Os atores da peça 'Voz de Vó' abraçados - Clarisse Luz, Demian Pinto, Gui Calzavara, Antônio de Oliveira e Benjamim de Oliveira

A perda da memória em determinada idade é um tema que vem avançando aos poucos no domínio da ficção. Resultou em filmes de repercussão, como Meu Pai, com o ator Anthony Hopkins e dirigido pelo francês Florian Zeller; Para Sempre Alice, com Julianne Moore; Sem Palavras, com Fabrice Luchini.

Na semana passada, dia 28 de setembro, estreou em São Paulo, no Teatro do Sesi, uma irmã caçula dessa temática, a peça Voz de Vó, de Sara Antunes, dirigida também por Sara e com a supervisão artística de Vera Holtz e direção de arte de Analu Prestes. Com a peça, Sara examina a história da própria avó, Genuina, que perdeu a memória progressivamente após ser diagnosticada com Alzheimer.

A atriz Clarisse Derzié Luz interpreta a avó. Benjamim de Oliveira e Antônio de Oliveira, de 10 e 8 anos, estão nos papeis dos netos da avó, Bento e Tito (de fato e de direito também: são filhos da dramaturga). Demian Pinto e Gui Calzavara fazem os papeis dos netos quando adultos, e os quatro se movem em cena nessa gangorra entre infância e maturidade, entre memória e esquecimento. Toda a narrativa é costurada pela música, com Demian e Gui Calzavara fazendo um múltiplo papel: atores, multiinstrumentistas musicais, clowns e mestres dos cacos.

Voz de Vó possui, e isso é a primeira coisa que fica evidente, aquilo que se chama modernamente de “lugar de fala”: a diretora e dramaturga viveu de fato a experiência de ser neta de uma avó com Alzheimer, uma mineira que nasceu em 1920 e um dia sonhou ser atriz, mas a vida e os filhos a afastaram do sonho. A neta Sara, que se tornou celebrada atriz (indicada ao Prêmio Shell e ao APCA por Anjo de Pedra, de Tennessee Williams), assistiu em sua juventude, dentro de casa, à progressiva desintegração da memória de Genuina e à vulnerabilização que a doença impõe a uma pessoa. Entretanto, não é de autocomiseração que se trata o espetáculo, mas da integridade do espírito humano, do realçamento que o humano alcança mesmo nas condições mais desfavoráveis.

Em sua interpretação, Clarisse Luz incorpora essa vontade expressa no texto: sua incorporação da avó desmemoriada é salpicada de um humor iconoclasta, um deboche e uma vitalidade naturais e uma capacidade de improvisação impressionante. Numa espécie de jogo de pega-pega, a avó do espetáculo se perde de casa e os netos fazem uma busca para reencontrá-la, e nesse itinerário vão reencontrando aquilo que eles próprios já teriam perdido no percurso até a maturidade.

O que a dramaturgia de Sara Antunes propõe vai ainda mais longe do que a ideia de um inventário íntimo: trata-se de uma imersão nas memórias perdidas de toda a plateia, de diferentes gerações, de afetos perdidos, de impulsos vitais abandonados. Do início ao fim do espetáculo, com estratégias muito simples de interação com a plateia, os atores-músicos vão recolhendo estilhaços de lembranças: desde as canções da infância que não se cantam mais (por questões de obsolescência sonora ou atualizações éticas, como a famosa Atirei o Pau no Gato), os nomes das ruas em que vivemos, os números das casas, os pontos de referências, os animais de estimação que se foram. As crianças da plateia são convocadas a participar (afinal, em tese se trata de uma peça infantil), mas são os adultos que são surpreendidos pela ligeireza dos atores, que têm a sagacidade de lembrar a uma espectadora chamada Isolda que seu Tristão a espera em algum lugar.

Demian Pinto e Gui Calzavara, incumbidos de criar música instantânea para inventar o chão de seu próprio percurso interno na peça, acabam produzindo uma sinfonia em movimento – nenhum espetáculo está destinado a ser igual ao do dia anterior (só para lembrar ladinamente aqui de uma famosa comédia romântica freguesa da Sessão da Tarde sobre perda de memória, Como se fosse a primeira vez). Bento-Calzavara (ator e músico que foi do Uzyna Uzona e do XPTO) e Tito-Demian dançam num diapasão que evoca o melhor humor físico dos primórdios, como aquelas memórias divertidas em P&B de Abbott & Costello, por exemplo (isso para quem já é avô, claro). Este dublê de crítico de teatro presenciou a famosa Lucinha Turnbull, lendária guitarrista e parceira de Rita Lee nas Cilibrinas do Éden, aproximando-se da diretora ao final da peça para elogiar a direção musical do espetáculo. “Eu sou guitarrista, você sabe, e adorei”, disse Lucinha.

Há diversos efeitos colaterais quando se assiste Voz de Vó. Primeiro, é possível ver com toda a família do lado, dos pais e filhos, avós e netos até os primos e tios esquecidos: durante uma hora, todos rirão juntos de suas próprias deslembranças, haverá um armistício ali. Mas o impacto mais profundo é na reflexão: o espetáculo reitera que não é a casa, não é o edifício, não é o velho fusca que deixamos para trás, é sempre um pedaço de nossa própria inocência, espontaneidade, desassombro. É como se fosse dado ao público um sinal de GPS para localizar o coração da memória.

Sara Antunes, dramaturga e diretora, e os atores Damien Pinto, Antônio de Oliveira, Clarisse Derzié Luz, Benjamim de Oliveira e Gui Calzavara

SERVIÇO
Voz de Vó. Texto inédito de Sara Antunes. Direção de Sara Antunes. Teatro do Sesi (Avenida Paulista, 1313). De 30 de setembro a 17 de dezembro 2023. Quintas e sextas, 11h, sábados e domingos, 15h. Sessões extras nos dias 12, 13, 26 e 27/10, e 9,10, 16, 17 e 23/11
Tradução e interpretação em Libras e audiodescrição nos dias 29/10, 26/11 e 3/12

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