Os homens bestiais

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Dandara de Morais (Helena) e Paulo Miklos (Aurélio) em cena de "O Homem Cordial". Frame. Reprodução
Dandara de Morais (Helena) e Paulo Miklos (Aurélio) em cena de "O Homem Cordial". Frame. Reprodução

O cineasta francês Jean-Luc Godard (1930-2022) afirmou, certa vez, que todo filme é um documentário, mesmo as obras de ficção. Referia-se ao fato de, por exemplo, registrarem paisagens, que poderiam ser modificadas adiante.

A realidade brasileira recente foi forte concorrente para roteiristas de ficção: o Brasil transformou-se em algo tão surreal que era difícil para um artista superar os absurdos e impropérios propagados pelo ex-mandatário da República e sua turba ignara de seguidores.

Dou esta volta para dizer que “O Homem Cordial” ilustra perfeitamente o pensamento godardiano ao ser, o novo filme de ficção de Iberê Carvalho (“O Último Cine Drive-In”), um retrato fiel, praticamente documental, do que se tornou a sociedade brasileira nos anos bolsonaros, turbinados pelo escarcéu das redes sociais, onde valem mais os números de seguidores, likes e compartilhamentos que a veracidade e credibilidade da mensagem/notícia.

Em uma trama aparentemente simples, desdobram-se camadas, que convidam o espectador à reflexão. Aurélio Sá (Paulo Miklos) é vocalista da Instinto Radical, uma (fictícia) banda de rock que, após algum tempo de ostracismo, volta aos holofotes, até a retomada ser interrompida pelo linchamento virtual (e presencial) de que o protagonista passa a ser alvo.

Ele viraliza tentando salvar Mateus (Felipe Kenji), um menino de 11 anos, de ser justiçado pelas mãos de populares e da polícia, após ser acusado de furto. Aurélio vê shows serem cancelados, é expulso de restaurante com colegas de banda e enfrenta um protesto em frente à sua casa, após atravessar São Paulo a pé, após outro infortúnio. É salvo pela aparição de Helena (Dandara de Morais), jornalista interessada em ouvir sua versão dos acontecimentos e jogar alguma luz de verdade por sobre a teia.

Racismo estrutural, Estado policial, a banalização e espetacularização da violência, a assim chamada cultura do cancelamento e a responsabilidade de profissionais e meios de comunicação são questões centrais no roteiro do diretor com o uruguaio Pablo Stoll (“Whisky”), em um filme que dosa drama e suspense, com atuações inspiradas de Miklos, Thaíde (Bestia) e MC Sofia, isso para citarmos apenas os artistas da música que atuam em “O Homem Cordial”.

O título esperto dialoga diretamente com o conceito de Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) em “Raízes do Brasil” (1936), com que algumas situações do filme dialogam diretamente; além, carrega fina ironia, a rechaçar o “cidadão de bem”, título estúpido com que alguns perversos ou desavisados gostam de se vangloriar.

É tema bastante atual, vide os debates inflamados (para o bem e para o mal) do chamado PL das fake news (o Projeto de Lei n°. 2630, de 2020). “As redes sociais são o ambiente perfeito para que ocorra o efeito manada, ou seja, quando um grupo de indivíduos segue a opinião ou ação de outros de forma irracional, sem analisar os fatos e fundamentos. No filme, vemos como cada comentário, cada postagem, cada curtida ou compartilhamento em uma fake news tem um impacto direto na vida de alguém no mundo real. E esse impacto se potencializa dependendo de que grupo social ou étnico você pertence”, explica Iberê Carvalho, sociólogo de formação, no material de divulgação distribuído à imprensa.

“O Homem Cordial” levou os prêmios de Melhor Ator (Paulo Miklos) e Trilha Musical em Gramado e fez sua estreia internacional no Cairo International Film Festival. Estreia hoje (11) em cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Campinas, Curitiba, Fortaleza, Goiânia, Maceió, Manaus, Natal, Niterói, Palmas, Poços de Caldas, Porto Alegre, Recife e Salvador, com distribuição é da O2 Play.

"O Homem Cordial". Cartaz. Reprodução
“O Homem Cordial”. Cartaz. Reprodução

Serviço: “O Homem Cordial” (drama/suspense, Brasil, 2019, 83 minutos), de Iberê Carvalho. Estreia hoje (11) nos cinemas.

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Veja o trailer:

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