A obra de Lupicinio Rodrigues ganha novos contornos em “Confissões de um Sofredor”

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Todo ano, à época do Oscar, voltam ao noticiário os troféus disputados por concorrentes brasileiros ao longo da história da premiação máxima de Hollywood. Fernanda Montenegro costuma ser a mais lembrada, pelo prêmio de melhor atriz perdido em 1999 para a jovem Gwyneth Paltrow. Retrocedendo bastante, talvez alguém evoque a estreia do país no Oscar, em 1945, quando “Rio de Janeiro“, de Ary Barroso, disputou (mas não levou) o prêmio de melhor canção original pelo filme musical Brazil, dirigido por Joseph Santley. O documentário Lupicinio Rodrigues – Confissões de um Sofredor (que estreou comercialmente nesta quinta-feira, 14, em cinemas de Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Caxias do Sul, João Pessoa, Porto Alegre, Natal, Rio de Janeiro, Santa Maria, São Paulo e Teresina) resgata uma história caída no esquecimento há oito décadas, sobre o Oscar que o compositor e cantor gaúcho de Porto Alegre disputou sem querer nem saber.

Assinado pelo diretor paulista Alfredo Manevy, Confissões de um Sofredor repõe a presença de um clássico de Lupicinio Rodrigues (1914-1974) e do samba, “Se Acasso Você Chegasse” (1938), no musical Dançarina Loura (Lady Let’s Dance), de Frank Woodruff, que disputou o Oscar de melhor trilha sonora no mesmo 1945 em que o samba-exaltação de Ary Barroso concorria a melhor canção. O grande público não soube disso na época e continua a não saber 79 anos depois, já que o verdadeiro autor não foi creditado na versão instrumental de “Se Acaso Você Chegasse” que compõe um dos números musicais de Dançarina Loura.

O número de dança com “Se Acaso Você Chegasse” em Dançarina Loura (1944)

Motivados pelo baú de omissões remexido pelo documentário, de que não tinham conhecimento, familiares do artista encaminharam uma carta à Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos Estados Unidos, responsável pela organização e gestão do Oscar, reivindicando a inclusão do nome de Lupicinio Rodrigues nos créditos de Dançarina Loura e, consequentemente, na lista de compositores que concorreram ao prêmio.

“Quando filmes são pirateados no Brasil, os Estados Unidos vêm apontar a pirataria. Quando é o contrário, a gente precisa ter reciprocidade entre os países”, argumenta Manevy, observando que a reivindicação tem dois aliados de peso, um no Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o ministro de segunda classe Marco Antônio Nakata, e outro em Hollywood, o advogado Miles Cooley, habituado a defender causas de estrelas como Rihanna, Jay-Z, Kanye West e 50 Cent e casado com uma brasileira.

“Cooley abraçou a causa e vai representar a família judicialmente junto ao Oscar. Ele entrou em diálogo com o estúdio responsável pelo filme, MGM, para que dê o crédito, e depois ele vai acionar a Academia do Oscar”, explica o cineasta. “O ministro Nakata está conduzindo essa negociação através do Itamaraty, dando o peso e a chancela do Estado brasileiro de que esse é um assunto não só de Lupicinio, mas de relações culturais entre Brasil e Estados Unidos.” Na avaliação de Manevy, seu documentário colaborou para essa causa ao trazer a história à tona e ao tratá-la não de uma forma folclórica ou engraçada, como o próprio autor de “Se Acaso Você Chegasse” teve de se conformar em fazer à época.

“Tudo bem que Lupicinio deu risada, achou divertido, mas este não é um assunto qualquer quando se pensa na luta dos artistas pela sobrevivência, na precariedade da economia cultural no Brasil, em como o Brasil sempre entra de forma desigual no mercado cultural global. A gente sabe, por exemplo, que João Gilberto, entre tantos outros, terminou com muita dificuldade financeira”, compara Manevy, referindo-se ao papa da bossa nova, de reconhecimento mundial, morto em 2019. Rindo ou não da pirataria cometida por Hollywood, Lupicinio se tornaria no ano seguinte, 1946, diretor da Sociedade Brasileira dos Compositores Autorais, onde permaneceu por 28 anos.

Seja qual for o resultado da reivindicação, constar na lista de indicações ao Oscar não chegaria a ser a maior façanha de “Se Acaso Você Chegasse”. Trata-se de um samba maiúsculo desde 1938, quando se tornou o primeiro êxito popular não apenas do compositor Lupicinio, mas também de seu intérprete genial, o carioca Cyro Monteiro, futuro mestre do samba sincopado.

A versão original de “Se Acaso Você Chegasse” (1938), por Cyro Monteiro

Em 1959, 21 anos após seu nascimento, “Se Acaso Você Chegasse” alçou ao estrelato mais uma artista iniciante, a sambista, samba-jazzista e não-sambista também carioca Elza Soares, que conta com humor e graça, em Confissões de um Sofredor, seu desastrado primeiro encontro com o já então veterano autor do samba. Antes de Elza, outro artista que escolheu essa composição como uma de suas gravações inaugurais foi o acreano João Donato, em fase ainda pré-bossa nova, numa versão instrumental em estilo gafieira de 1954.

Em 1959/1960, Elza Soares lança a bossa negra, cantando “Se Acaso Você Chegasse”

Com centenas de versões, trata-se de uma das composições mais regravadas de Lupicinio ao longo de muitas décadas, por gente tão diversificada como Risadinha (1955), Zilá Fonseca (1957), Caco Velho (1958), Lúcio Alves, Roberto Silva (1959) Francisco Egydio (1962), Marlene (1975), Baby Consuelo/do Brasil (1980), Nelson Gonçalves (1986, em dueto com Elza Soares), Joanna, Zé Luiz Mazziotti (1994), Lobão (1996, também com Elza), Danilo Caymmi (1997), Jair Rodrigues (1998), Simone e Zeca Pagodinho (2002), Noite Ilustrada (2003), Thedy Corrêa (2005), Clara Moreno (2007), Edith Veiga (2011), Arrigo Barnabé (2012), Adriana Calcanhotto (2015)…

“Se Acaso Você Chegasse” tornou-se também uma predileta de maestros e instrumentistas a granel, como a pianista Carolina Cardoso de Menezes (em 1954), Britinho (1956), Raul de Barros, Ribamar, Zé Menezes (1957), o violinista Fafá Lemos, K-Ximbinho, Léo Peracchi (1958), Bené Nunes, Breno Sauer, Canhoto, Vadico (1959), Enrico Simonetti (1960), Avena de Castro, Bob Fleming, Paulinho Nogueira (1961), Bola Sete, Luiz Arruda Paes (1962), André Penazzi (1963), Alexandre Gnattali (1964), Heraldo do Monte (1970), Arismar do Espírito Santo (2005), Leo Gandelman (2015)…

“Se Acaso Você Chegasse” na voz do dono, em 1955

O compositor também registrou “Se Acaso Você Chegasse” da própria garganta, em 1955, em Roteiro de um Boêmio, segundo de apenas três LPs autorais que conseguiu lançar entre 1952 e 1973. Lupicinio foi um cantor de voz suave e miúda (inspirada na de Mário Reis, segundo declarava), que teve êxito bem menor que o Lupicinio compositor.

Vibrante, o samba em tempo forte é exceção num relicário de obras-primas em samba desacelerado, movidas pela revolta amorosa, quase sempre à beirada do drama e da tragédia. Confissões de um Sofredor coloca ênfase em poucas (e boas) dessas obras-primas, esmiuçando em especial “Nervos de Aço” (lançado por Francisco Alves em 1947), “Quem Há de Dizer” (idem, 1948) e “Vingança” (por Linda Baptista, 1951).

“Rei da voz”, Francisco Alves revelou “Nervos de Aço” (1947)…
…e “Quem Há de Dizer” (1948)

Embora poucas, apenas essas três canções são capazes de condensar e sintetizar o imaginário tormentoso de Lupicinio, um torvelinho feito de expressões como “loucura”, “amor”, “sem sangue nas veias”, “sem coração”, “ciúme”, “amizade”, “despeito”, “horror”, “desejo de morte”, “dor”, “bebendo”, “abandono”, “cabaré”, “chorando”, “mesa de um bar”, “soluço”, “vergonha”, “remorso”, “desespero”…

“Vingança” (1951) por Linda Baptista

O elenco que desfila no filme interpretando essas e outras canções forma um quem-é-quem da história da música popular brasileira do século passado. “Nervos de Aço” aparece nas vozes de Lupicinio, Paulinho da Viola, Elza Soares, Caetano Veloso, Ney Matogrosso, Arrigo Barnabé, Marisa Monte e Adriana Calcanhotto. “Quem Há de Dizer” surge cantada por Lupicinio e por Francisco Alves e transtornada em bossa nova por João Gilberto (no registro televisivo do encontro televisivo com Caetano e Gal Costa, em 1971). “Vingança” é dividida entre a intérprete original, Linda Baptista, a mexicana Maria Victoria e, em emocionada interpretação registrada especialmente para o documentário, a cantora transexual gaúcha Valéria Barcellos.

Em 1952, Lupicinio grava “Felicidade” acompanhado pel’As 3 Marias

Não é só. O filme volta a iluminar “Felicidade” (1947, em versões cantadas por Lupicinio e Caetano), “Esses Moços (Pobres Moços)” (1948, por Lupicinio e Gilberto Gil), “Maria Rosa” (1950, Francisco Alves e Paulinho da Viola), “Nunca” (1951, Lupicinio), “Volta” (1957, Gal), “Ela Disse-Me Assim” (1959, Jamelão), “Paciência (Vou Brigar com Ela)” (1961, Áurea Martins), “Loucura” (1973, Lupicinio e Maria Bethânia)… Sente-se a falta, especialmente, de uma conterrânea porto-alegrense de Lupicinio também moldada na chamada dor de cotovelo, Elis Regina, que registrou duas históricas releituras de peças dramáticas lançados por Francisco Alves em 1950, “Cadeira Vazia” e “Maria Rosa”.

Em 1974, Elis Regina relê os dramas sentimentais de “Cadeira Vazia”…
…e de “Maria Rosa”, ambas lançadas 24 anos antes

Rigoroso, o documentário requalifica Lupicinio como uma das forças nutrizes do samba-canção, gênero que apontou no horizonte com Noel Rosa nos anos 1930, mas viveu seu auge nos 1950, romantizando e desacelerando o samba brasileiro sob influência dos boleros latino-americanos – a bossa jazzificada de João Gilberto e Tom Jobim eclodiria em 1958, em grande medida como reação aos excessos do samba abolerado. Como ensina o filme, o samba-canção à moda gaúcha de Lupicinio era, mais que abolerado, um filhote da atração pula-fronteira entre o samba brasileiro e o tango argentino.

Dircinha Baptista lança “Nunca” (1952)

Se essa, digamos, peculiaridade limitou as possibilidades de Lupicinio como às do samba e como intérprete, por outro lado seu estilo mestiço e alheio a fronteiras e divisas conquistou pernambucanos como o “rei do baião” Luiz Gonzaga (que em 1952 gravou “Juca” e o gauchíssimo “Jardim da Saudade“), mineiros como Ataulfo Alves (“Trabalho!” e “Malvado“, 1945), gaúchos como Alcides Gonçalves (o primeiro a gravar Lupicinio, em 1936, com “Triste História” e “Pergunte aos Meus Tamancos“), Caco Velho (“Briga de Gato“, 1944, e “Que Baixo!“, 1945), Nelson Gonçalves (“Nossa Senhora das Graças“, 1956), Conjunto Farroupilha (a clássica ode ao chimarrão “Amargo“, 1953), Mary Terezinha (“Caixa de Ódio”, 1966) e Berenice Azambuja (“Amargo“, 1981), paulistas como Isaura Garcia (“Eu Não Sou Louco“, 1950), as irmãs Linda (“Vingança” e “Dona Divergência”, 1951, “Foi Assim“, 1952) e Dircinha Baptista (“Nunca”, 1952), Marlene (o delicioso “Se É Verdade”, 1954), Leny Eversong (“Nunca“, 1957) e Francisco Egydio (o álbum Francisco Egydio Vive os Sucessos de Lupicinio Rodrigues, 1962), o argentino-paulistano Carlos Galhardo (“Minha História”, 1948), o cearense Gilberto Milfont (que lançou “Castigo“, em 1953) e mesmo cariocas como Cyro Monteiro, Moreira da Silva (“Cigano“, 1943), Nora Ney (“Aves Daninhas“, 1954) e Jamelão (“Exemplo”, 1960, “Sozinha”, “Torre de Babel“, 1963, “Um Favor”, 1972), esse último um intérprete preferencial de Lupicinio desde os 1960.

Marlene dá voz a “Se É Verdade” (1954)
O melodrama de “Exemplo” (1960): “Este é o exemplo que damos/ aos jovens recém-namorados/ que é melhor se brigar juntos/ do que chorar separados”

(Coube a Jamelão, a propósito, trazer ao mundo uma das mais fantásticas e desabusadas letras dramalhonas de Lupicinio Rodrigues, de “Sozinha”: “E só por dinheiro/ sabem o que ela fez, essa ingrata mulher?/ fugiu com o doutor que eu mesmo chamei/ e paguei pra curar os seus bichos de pé”.)

“Sozinha” (1963), um dos retratos cruéis de Lupicinio sobre a figura feminina

Noutro território, a obra de Lupicinio comoveu cantores ditos caipiras e foi ecoada ao longo do tempo por Alvarenga e Ranchinho (1948), Tião Carreiro e Pardinho (1965), Nonô e Naná (1971), Duo Guarujá (1975), Nalva Aguiar (1975), Inezita Barroso (1979), Irmãs Galvão (1992)… Composta por Lupicinio aos 18 anos e só lançada 15 anos mais tarde pelos gaúchos do Quarteto Quitandinha, a modinha “Felicidade”, em particular, caiu nas graças de artistas nativistas gaúchos e de duplas caipiras dos vários interiores brasileiros, regravada por Os Gaudérios (1959), Zico e Zeca (em 1975), Nilo Amaro (1980), Alcymar Monteiro (1989), Pena Branca e Xavantinho (1990), Tonico e Tinoco (1991), Renato Borghetti e Almir Sater (1992), Inezita Barroso e Roberto Corrêa (1996), Célia e Celma (2000), Renato Teixeira e Zé Geraldo (2000), Leonardo (2002), Sérgio Reis (2003), Dominguinhos e Yamandu Costa (2010), além de artistas de outras paragens como Moraes Moreira (1996), Kleiton & Kledir (1999), Ná Ozzetti e André Mehmari (2006)…

Quarteto Quitandinha e a versão original de “Felicidade”, de 1947
A releitura mineira de Pena Branca e Xavantinho, em 1990

Rixas regionais e estilos musicais à parte, Lupicinio Rodrigues conquistou perenidade na música brasileira em quatro levas distintas de valorização, a começar pela descoberta de “Se Acaso Você Chegasse” por Cyro Montreiro. Confissões de um Sofredor joga alguma luz no período, posterior a esse, em que um Lupicinio ainda não consolidado vendeu composições para ser assinadas por outros autores – o episódio aparece no documentário na voz do próprio autor e em cenas ficcionalizadas do filme Rio Zona Norte (1957), de Nelson Pereira dos Santos, com Grande Otelo num personagem que poderia ser Ismael Silva, Wilson Baptista, Cartola, Lupicinio ou tantos outros.

Somente após o sucesso de “Basta!” (1944), “Brasa” (1945) e “Zé Ponte” (1947) na voz do rival também carioca Orlando Silva, Francisco Alves enciumou-se e adotou o gaúcho que vendia seus sambas como compositor cativo, provocando a segunda onda de valorização e lançando uma saraivada de clássicos da canção popular brasileira.

João Gilberto iluminou “Quem Há de Dizer”, em 1971, sob a direção de Fernando Faro

Em 1960 houve o furacão Elza Soares, uma década antes da quarta e derradeira leva de celebração em vida do compositor. Essa parece ter se precipitado pelo encontro de João Gilberto, Caetano Veloso e Gal Costa na TV Tupi, em 1971. Já havia sinais anteriores de que a mais nova geração da MPB descobria e estimava Lupicinio, nas regravações de “Nunca” por Beth Carvalho, em 1969, e de “Felicidade” por Paulo Diniz, em 1970, mas a reinterpretação bossa-nova de João para “Quem Há de Dizer” agudizou e acelerou o processo, secundado pelo o álbum de vozeirão Jamelão Interpreta Lupicinio Rodrigues (1972).

1973: Paulinho da Viola moderniza “Nervos de Aço”
1973: Gal Costa remodela “Volta”

Em 1973, Lupicinio revesriu-se da voz pós-bossa nova de Paulinho da Viola, em “Nervos de Aço”, e da voz pós-bossa e pós-tropicália de Gal Costa, em “Volta”. No ano seguinte, um compacto duplo somou à “Volta” de Gal as releituras de “Cadeira Vazia” por Elis Regina, “Felicidade” por Caetano e “Esses Moços” por Gil. Elis à parte, o avanço do trio baiano sobre o gênio do precocemente envelhecido Lupicinio trazia-o para o arco de influência da tropicália e da música brasileira mais moderna da época.

Cantando para cadeiras vazias, Caetano convulsiona “Felicidade”
“Esses Moços”, por Gil

É curioso, em Confissões de um Sofredor, o depoimento semi-crítico do boêmio Lupicinio sobre o comportamento da geração que então dava as cartas na cena, com Caetano, Gil, Paulinho e Chico Buarque. “É uma pena, porque eles não podem. A gente faz uma rodinha, quando chega meia-noite os meninos já têm que se recolher, porque um é fraquinho, o outro tem que cantar no outro dia”, queixa-se, à beira de se despedir da vida. O choque geracional não deixava de produzir seus tremores.

Nos anos seguintes, Maria Bethânia consolidou a lupiciniomania regravando “Quem Há de Dizer” (1974), “Foi Assim” (1975), “Há um Deus” (1977), “Loucura” (1979) e “Vingança” (1989), enquanto Gal Costa revolucionava “Um Favor” (samba-canção que debutou no álbum lupiciniano de Jamelão) numa versão visceral de 1977.

“Loucura” por Bethânia, 1979
“Um Favor”, recriada por Gal Costa em estado de graça, 1977

Vieram em seguida versões de fossa nova que ganharam notoriedade com Maria Creuza (“Vingança“, 1978), Simone (“Ela Disse-Me Assim“, 1978), Zizi Possi (“Nunca“, 1979), Fábio Jr. (“Esses Moços“, 1980) e Fafá de Belém (“Volta“, 1984), alem de uma homenagem torta e pontiaguda de Jards Macalé em um quarto do repertório do disco 4 Batutas & 1 Coringa (1987).

Reconciliando gregos e troianos, o mestre da dor de cotovelo teve o condão de embevecer também a comunidade musical rotulada como “cafona” nos anos 1970, em gravações de Carlos Alberto (“Vingança“, 1972), Fernando Mendes (“Felicidade“, 1972), o conterrâneo nativista Teixeirinha (“Vingança“, 1971, “Judiaria“, 1973), Luiz Américo (“Quem Há de Dizer“, 1974), Wanderley Cardoso (“Nunca“, 1974), Núbia Lafayette (“Migalhas”, 1975), Waldick Soriano (“Vingança“, 1981), Vanusa (“Felicidade“, 1986), Agnaldo Timóteo (“Cadeira Vazia“, 1997)…

A potiguar Núbia Lafayette empresta seu trovão a “Migalhas”, original de 1950 com Linda Baptista

Com menor impacto e em menor intensidade, gerações mais recentes também reverenciaram Lupicinio, casos de Adriana Calcanhotto (“Nunca”, 1990), Marisa Monte (“Nervos de Aço”, 1992), Arnaldo Antunes (“Judiaria“, 1996), Jussara Silveira, Clara Moreno, Mart’nália e não muitos outros. Shows, CDs e DVDs inteiros foram dedicados à obra de Lupicinio pelo iconoclasta Arrigo Barnabé (Caixa de Ódio, 2011) e pelos conterrâneos Thedy Corrêa (Loopcinio, 2005) e Adriana Calcanhotto (o manso-ácido Loucura, 2015), entre outros. O artista gaúcho nascido há 110 anos parece bem mais distante das gerações atuais, salvo exceções como o pernambucano Ayrton Montarroyos, que lançou há três anos o álbum virtual Lupicinio Rodrigues, Entre Dores e Amores.

A distância entre Lupicinio e as novas gerações musicais parece explicável não só pela dor de cotovelo exacerbada e derramada, mas talvez principalmente pelos teores misóginos e machistas embutidos em diversas de suas canções, em crônicas de jornal (reunidas no livro Foi Assim – O Cronista Lupicinio Conta as Histórias das Suas Músicas, 1995) e em outras declarações públicas. O documentário não evita o tema: sublinha e reconhece esse traço negativo que foi “socialmente aceito” no tempo do artista, mas se torna intolerável para corações e mentes dos anos 2020.

Em contraponto, um outro fator arremete Lupicinio Rodrigues à mais completa contemporaneidade e é um dos vários méritos de Confissões de um Sofredor. Sintonizado com os anos 2020, o documentário não escamoteia a forte tensão racial subjacente à existência artística de Lupicinio, um excêntrico compositor negro que nasceu e permaneceu quase toda a vida num estado e numa região tidos como majoritariamente brancos e supostamente pouco inclinados a seu gênero musical de excelência, o samba.

“Um Favor” em sua forma original, por Jamelão (1972)

Procurar referências a esse tópico na obra do gaúcho é buscar agulha em palheiro – ele fala de “gente de todas as cores” em “Um Favor” e nada muito mais do que isso. O filme de Alfredo Manevy, no entanto, mostra que foi um tema presente na vida de Lupicinio. Num crescendo, Confissões de um Sofredor lembra as associações formadas por gaúchos negros segregados (como o clube União Familiar de Santa Maria, cidade onde o futuro compositor serviu ao Exército), exibe fotos de grupos de negros nas ruas supostamente europeias de Porto Alegre, mostra os traços de pobreza e as enchentes na comuidade da Ilhota (onde Lupicinio cresceu), flagra o comércio musical entre compositores negros e intérpretes brancos.

Em depoimentos, familiares e outros personagens aparecem falando de “macumbas” gaúchas ou lembrando que os teatros de Porto Alegre eram interditados para apresentações de Lupicinio (com o tempo, ele passou a abrir bares e restaurantes onde cantava de modo semi-amador, um deles chamado Clube dos Cozinheiros). À luz da câmera de Confissões de um Sofredor, a família multirracial de descendentes de Lupicinio se reúne e recebe informações levantadas pelo Grupo de Estudos do Pós-Abolição de Santa Maria, que chegam a antepassados escravizados de nomes como Antonio Benguela, Rosa Rebolo, Pedro Benguela e Josefa Benguela.

De viva voz, o biografado menciona amores inter-raciais mal-sucedidos, expõe a tensão aguda entre times de futebol formados por negros (os Canelas Pretas) e brancos, conta que o clássico “Hino do Grêmio” (que compôs em 1957) derivou do fato de ter sido o primeiro negro a ser aceito como sócio do clube esportivo. Como num anticlímax, Manevy focaliza páginas de jornais que, em 1966, manchetaram um caso de racismo em Porto Alegre: “Lancheria barrou entrada de Lupicinio Rodrigues: racismo”, “Preconceito de cor impede Lupicinio de frequentar o bar”. Como num clímax, aponta que o episódio levou o sambista-cancionista veterano a se tornar o primeiro gaúcho a acionar a Lei Afonso Arinos, promulgada em 1951 pelo presidente conterrâneo Getúlio Vargas e primeiro código brasileiro a classificar a discriminação racial como contravenção penal.

Cabe aqui uma última reflexão. Lupicinio não abordou explicitamente a negritude e o sofrimento racial, num tempo histórico e num espaço geográfico que eram hostis a esse tipo de rebeldia. Mas nada impede que, pela luneta do presente, coloquemos o racismo e a discriminação racial entre as inúmeras motivações para o amargor onipresente em sua poesia. Ganham um contraste a mais, assim, as incontáveis referências da música de Lupicinio Rodrigues a vinganças, caixas de ódio, loucuras, tristes histórias, brigas de amor, nervos de aço, cadeiras vazias, migalhas, nuncas, divórcios, sombras, amargos, castigos, morros em luto, aves daninhas, bocas fechadas, calúnias, paciências, bairros de pobre, judiarias, coquetéis de sofrimento e tantos outros motes que deram título a suas canções rasgadas de dor, rancor e revolta.

Sob esse prisma, muitas canções adquiririam significado adicional e contundente. “A dona divergência com o seu archote/ espalha os raios da morte/ a destruir os casais/ e eu, combatente atingido,/ sou qual um país vencido/ que não se organiza mais”, profere o poeta no protesto por pacificação “Dona Divergência”, a se queixar de uma guerra mundial ou matrimonial que pode ser uma ou outra, várias ou todas, tudo ao mesmo tempo antes, agora e depois.

Acompanhe na playlist acima e aqui um roteiro para ouvir Lupicinio.
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2 COMENTÁRIOS

  1. A versão ao vivo de ”Cadeira Vazia” da Elis é melhor que aquela registrada em estúdio,Gal Costa ao vivo eu não consigo gostar.Não conhecia a letra de ”Felicidade” na íntegra,e quem deu sua melhor interpretação foi a roqueira Rita-Lee.

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