Cinebiografias são necessárias para elucidar personagens relevantes da história. Pelo menos, é o que se espera de filmes “baseados em fatos reais”. Escrito e dirigido por Christopher Nolan (Trilogia Batman – O Cavaleiro das Trevas, A Origem, Interestelar e Dunkirk), o longa-metragem Oppenheimer faz isso, mas desconstruindo o que se espera de uma produção do gênero. É impossível glorificar a história do “pai da bomba atômica”, alguém que simboliza a morte e legou ao mundo uma arma de destruição em massa que para sempre atormentará a humanidade.
Com um faturamento de 220,6 milhões de dólares, mais do que o dobro do orçamento previsto, o filme tem levado aos cinemas uma plateia que se divide entre aceitar que o físico teórico J. Robert Oppenheimer (Cillian Murphy) perdeu o controle sobre sua destrutiva invenção e a torcida para que o personagem não fosse tão nefasto por ser um “pai da bomba atômica”. Baseado na biografia American Prometheus, de Kai Bird e Martin J. Sherwin, Oppenheimer adiciona algumas outras interpretações possíveis, e algumas até edulcoradas sobre esse personagem.
Construído em um formato de mosaicos de histórias que irão se entrecruzar, Nolan explora três momentos distintos na vida de Oppenheimer. O recurso, uma forma criativa de se contar uma história, induz o espectador a todo momento a oscilar entre acreditar na existência de algum nesga de boa intenção do cientista e pensar que poderia ter evitado o horror.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o brilhante cientista Oppenheimer é recrutado pelo governo para supervisionar o Projeto Manhattan, que levou um grupo de cientistas para o meio do deserto, em Los Alamos (Novo México). Lá foi erguido um laboratório ultrassecreto destinado a colocar os Estados Unidos na liderança da corrida nuclear no mundo. Havia, naquela época, os inimigos alemães, mas logo em seguida viriam os russos.
O filme de Nolan é favorecido por interpretações dignas de um elenco estelar. Matt Damon interpreta o diretor do projeto, o general Leslie Groves. Robert Downey Jr, em atuação gigante, libertando-se das armaduras do Homem de Ferro, vive Lewis Strauss, um ressentido burocrata que convida o cientista a trabalhar em uma universidade. Kenneth Branagh é Niels Bohr, um cientista que inspirou o jovem Oppenheimer em sua temporada de estudos na Europa. Rami Malek é o cientista David Hill, que representará a comunidade científica num momento-chave do filme. Emily Blunt é a mulher Kitty, enquanto Florence Pugh, sua amante Jean Tatlock, ambas mulheres decisivas para construir o caráter do personagem-principal.
Com três horas de duração, o filme não explora vários aspectos da história como um todo e até fantasia outras situações (como a de uma consulta de Oppenheimer a Albert Einstein sobre o poderio de uma bomba atômica, fato que nunca ocorreu), pondo em risco a própria concepção de cinebiografia. Em 6 de agosto de 1945, a bomba atômica “Little Boy” destruiu a cidade japonesa de Hiroshima, e com a “Fat Man” dizimou, dias depois, Nagasaki. Em um encontro com Harry S Truman (Gary Oldman), o presidente norte-americano que ordenou o ataque nuclear ao Japão, Oppenheimer faz mais uma mea-culpa não-convincente para o que sucedeu.
A complexidade da história se revela pelo passado progressista de Oppenheimer, que ajudava o Partido Comunista nos Estados Unidos e os resistentes espanhóis na guerra civil daquele país. O cientista criador da bomba atômica rapidamente vai da fama mundial para o ostracismo dentro do governo com quem colaborou efusivamente, por já ter feito o serviço sujo. Nos anos 1950, desiludido com o desfecho, o protagonista se vê perseguido pelos macarthistas por suas conexões comunistas do passado. É um típico caso de estrondoso fracasso de um sucesso.
Cillian Murphy, maiúsculo em seu papel, dá a Oppenheimer as necessárias credenciais para que ninguém o veja como herói ou vilão, mas alguém repleto de falhas, arrogância e um homem imaturo, sentimentalmente falando. Pode-se encará-lo tanto como um bode expiatório quanto um mártir, sem medo de errar nos dois julgamentos.