Juliano Gauche e a claridade do sonho lúcido

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Juliano Gauche na capa do disco "Tenho acordado dentro dos sonhos", em foto de Pedro Clash

“É tanta casa que eu não voltei”.

Há uma certa qualidade de criador cuja busca artística é paralela à busca existencial. Nunca se trata apenas de produzir um artefato. É o caso do cantor, compositor e poeta capixaba Juliano Gauche. As casas a que ele se refere na canção desse verso, Horas que vêm, horas que vão, podem tanto ser físicas, cidades e bairros, quanto internas, localidades desfronteirizadas do próprio inconsciente, moradias às quais a gente não regressa porque estão em movimento (ou porque podem se tornar estanques).

Tenho acordado dentro dos sonhos, o quinto disco do cantor, compositor e poeta capixaba nasce, segundo o próprio autor, da situação de isolamento criada pela pandemia, tempo que o artista desfiou ao lado da mulher, Sil Ramalhete, na praia de Manguinhos, no Espírito Santo natal. Portanto, trata-se de um disco conceitual – como, de resto, são seus outros álbuns nesses 10 anos de carreira discográfica – do primeiro disco, Juliano Gauche (2013), passando por Nas Estâncias de Dzyan (2016) e Afastamento (2018), que compunham uma trilogia, e Bombyx Mori (2020).

A possibilidade de “estar acordado dentro de um sonho” é uma tese concreta da psicanálise abordada pela primeira vez por Frederick van Eeden em 1911. Esse fenômeno foi chamado de Sonho Lúcido (SL), um estado onírico em que a consciência é razoavelmente preservada. São sonhos bons.

Em Afastamento (produzido por Fernando Catatau), Juliano exercitava uma lírica cronística, abordando personagens e situações pré-existentes. Havia um esforço narrativo mais claro. Agora, é como se o cantor estivesse magnetizado pela possibilidade de cobrir, pintar, recobrir a essência dolorida da solidão com uma paleta de cores não registradas no espectro formal. Não parece por acaso que a única composição instrumental, NYX (sigla que, se não falha a memória, denomina uma paleta de makeup), dissolva a palavra em scats agudíssimos, com Juliano tocando sozinho os instrumentos, como um Arnaldo Baptista da ponta da praia.

A primeira coisa que me ocorreu ouvindo as lindas novas canções do álbum foi a experiência de Thom Yorke em King of Limbs, um disco meio “proscrito” do Radiohead, canções como Nude, também impulsionadas por uma tentativa de comunhão com a natureza, uma reconciliação com a natureza. A diferença é que Juliano é antibarroco por excelência, ele flerta com a claridade, com a síntese, um minimalismo de fotossíntese – como se a progressão das canções dependesse da quantidade de luz apreendida ali no ato de ouvir.

Tenho acordado dentro dos sonhos tem 7 canções (Ondas que acordam possui três versões, uma delas em inglês e português, que traz o cantor e compositor André Travassos, da banda Moons, como convidado). Em todas essas canções, não há nem sentimento de rendição nem de êxito, apenas de regresso, reencontro. A ansiedade dá lugar a um suspiro de alívio. “como é respirar/e viver outra vez”. Gauche é tremendamente influenciado por Sérgio Sampaio, então não é exagero procurar entre suas canções novas algum estilhaço do mestre de Cachoeiro. Bingo! É sempre noite no meu coração é a mais sergiosampaística de todas as composições.

O produtor do disco é Sérgio Benevenuto (que ainda tocou guitarras, synths e melotrons). Foi gravado nos estúdios do selo Índigo Azul, em São Paulo, em novembro de 2022, por Klaus Sena, também responsável pela co-produção, pianos, xilofones, sintetizadores, mixagem e masterização. Kaneo Ramos tocou guitarras e violões. Juliano Gauche, para variar, tocou nossos corações.

Ouça Tenho acordado dentro dos sonhos aqui.

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