Vivendo há alguns anos um processo de transição rumo à condição de pessoa trans não-binária, Filipe Catto faz a travessia culminar em Belezas São Coisas Acesas por Dentro, uma coleção de releituras de dez canções do repertório de Gal Costa (1945-2022). O álbum chegou às plataformas digitais em 26 de setembro, dia em que Gal completaria 78 anos e em que Filipe completou 36. É inevitável pensar numa tentativa de sobreposição da imagem de Gal por Filipe, impressão reforçada pela imagem da contracapa do álbum, abertamente decalcada da capa do LP Índia (1973). Mas não é disso que se trata. A sobreposição de múltiplas camadas é, antes, a tarefa tomada por Filipe Catto num cenário já congestionado por homenagens.
O tom de voz e a interpretação da cantora gaúcha, desde seu álbum de estreia, em 2009, sempre penderam mais para a expressividade e a dramaticidade do canto de sua conterrânea Elis Regina (1945-1982) que para a espontaneidade, a quentura e a tropicália vocal da baiana Gal. Filipe sabe dessa característica de sua voz e não a evita em Belezas São Coisas Acesas por Dentro, como também não evita faíscas de seu sotaque gaúcho original. Sul (supostamente reacionário) e Nordeste (maioritariamente progressista) se reunificam nesse encontro por intermédio da arte.
Filipe promove, mais ainda, uma pororoca de duas tendências da MPB que, nos anos 1970, não se tocavam e até se bicavam, na rivalidade tensa entre Elis, de um lado, Gal e Caetano Veloso do outro. Ao reconciliar dois modos conflitantes de compreender a canção brasileira, Filipe Catto suspende no ar as diferenças entre Elis e Gal (e Maria Bethânia) e elabora uma síntese que era inédita até o dia 26 de setembro passado.
A mescla entre os lampejos de gênio de Gal e de Elis cria uma terceira identidade, como se nascesse uma supercantora que fosse ao mesmo tempo uma e outra, incorporando inclusive as divergências entre a tendência tropicalista e a tendência nacional-popular, como se PT e Psol voltassem a ser um único partido.
A interpretação à la Elis não significa que Filipe torne mais caretas ou ensimesmadas canções fortes da lavra de Caetano como “Tigresa” (1977), “Negro Amor” (versão de 1977 para “It’s All Over Now, Baby, Blue”, 1965, de Bob Dylan) ou “Vaca Profana” (1984). Disso se encarregam, sobretudo, as guitarras (a-)tropicalistas de Fabio Pinczowski e da própria Filipe e os arranjos roqueiros, assinados coletivamente pela cantora com a banda formada por Fabio, Gabriel Mayall (baixo) e Michelle Abu (bateria e percussão).
O tom blue conferido pelas guitarras em passagens como a justaposição ritualizada entre a “Joia” (1975) de Caetano e a “Oração de Mãe Menininha” (1972) de Dorival Caymmi traz de volta a presença de Elis Regina, aquela de “20 Anos Blue” (1972), “Casa no Campo” (1972) e “Na Batucada da Vida” (1974), entre muitas. No reencontro de supostos opostos, instala-se um círculo virtuoso, que a voz de Filipe doma e conduz.
A triangulação Caetano-Gal-Filipe transexualiza e traz novas camadas de sentido a frases históricas da lavra de Caetano, como “os pelos dessa deusa tremem ao vento ateu” (em “Tigresa”), “um selvagem levanta o braço, abre a mão e tira um caju” e “a menina muito contente toca Coca-Cola na boca” (em “Joia”) ou “de perto ninguém é normal” (em “Vaca Profana”). Guitarras como as de “Negro Amor” parecem comentar as da fase Cê (2006-2012) de Caetano, o que as remete, automaticamente, ao álbum New York (1989), de Lou Reed. Encontram-se, num fabuloso salão de festas imaginário, tropicália e The Velvet Underground, a onipresença de Caetano na obra de Gal e a dispersão de Elis por Milton Nascimento, João Bosco, Belchior etc.
Filipe também se esmera em amalgamar o mainstream da MPB com suas dissidências ditas malditas, anti-comerciais ou coisa que o valha. As canções pop de Caetano, Gilberto Gil (“Esotérico”, 1976, lançada pelo quarteto Doces Bárbaros) e Stevie Wonder (“Nada Mais”, 1984, versão de “Lately”, 1980, edulcorada por Ronaldo Bastos em 1984) aparecem acondicionadas e emolduradas no início por “Lágrimas Negras” (de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, 1974) e no encerramento pelo épico “Vapor Barato” (de Jards Macalé e Waly Salomão, 1971). No meio termo entre o maldito e o anti-maldito, situam-se as duas canções de autores de gerações mais próximas, “Jabitacá” (2015), dos pernambucanos Junio Barreto, Lira e Bactéria, e “Sem Medo Nem Esperança” (2015), do paraense Arthur Nogueira (com o veterano poeta Antonio Cícero).
Na forja de uma identidade nova, estranha até mesmo à própria artista gaúcha quando ela ainda era ele, Filipe Catto insere uma provocação sutil em “Tigresa”, no efeito final que torna grave a voz feminina enquanto canta “como é bom poder tocar um instrumento”. É um diálogo com a Gal Costa que duelava em registro agudo com a guitarra em “Meu Nome É Gal” (1969/1979), algo que a mineira interiorana Marina Sena também tentou fazer recentemente, para incompreensão maciça de uma torcida bem menos tolerante diante dela que diante de Filipe.
É pelo mesmo motivo que Catto inverte os sinais de Gal em “Vapor Barato” (o que não faz em “Esotérico” e em “Vaca Profana”, cantadas no masculino). “Oh, sim, eu estou tão cansada”, troca, em vez do “cansado” de Macalé e Waly. É nesse arremate que Felipe, trans, sublinha a condição feminina da porta-voz de compositores quase sempre masculinos. Esse gesto simples é o mesmo que tem sido reiteradamente negado nas profanações misóginas e lesbofóbicas que se têm tentado impor a Gal Costa depois da morte. É, também, o mesmo que setores conservadores do brasil expressaram na recusa de atender o pedido de Dilma Rousseff de ser tratada como presidenta e em sua posterior deposição. Mais que tudo, nessa mesma atitude Filipe ElisGal reivindica o direito e o respeito de ser tratada pelo pronome no qual se compreende: ela. É um caminho novo de altivez, tateado na nova MPB com mais acuidade por Linn da Quebrada e Liniker que por Pabllo Vittar e Gloria Groove.
Como última síntese de um álbum encadeado como uma suíte poderosa em que as canções vão se interpenetrando e emaranhando umas nas outras, Filipe Catto justapõe os lamentos de “baby” em “Vapor Barato” a uma declaração final de amor, “baby, I love you”. O que Caetano compôs e Gal cantou (em “Baby”, 1968) é entregue de volta à sua intérprete – e co-compositora – original. Belezas São Coisas Acesas por Dentro soa como um trabalho de recomposição, reparação e restauração – e, ao mesmo tempo, de invenção.
A fase ”nacional-popular” da Elis ficou circunscrita à década de sessenta,nos anos setenta,a mulher-labareda já tinha explodido em sete mil raios,mas concordo contigo,a Elis,apesar de ter aderido e ultrapassado a tropicália (a cantora tinha mil demônios na garganta),continuou vibrando num pólo oposto à Gal Costa.