um parangolé de cinco metros de diâmetro que vou usar nos shows – um figurino-cenário, eu sendo minha própria rosa-dos-ventos. Aliás, eu, o Humberto (arquiteto e poeta) e o Marcelo Dacosta (arquiteto e fotógrafo) formamos um coletivo, o Estúdio Risco, que desenvolve projetos de design e arquitetura desde 2007. A gente que fez o projeto gráfico do álbum digital e das divulgações, e também os dois clipes que foram lançados junto com os singles. Além disso, tem uma conversa iniciada com uma editora para lançar um livro nos próximos meses, que trará todas as “Cartografias” com as imagens originais. E há duas semanas o Guto Ruocco, do Selo Circus (meu parceiro fonográfico no projeto, com amor e orgulho), me disse que vai fazer o CD físico, e vou fazer o projeto gráfico, é claro.
ZR: Entre as que têm lugar em tua formação e nomes da nova geração, que mulheres te inspiram na música?
JA: Das responsáveis pela construção da canção brasileira do ponto de vista da voz, presentes na minha formação pessoal, sou devota da Elizeth [Cardoso, 1920-1990], da Elis [Regina, 1945-1982], da Aracy [de Almeida, 1914-1988] e Dona Ivone [Lara, 1921-2018]– vozes e mulheres incríveis. O Milton [Nascimento] está no altar da minha casa. Por conta da minha atividade pedagógica, tenho ouvido de novo e aprendido muito com as mais antigas – Carmem Miranda [1909-1955], Aracy Cortes [1904-1985], Dalva de Oliveira [1917-1972], Isaurinha Garcia [1923-1993]. Recentemente me re-apaixonei pela Gal [Costa, 1945-2022]… mas a canção brasileira é tão prodigiosa, é uma maldade ter que escolher algumas. Da minha geração, eu amo minhas amigas/irmãs – Fabiana Cozza, Ana Luiza, as Clarianas, Paula Sanches, que, cada uma a seu modo, estão construindo trajetórias muito consistentes, raízes profundas. Mas tem tanta gente para citar, Zema, repito, é uma maldade essa pergunta…
ZR: Cartas de Marear chega às plataformas digitais no próximo dia 27. Como está a agenda de divulgação do álbum, shows marcados, perspectiva de circulação, o que você pode adiantar?
JA: Pelo Edital do Fomento (que viabilizou a gravação do disco) eu realizo três espetáculos gratuitos do disco no mês de abril – dia 14 (domingo) no Centro Cultural Santo Amaro; dia 18 (quinta) na Casa de Cultura São Rafael; e dia 26 (sexta) na Casa de Cultura do Butantã. Em cada um desses equipamentos, faço uma oficina de voz, uma roda de conversa, e o show com três das artistas que participaram do disco dividindo o palco comigo. Em maio devemos fazer os espetáculos de lançamento maiores, com a participação das oito convidadas do projeto. E estamos na época de abertura de editais, então nos próximos meses vou inscrever o projeto para poder circular muito com o show em 2024 e 2025.