Reportagem sobre leilão de obras confiscadas do banqueiro e colecionador Edemar Cid Ferreira (1944-2024) publicada em novembro de 2016 na revista CartaCapital. Edemar morreu neste sábado, 13, em São Paulo.
No meio do leilão, um curto-circuito nos abajures do lado esquerdo do palco fez com que as lâmpadas começassem a estourar com um pipoco engraçado, e o leiloeiro pediu para não confundirem. “Tão pensando que é champanhe?”, brincou Aloisio Cravo, 30 anos de arremates. Mesmo com uma área do grande salão no subsolo do hotel Unique na penumbra, não houve outra alternativa senão seguir com os lances. “No escuro é difícil, mas vou dar um jeito”, exagerou Cravo.
Foi no escuro mesmo que ele vendeu a tela Composição, de Tomie Ohtake, por R$ 340 mil (três vezes o lance inicial). De um lado do salão, estavam Sueli e Rodrigo Cravo, mãe e filho do leiloeiro, colhendo lances por celular e pelas mãos sempre levantadas bruscamente, como mãos de bailarinas de flamenco. Os galeristas, como os da Almeida & Dale, sentavam-se em grupos, alternando-se em lances nos seus objetos do desejo, como as fotografias de William Klein (todas compradas por eles).
Foi Rodrigo Cravo quem saiu atrás do maître do hotel para solucionar o problema dos abajures que explodiam, como se fosse uma espécie de Maldição da Massa Falida jogada por Edemar Cid Ferreira, que tentou embargar o leilão judicialmente. Fracassou: a Justiça negou liminar na véspera. O incidente com os abajures foi pequeno, havia muita luz no salão, e o leilão prosseguiu com grande movimentação.
Lá pela sétima fileira de uma salão de 528 lugares, uma amiga da socialite Tânia Derani a encorajava a arrematar um cavalo de terracota chinês de R$ 80 mil, que media 116 cm por 103 cm, mas ela ajeitou o grande óculos de armação branca e pôs a mão no ombro da amiga. “Não tenho onde por isso, amor…”, explicou Tânia. A amiga insistiu: “Coloca no jardim!”. Tânia encerrou o assunto: “Esse cavalo não pode por no jardim, terracota não pode ficar em área externa”. E voltou às anotações na lista de obras com o amigo Paulo Velloso, dono de vistoso lenço de cambraia no bolso do paletó: “Eu gosto de Krajcberg, Paulo”, confidenciou.
O galerista Mario Cohen chegou atrasado, empunhando uma mala de rodinhas. Estava entre o leilão e o aeroporto, contou. A tempo, entretanto, de comprar um de seus alvos, uma fotografia de Bettina Rheims, que arrematou por R$ 9 mil. Perdeu duas disputas por fotos de Robert Doisneau, mas estava chateado mais pelo que tinha perdido antes de chegar com sua maleta, algo que não quis dizer o título. “Os preços não são bons nem ruins. Preços de mercado”, afirmou Cohen.
Um importante curador e galerista estrangeiro que vive em São Paulo discordou. Ele tentou comprar duas obras de Odires Miászho, mas não conseguiu por conta da concorrência. “As fotografias estão com preços ridículos”, afirmou. Havia fotos de Man Ray por R$ 3 mil de lance inicial, quando seu preço no mercado era no mínimo de R$ 30 mil. “Mas você não pode me citar, tá? É uma opinião não oficial!”.
Para o leiloeiro Aloisio Cravo, o leilão da coleção de Edemar Cid Ferreira tinha um componente atrativo adicional: não era uma coleção apenas de artes plásticas, mas também de etnografia, arqueologia e outros focos de interesse. Se foi esse o grande leilão da carreira do pregoeiro? “Há 10 anos eu fiz um grande leilão para o banco J.P. Morgan. Foi algo de dimensão parecida”, contou. “Por isso coloquei mais de 500 cadeiras hoje. É melhor sobrar do que faltar”. Antes de começar a leiloar as peças, ele agradeceu ao juiz Paulo Furtado de Oliveira Filho, “a pessoa que confiou a nós a venda dessa coleção”. Os colecionadores ali parecia que conheciam intimamente as obras, provenientes de um integrante daquela elite que tinha caído em desgraça. De vez em quando, Cravo lembrava aos presentes a natureza do negócio que
conduzia: “É leilão judicial, senhores! Amanhã não tem mais!”.
Essa advertência se tornou mais estridente em três ocasiões. A primeira foi na venda de uma escultura em ferro de Amílcar de Castro, Sem título, que atingiu R$ 1,5 milhão. O leilão partiu de R$ 220 mil, e o painel mostrava os lances da internet crescendo como se fosse um daqueles impostômetros instalados nos centros de algumas grandes cidades. A segunda foi na venda de uma obra de Tunga, Tríade Trindade, arrematada pelos patronos da Pinacoteca de São Paulo (e que vai integrar o acervo daquela instituição). E a terceira foi na venda de uma escultura de Victor Brecheret, Vestal Reclinada com Pássaro (“Uma peça como essa vai levar 25 anos para aparecer uma igual”, disse Cravo), que atingiu R$ 2,8 milhão. O comprador fez o lance, comprou a peça, levantou-se como se nada tivesse acontecido e foi ao saguão tomar a única coisa que ofereciam no leilão: água aromatizada com limão siciliano e hortelã.
Com longos mullets devidamente gomalinados, presença de espírito e experiência, Cravo tem alguns bordões que usa em diferentes momentos de sua performance. “O melhor dessa venda é a homenagem a essa obra”, bradava. “Briga boa é aquela que a gente não esquece pelo resto da vida”. Volta e meia, provocava os brios daqueles que entravam numa disputa: “A senhora não quer mais?”. Os principais contendores, ao serem derrotados, pareciam jogadores que tinham mostrado uma carta ruim. Tinham no rosto aquela convicção de que, na próxima, viria um coringa. A tela Prumo, de Antonio Manuel, que iniciou lances a R$ 9 mil, foi objeto de um verdadeiro “tiroteio”: todos sabiam do seu valor, sabiam que estava sub-valorizada, e ela acabou sendo vendida por R$ 220 mil.
Após R$ 11,8 milhões vendidos, o leiloeiro então anunciou que os compradores receberiam as notas de arremate por email, depois teriam de segunda a sexta-feira da semana que vem para retirar as peças. Também anunciou a partilha: 95% para a Justiça, 5% para o leiloeiro.