O roqueiro sanfoneiro que veio de Guaianases (*)
“Desculpa, Marcelo, mas essa melodia o meu vizinho poderia fazer.” Essa frase foi dita ao jovem músico Marcelo Jeneci por ninguém menos que Chiquinho de Moraes, diretor musical e arranjador de músicas de Roberto Carlos entre 1970 e 1978. Incomodado com um trecho da melodia de “Quarto de Dormir”, o maestro utilizou-a como pretexto para se retirar da parceria entre gerações.
Ao contrário do que se possa imaginar, a reação do músico paulistano de 28 anos à bronca não foi negativa. “Falei: ‘Pô, mas é isso que eu quero, que legal!’. Acho isso um elogio, sabe? Mas ele achava meio cafona demais”, afirma. “Eram cinco horas da manhã, ele disse: ‘Não, acho que não posso aceitar esse trabalho’. Fechou a pasta e foi embora.”
Pitoresca, a história explica muito sobre o disco Feito pra Acabar, que apresenta Jeneci como compositor e cantor solo, após dez anos de trabalho como instrumentista das bandas de Chico César, Vanessa da Mata e Arnaldo Antunes. Como acontecia na primeira fase romântica de Roberto (e de Chiquinho), as melodias, letras e refrões das músicas de Marcelo são mesmo daquele tipo que até o vizinho poderia fazer – mas não fez. E esse é seu trunfo, muito mais que desvantagem, num ambiente musical que anda desacostumado a celebrar refrões, melodias e letras simples e de fácil comunicação.
A canção rejeitada por Chiquinho de Moraes diz o seguinte: “Um dia desses você vai ficar lembrando de nós dois/ e não vai acender a luz do quarto quando o sol se for/ bem abraçada no lençol da cama vai chorar por nós/ pensando no escuro ter ouvido o som da minha voz/ vai acariciar seu próprio corpo e na imaginação/ fazer de conta que a sua agora é a minha mão/ mas eu não vou saber de nada do que você vai sentir/ sozinha no seu quarto de dormir”. “Quarto de Dormir” é uma curiosa remistura de “Meu Mundo e Nada Mais” (1976), de Guilherme Arantes, com “Detalhes” (1971), “Desenhos na Parede” (1975) e “Café da Manhã” (1978), todas baladas emblemáticas de quando Chiquinho era o maestro de Roberto.
A ausência do maestro não deixou as canções rasgadas de Marcelo desguarnecidas da orquestra de cordas que ele desejava ter no disco. O posto foi assumido por Arthur Verocai, ex-diretor musical da Globo e arranjador das cordas aveludadas do clássico Negro É Lindo (1971), de Jorge Ben (Jor), e de parte do disco tomado como modelo por Jeneci para sua estreia solo: Carlos, Erasmo (1971), do responsável pela outra metade do sucesso de Roberto Carlos. Verocai brilhou à frente de uma orquestra completa nos dois shows de apresentação de Feito pra Acabar no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, fazendo parecer luxo aquilo que na primeira metade do século passado era realidade obrigatória da música brasileira, erudita ou popular.
“Foi em Caruaru, quando eu tinha oito anos, que descobri o cinema. Antes de começar qualquer filme, tocava música orquestrada, 30 músicos ao vivo. Todo show acontecia em cinema”, relembra Manoel Jeneci, 53 anos, nordestino de Sairé, quando a cidade ainda era distrito de Bezerros, agreste frio de Pernambuco. Manoel, além de pai de Marcelo, é técnico de eletrônica e prepara sanfonas e programações Midi para músicos como Dominguinhos, Oswaldinho do Arcordeon e Zezé di Camargo & Luciano.
Seu filho, a propósito, é violonista, pianista, organista, tecladista e… sanfoneiro. Aos 17 anos, ia para o palco de sanfona pendurada nos ombros, como integrante da banda do paraibano Chico César. Eis aí outro trunfo de Marcelo Jeneci: foi como endiabrado sanfoneiro pop-rock que roubou várias das atenções do mentor e parceiro Arnaldo Antunes, no DVD Ao Vivo no Estúdio (2007).
Marcelo mora no Alto de Pinheiros e passa facilmente por nativo da comunidade pós-hippie da Vila Madalena, mas nasceu no bairro de Aricanduva, na zona leste da capital paulista. Para esta reportagem, “viajou” com o iG até o bairro de Guaianases, na zona leste extrema de São Paulo, onde a família continua a viver. Manoel migrou em 1972, aos 16 anos, com o pai pedreiro que construiria sozinho (ele não gosta de ter ajudantes) boa parte das casas da rua, inclusive essa em que a família mora, trabalha e se diverte.
Apaixonado por música e cinema, Manoel adaptou a casa de modo a criar uma oficina no térreo e uma sala particular de cinema no primeiro andar. Gabriel, o filho caçula de oito anos, é peremptório quando indagado sobre o que vai ser quando crescer: “Diretor de cinema”. Durante a viagem de ida, por 50 minutos, Marcelo fala de si próprio, do irmão mais velho Fábio (hoje roadie de seus shows), de Manoel e da paulistana Glória, Glorinha (como Manoel chama a esposa): “Eu nasci dentro de uma igreja evangélica, minha mãe é evangélica. Meu pai é contra religião, minha mãe é a favor. Dois filhos, um ia à igreja, o outro não ia. Eu ia. É uma igreja dessas que não fazem parte de uma instituição, uma família compra uma casa e faz. Tem um nome bonito, Igreja do Refúgio. Minha mãe frequenta ainda. Eu, não mais”.
A vocação musical começou a brotar, portanto, entre a oficina de sanfonas do pai e o culto da mãe: “Tinha um órgão na igreja, comecei a tocar lá, todo domingo. Mas eu queria era botar música que eles chamam de mundana, e não podia. Aos poucos começou a poder, e eu comecei a ficar cabeludo. Estavam estourando Raça Negra, Só pra Contrariar, Negritude Jr. Montei um grupo de pagode dentro da igreja, só que com letra falando de Deus, Jesus, amor. Chamava JCV, não lembro o que significava o nome…”.
O rock, a MPB e as vanguardas paulistas o afastaram do pagode e do forró (também tinha integrado a banda forrozeira Peixelétrico), mas preza o afeto por aqueles tempos e ritmos. “Faz tempo que não ouço, mas se tocar aquela (cantarola) ‘lua vai/ iluminar os pensamentos dela’… Eu acho linda essa música, saca?”, diz, referindo-se a “Recado à Minha Amada” (1996), do Katinguelê.
Por essas e outras se construiu o destemor de Marcelo em soar popular, romântico, “cafona”. Tem, para isso, o apoio e a adesão de compositores sofisticados como Arnaldo Antunes, Chico César, Zé Miguel Wisnik, Luiz Tatit e Ortinho, e instrumentistas da pesada como Edgard Scandurra, João Erbetta (do grupo Los Pirata) e Curumin. Uma cantora de 20 anos, Laura Lavieri, divide os vocais de todas as faixas do CD – em Pra Sonhar, o duo chega a evocar de leve uma dupla caipira.
Jeneci não nega que sonha ouvir a voz de Roberto Carlos interpretando um tema seu, talvez exatamente o “Quarto de Dormir” recusado por Chiquinho de Moraes. “Já sonhei muito com isso, e já chorei imaginando a possibilidade de chegar na casa do meu pai depois de ter feito algo com Roberto, com o joelhinho tremendo de emoção”, descreve a “utopia”, na viagem de volta ao Alto de Pinheiros.
Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, Jorge Ben e Guilherme Arantes convivem na música de Jeneci (*)
No palco do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, crescem em efeito pop não somente os rocks tocados por Marcelo Jeneci na sanfona ou as peças românticas forradas com as cordas de Arthur Verocai. Outro trunfo do artista são as baladas dramáticas levadas ao piano, que o fazem parecer, em som e em imagem, um Guilherme Arantes 30 anos mais novo. Marcelo classsifica a influência de inconsciente (“não sei tocar nenhuma música dele”), mas seu pai abre um sorriso quando vem à tona o nome do cantor-pianista de “Cuide-Se Bem” (1976) e “Amanhã” (1977): “Aquela música do céu que você toca lembra Guilherme Arantes pra caramba. O jeito, até o timbre ficou parecido”.
Há mais semelhanças entre Jeneci e o autor-cantor de “Planeta Água” e “Deixa Chover” (ambas de 1981): a água é referência presente em pelo menos nove das 13 faixas de Feito pra Acabar. Chovem termos como molhar, chorar, chuva, mar, onda, tempestade, copo d’água, navegar, nuvem, vendaval, pingos, granizo, mesmo os mais “secos” relâmpago e raio. “Tempestade Emocional”, aveludada pelas cordas de Verocai, avisa que “vai chover dor”, elaborando suave metáfora para a lágrima. “E chuva representa vida também, né?”, concorda o pai. “Marcelo chora fácil. Marcelo é bem sentimental.”
“Eu já chorei de ver gente chorando no meu show, de perceber que, caramba…”, espanta-se o filho. Numa música que ele considera inacabada e não incluiu no CD (**), mas faz a plateia cantar em coro no show, afirma que “a chuva é a vontade do céu de tocar o mar/ e a gente chove assim também quando perde alguém/ mas quando começa a chorar começa a desentristecer/ assim se purifica o ar depois de chover” – não deve ser à toa que “Felicidade” é o título da canção inaugural do disco inaugural.
Sobre a música sem nome, Marcelo diz: “Aí rola uma emoção do público que é difícil a gente no palco segurar. Fica tudo muito silencioso, e às vezes eu ouço as pessoas chorando. Aí os versos começam a me confundir a cabeça, é emocionante”. A água, diz, aparece sem querer: “Isso é coisa de São Paulo, chove pra caramba aqui”.
Talvez Jeneci não o faça conscientemente, mas suas músicas pedem chuva como se chamassem a emoção que a música brasileira mais, digamos, “sofisticada” andava envergonhada de provocar. Feito pra Acabar aponta para isso na abundância de água, no pop-romantismo à la Roberto Carlos & Guilherme Arantes, nas cordas aveludadas do arranjador de Negro É Lindo (“preciso às vezes ser durão/ pois eu sou muito sentimental”, dizia Jorge Ben na faixa mais emotiva do disco de 1971, “Porque É Proibido Pisar na Grama”) ou na sanfona que evoca a seca e a chuva no Nordeste de Luiz Gonzaga. “Gonzaga foi o primeiro artista pop que o Brasil teve, com aquelas roupas”, demarca Manoel logo de início, pouco antes de mencionar seu amor pelo grupo Secos & Molhados. “Até hoje nunca vi nada igual.”
Ainda sobre Guilherme Arantes, mais algumas coincidências: como aconteceu 24 anos atrás, o disco solo de estreia de Marcelo chega às lojas no início de dezembro, com o selo da gravadora da Globo, a Som Livre. Guilherme deve ser recordista absoluto de inclusão de músicas nas trilhas de novelas globais; antes mesmo do contrato com a Som Livre, Marcelo já emplacou músicas em A Favorita (“Amado”, na voz de Vanessa da Mata) e Paraíso (“Longe”, em versão do sertanejo Leonardo).
Outra empresa seduzida pelas águas de Jeneci é a Natura, patrocinadora de Feito pra Acabar, por meio da Lei de Incentivo à Cultura do Ministério da Cultura. Marcelo diz que não há qualquer relação entre a patrocinadora e os motivos arbóreos e florais da capa do CD (***). O tema causa espécie na família. Manoel conta: “Sua mãe diz que uma mocinha pegou o disco e falou, ‘o disco é legal, mas essa capa não combina, combina com perfume'”. Gabriel intervém: “Não, ela disse que ‘esse CD aqui está com muita cara de perfume da Natura!'”. Glória esclarece: “A moça falou assim, ‘olhando, parece uma embalagem de perfume, e a música diz muito mais do que um perfume'”.
A gerente de marketing da Natura, Renata Sbardelini, dá a versão da empresa: “A Natura não interfere, em nenhum momento, no processo de criação do artista e na condução do projeto. O patrocinado tem total autonomia para conduzir seu trabalho, da temática e composição das músicas até textos e fotos do projeto gráfico”. Segundo ela, Jeneci foi selecionado entre mais de 730 inscritos no edital nacional de 2009.
Por entre marcas fortes como Globo, Natura e Roberto Carlos, Marcelo Jeneci parece se diferenciar da maioria de seus pares da nova música brasileira também pela falta de receio em se comunicar e, eventualmente, fazer sucesso. “Cresci ouvindo as trilhas da Globo, confesso que gostei de assinar a garrafa de champanhe na hora de assinar contrato com a Som Livre”, diverte-se. Os tempos mudaram enormemente, mesmo para contratados de gravadoras multinacionais ou da Globo, e o filme sobre o destino deste menino de Guaianases assistiremos ao vivo e em cores, na “vida real”.
Jeneci resgata a sanfona abolida pela bossa nova
Como um rapaz de 28 anos que leva uma sanfona para o palco pode soar novo em 2010, num país que foi dominado pelo instrumento há mais de 60 anos, quando o pernambucano Luiz Gonzaga fez fama nacional a bordo de “Asa Branca” (1947), “Assum Preto” (1950), “Paraíba” (1952), “O Xote das Meninas” (1953) e “Vozes da Seca” (1953)? As águas que rolaram por baixo dessa ponte ajudam a explicar não só os caminhos e descaminhos da música brasileira, mas também as transformações por que vem passando o próprio país.
Popularizador do baião, do xote e do xaxado, Luiz Gonzaga representava o novo em 1949, um novo que vinha do Nordeste. Mas envelheceu cem anos de repente uma década depois, quando surgiu o violão de outro nordestino, o baiano João Gilberto, e em sua esteira todo o movimento carioca de classe média alta da bossa nova. Graças à influência de Gonzaga, meninas de sociedade aprendiam a tocar acordeom no Brasil dos anos 1950. A partir do final da década, uma das primeiras atitudes da bossa nova foi banir a sanfona da música popular dita “sofisticada”. À parte iniciativas esparsas como a de Gilberto Gil, de compor e gravar em 1973 “Eu Só Quero um Xodó” (de Dominguinhos e Anastácia), a sanfona até hoje não perdeu de todo um status marginal à chamada MPB.
“Hoje parece difícil de acreditar, mas vivia-se sob o império daquele instrumento”, historia o jornalista Ruy Castro na biografia da bossa Chega de Saudade, editada em 1997. “E o pior é que não era o acordeom de Chiquinho, Sivuca e muito menos o de (João) Donato – mas as sanfonas cafonas de Luiz Gonzaga, Zé Gonzaga, Velho Januário, Mário Zan, Dilu Melo, Adelaide Chiozzo, Lurdinha Maia, Mário Gennari Filho e Pedro Raimundo, num festival de rancheiras e xaxados que parecia transformar o Brasil numa permanente festa junina.” Na definição do biógrafo, o baião de Gonzagão era “aquele ritmo que, para alguns, só servia como coreografia para se matar uma barata no canto da sala”.
As manifestações antinordestinas pós-eleições de 2010 demonstram que até hoje o preconceito de origem social expresso nessas (entre)linhas ainda não foi superado – e é para desentristecer essa via que trabalha Marcelo Jeneci, paulistano na certidão de nascimento e no sotaque, mas filho e neto de migrantes conterrâneos e contemporâneos de Gonzagão. Não se trata de um manifesto consciente, pois Marcelo retira em parte o sotaque nordestino das sanfonas que toca e, em alguns (bons) momentos, se aproxima mais do tango argentino que do forró.
Ele diz não perceber nenhuma rejeição à aventura de incorporar a sanfona imemorial em formatos mais pop-roqueiros. “Sanfona agrada a todas as sogras”, graceja. “Quando saí daqui de casa e fui morar na zona oeste, a janela do meu quarto era meio na rua. Aconteceu umas três vezes de eu estar tocando sanfona e a campainha tocar. Era uma senhorinha, ‘nossa, que bonito o som da sanfona, era você que estava tocando?’. Eu, com 18 ou 19 anos, já pensava: deve ser mãe de uma gatinha. Pior que agrada mesmo às sogras, porque tem alguma lembrança, um cheiro de mato, uma saudade, uma coisa da nossa alma brasileira mesmo…” Marcelo está casado com uma pernambucana, Verônica, que é também sua empresária.
O pai ajuda a decifrar o fenômeno: “A música nordestina é a música de São Paulo também, né?”. O filho manipula a sanfona para demonstrar suas peculiaridades. “É instrumento de cego, você tem que tocar sem ver”, diz, explicando sem querer um símbolo por trás do assum preto “cego dos óio” de Gonzagão. “Imagina ele com 17 anos segurando um bicho pesado desses”, preocupa-se Glória, que ficou “horrorizada” quando teve de levar o filho (então com 15 anos) a programas de TV com o grupo de pagode Balança Brasil, empresariado por Rick Bonadio. “Pensa só, a música era ‘Sabonete do Amor’, uma gostosa de tapa-sexo entrava no palco cheio de espuma e eu lá no teclado, nascendo buço no rosto”, ri Marcelo.
Manoel fala do instrumento que conhece por dentro, conectando-se sem querer ao tempo em que via filmes com orquestra no cinema de Caruaru: “A sanfona é considerada uma orquestra, dá para fazer uma orquestra inteira nela”. Seu filho fala com prazer sobre Roberto, Erasmo e Guilherme Arantes, ao mesmo tempo que comete o ato falho de, ao falar sobre um artista da MPB, chamá-lo de “Caetano Buarque”. Consta que, mesmo sem possuir qualquer conexão aparente com as sanfonas de Gonzagão, o pianista pop paulistano Guilherme Arantes chorou um rio ao ouvir pela primeira vez o trabalho musical de seu conterrâneo Marcelo Jeneci.
Jeneci e suas raízes
Marcelo Jeneci nem cogitou desperdiçar a oportunidade, quando se viu diante dela. No camarim do show comemorativo dos 70 anos de Erasmo Carlos, ele estava de repente no meio do anfitrião, de Wanderléa e de Roberto Carlos. “Tiramos foto, eu no meio dos três, Wanderléa com meu disco na mão, sabe?”, orgulha-se o instrumentista, compositor e cantor de 29 anos.
Marcelo venceu a timidez e deu a Roberto um exemplar de seu disco solo de estreia, Feito pra Acabar, lançado no final de 2010. “Dei um abraço nele e disse: ‘Olha, eu sei que é chato dar o próprio disco de presente. Mas eu sou mais um brasileiro que nasceu numa casa onde os pais ouviam muito as suas músicas, e eu queria tentar lhe devolver algo que aprendi na infância'”, conta.
Pode parecer mera cena de tietagem, mas é mais que isso. O pop emotivo de Roberto é referência fundamental para Janeci, apesar de ele ser um artista mais ligado ao rock, e até à MPB, que ao romantismo doce do “rei”, e apesar de ele ter começado como sanfoneiro, acompanhando de artistas de MPB como Chico César, Vanessa da Mata e Arnaldo Antunes.
Pela falta de pudor em se mostrar amoroso e emocionado nas canções, Marcelo lembra de perto o cantor discreto que veio de Cachoeiro do Itapemirim (ES), como demonstra diariamente a triste e romântica “Felicidade”, incluída na trilha sonora da novela global Aquele Beijo. Pela sanfona que surge resplandecente em várias canções, faz pensar na tradição musical aberta no final da década de 1940 pelo pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989). Em vários momentos, Marcelo Jeneci faz acreditar que o rei do baião e o rei do iê-iê-iê (e do romantismo) de repente se reuniram numa pessoa só.
Casado com a pernambucana Verônica Pessoa, também sua empresária, ele mora numa casa confortável, alugada, no bairro paulistano de classe média alta do Alto da Lapa, onde recebe a reportagem ladeado por dois labradores, o preto Fuscão e a amarela Tapioca. Nasceu no bairro de Guaianases, na periferia leste da cidade, raiz que deve ajudar a formar a atmosfera meio urbana, meio interiorana de sua música. Parte da família é nordestina, inclusive o pai, Manoel Jeneci, que veio de Sairé, no agreste pernambucano, aos 16 anos, é técnico de eletrônica e prepara programações Midi para as sanfonas de Dominguinhos, Oswaldinho do Arcordeon, Zezé di Camargo & Luciano e outros.
“Gonzaga foi o primeiro artista pop que o Brasil teve, com aquelas roupas de cangaceiro”, opina Manoel, 54 anos, fã confesso de Gonzagão e amante das artes em geral, a ponto de ter montado uma sala de cinema no sobrado de Guaianases, construído em pessoa por seu pai, pedreiro e também Manoel. Assim como Marcelo decidiu enveredar pela música, o irmão caçula, Gabriel, de 9 anos, é categórico: vai ser cineasta quando crescer. A família Jeneci resume, em si, o tão comentado balé de ascensão social experimentado pelo Brasil recente.
Marcelo demonstra saber da ponte que constrói entre Sairé e o Alto da Lapa, com parada orgulhosa em Guaianases. Quando mostrou Feito pra Acabar pela primeira vez ao vivo, acompanhado de uma orquestra inteira (outro ponto de conexão com Roberto Carlos), fez-se introduzir por um minidocumentário gravado na periferia paulistana onde nasceu.
Quando foi gravar o videoclipe de “Felicidade”, quis aprofundar a declaração de amor pelas raízes. “Fui gravar na terra dos meus avós, em Sairé, onde eu passava todas as férias”, explica. “Quando minha família veio para São Paulo, meus pais deixaram de ir para lá, mas eu continuei indo. Ainda tem lá muito primo, tio-avô, tio-bisavô. Estou cogitando passar o Natal e o Réveillon lá, tenho a maior vontade de ter uma casinha em Sairé.”
No vídeo, ele anda pela cidade pacata de 10 mil habitantes, cantando para um grupo grande de moradores, grande parte deles seus parentes. “Quando tem reunião na Câmara de Vereadores, das 8 às 9 da manhã, o alto-falante da cidade transmite tudo, e antes toca um disco do Roberto Carlos, desde a minha infância. Fui lá e pedi que pusessem meu disco, expliquei que era neto do seu Manoel”, conta. O clipe começa com as notas de
“Felicidade” saindo do alto-falante onde em geral só Roberto Carlos canta.
Quando foi convidado a integrar a banda de Chico César como tecladista e sanfoneiro, aos 17 anos, Marcelo pediu conselhos e uma sanfona emprestada a Dominguinhos, amigo de seu pai e discípulo de Luiz Gonzaga. Se nos anos 1970 Dominguinhos desafiou purismos misturando sua sanfona forrozeira à MPB pop de Gal Costa e Gilberto Gil, Marcelo desempenha papel parecido na música de hoje, recuperando o instrumento que o rock e a MPB mais discriminaram do que incorporaram nas últimas décadas.
Dominguinhos mostra-se ciente, e orgulhoso, da conexão com o filho de Manoel: “Conheço Marcelo desde que ele nasceu. Eu venho de estúdio, gravei com todo tipo de gente, de Luiz Gonzaga a Raul Seixas, e hoje são esses meninos que trazem a música para frente. Temos não só Marcelo, mas uma pá de sanfoneiros jovens tocando muito bem de tudo um pouco, rock, samba, forró, baião. Me sinto feliz demais com isso”.
Marcelo fala do início como músico profissional: “Tive a felicidade de trabalhar, por dez anos, com muita gente legal, e fazer parte do começo, ou de uma parte boa, do trabalho de artistas que admiro muito. Eles sempre foram muito cautelosos comigo, quando eu era tipo o mascote de todas as bandas que eu tocava”.
Marcelo conta, entre divertido e tenso, que os pais assistiram, sem se identificar, a um de seus shows mais recentes. “Eles ficam orgulhosos. Meu pai sempre tem algum comentário, às vezes num tom um pouco ácido, irônico. ‘Gostei do cantor que está aparecendo’, ele disse. Minha mãe sempre acha lindo, e aproveita para checar coisas pessoais, se eu estou bem, se estou comendo, me acha mais magro”. Ou seja, a família Jeneci é muito parecida com a de qualquer um de nós.
Nesse mesmo show, no Sesc Consolação, Marcelo teve mais uma mostra do potencial emotivo que sua música carrega. Um espectador procurou a produção antes do show, explicou que começou a namorar ao som de sua “Pra Sonhar” e perguntou se não podia pedir a namorada em casamento durante o show, quando a banda fosse tocar aquela canção. “Claro, sensacional, vamos fazer!”, ele respondeu. “A plateia toda levantou, ficou meio chorando, foi bonito”, comemora.
Enquanto o pai é contrário às religiões, a mãe, Glória, é evangélica. Marcelo move-se entre os dois polos, como se move entre o pop e as tradições, entre a sanfona e o piano (que faz muitos evocarem, nele, a figura pop de Guilherme Arantes). A Som Livre, gravadora da Globo, distribuiu o primeiro CD, e ele celebra a carta branca que recebeu, para gravar um segundo quando e como quiser. Diz que não está com pressa, mas logo pega uma guitarra acústica e mostra uma música já quase pronta para integrar o futuro trabalho. “Pra essa vou precisar de orquestra de novo. Imagino um coral gravado numa igreja”, sonha. A canção se chama “Purificação” (++), e fala sobre… religião.
“Fui crente sem querer/ fui padre sem saber/ fui preso por você/ que me crucificou/ na terra uma ilusão/ no céu a solidão/ de um filho que nasceu em vão”, diz a letra desafiadora sobre melodia triste. “Cresci na igreja evangélica. Por causa da minha mãe, até os 18 anos frequentei bastante, sem que isso fosse uma escolha minha”, explica.
“O personagem é uma pessoa pecadora, como eu, mas que também se alivia cantando Ave Maria, sabe? A purificação está em experimentar as coisas, não em deixar de fazer”, defende sutilmente o ato de “pecar”.
Em guerra e em paz simultâneas com as próprias referências, sejam elas os pais, Gonzagão ou Roberto Carlos, Marcelo se expressa por versos que a mãe e o Roberto de “Jesus Cristo” jamais cantariam. De pronto, apressa-se em se autodenunciar: a introdução de “Purificação” é, sim, diretamente inspirada na melodia de “À Distância…” (1972), do repertório do “rei”.
Apesar de certas letras mais picantes, Marcelo não deixa de se imaginar sendo interpretado um dia pelo ídolo de seus pais. Mas Roberto teria ouvido seu disco? “Fico descrente, não acho que a maioria das pessoas escute. Às vezes fico calculando como se fosse uma justiça divina. Se eu ouço os discos que me são dados, as pessoas vão ouvir os discos que eu der. Quando alguém me chama para participar de seu show, lembro de mim convidando Marcelo Camelo para participar do meu, e ele topando. Fico tentando fazer que essa cadeia gire”.
E, bem, se Roberto permanece esfinge a ser decifrada, o mesmo não acontece com seu parceiro Erasmo, igualmente idolatrado por Marcelo. Nosso sanfoneiro pop se prepara para compor parcerias com esse que é um dos reis do rock brasileiro. “No nosso último encontro, foi esse o combinado”, vibra (+++).
(*) Textos publicados originalmente no portal iG, em 2010
(**) Batizada de “A Chuva”, a canção não entrou até hoje nos álbuns de carreira de Jeneci, mas aparece no audiovisual Feito pra Acabar – Ao Vivo, gravado ao vivo em estúdio, sem plateia, durante a pandemia, em 2020. Há outros registros ao vivo no YouTube, inclusive numa versão secundada pelo Quinteto da Paraíba, registrada em 2018.
(***) Feito pra Acabar foi reeditado ao completar dez anos, em 2020, com três faixas inéditas, uma versão de “Felicidade” em italiano e uma nova capa, aparentemente mais autoral que a original.
(+) Texto publicado originalmente na revista Pão de Açúcar, em 2011.
(++) Essa canção só foi oficialmente lançada no terceiro álbum de Jeneci, Guaia (2019), sob o nome “Redenção“.
(+++) Erasmo morreu em 2022, infelizmente sem nenhuma parceria lançada com Jeneci.