“É tanta casa que eu não voltei”.
Há uma certa qualidade de criador cuja busca artística é paralela à busca existencial. Nunca se trata apenas de produzir um artefato. É o caso do cantor, compositor e poeta capixaba Juliano Gauche. As casas a que ele se refere na canção desse verso, Horas que vêm, horas que vão, podem tanto ser físicas, cidades e bairros, quanto internas, localidades desfronteirizadas do próprio inconsciente, moradias às quais a gente não regressa porque estão em movimento (ou porque podem se tornar estanques).
Tenho acordado dentro dos sonhos, o quinto disco do cantor, compositor e poeta capixaba nasce, segundo o próprio autor, da situação de isolamento criada pela pandemia, tempo que o artista desfiou ao lado da mulher, Sil Ramalhete, na praia de Manguinhos, no Espírito Santo natal. Portanto, trata-se de um disco conceitual – como, de resto, são seus outros álbuns nesses 10 anos de carreira discográfica – do primeiro disco, Juliano Gauche (2013), passando por Nas Estâncias de Dzyan (2016) e Afastamento (2018), que compunham uma trilogia, e Bombyx Mori (2020).
A possibilidade de “estar acordado dentro de um sonho” é uma tese concreta da psicanálise abordada pela primeira vez por Frederick van Eeden em 1911. Esse fenômeno foi chamado de Sonho Lúcido (SL), um estado onírico em que a consciência é razoavelmente preservada. São sonhos bons.
Em Afastamento (produzido por Fernando Catatau), Juliano exercitava uma lírica cronística, abordando personagens e situações pré-existentes. Havia um esforço narrativo mais claro. Agora, é como se o cantor estivesse magnetizado pela possibilidade de cobrir, pintar, recobrir a essência dolorida da solidão com uma paleta de cores não registradas no espectro formal. Não parece por acaso que a única composição instrumental, NYX (sigla que, se não falha a memória, denomina uma paleta de makeup), dissolva a palavra em scats agudíssimos, com Juliano tocando sozinho os instrumentos, como um Arnaldo Baptista da ponta da praia.
A primeira coisa que me ocorreu ouvindo as lindas novas canções do álbum foi a experiência de Thom Yorke em King of Limbs, um disco meio “proscrito” do Radiohead, canções como Nude, também impulsionadas por uma tentativa de comunhão com a natureza, uma reconciliação com a natureza. A diferença é que Juliano é antibarroco por excelência, ele flerta com a claridade, com a síntese, um minimalismo de fotossíntese – como se a progressão das canções dependesse da quantidade de luz apreendida ali no ato de ouvir.
Tenho acordado dentro dos sonhos tem 7 canções (Ondas que acordam possui três versões, uma delas em inglês e português, que traz o cantor e compositor André Travassos, da banda Moons, como convidado). Em todas essas canções, não há nem sentimento de rendição nem de êxito, apenas de regresso, reencontro. A ansiedade dá lugar a um suspiro de alívio. “como é respirar/e viver outra vez”. Gauche é tremendamente influenciado por Sérgio Sampaio, então não é exagero procurar entre suas canções novas algum estilhaço do mestre de Cachoeiro. Bingo! É sempre noite no meu coração é a mais sergiosampaística de todas as composições.
O produtor do disco é Sérgio Benevenuto (que ainda tocou guitarras, synths e melotrons). Foi gravado nos estúdios do selo Índigo Azul, em São Paulo, em novembro de 2022, por Klaus Sena, também responsável pela co-produção, pianos, xilofones, sintetizadores, mixagem e masterização. Kaneo Ramos tocou guitarras e violões. Juliano Gauche, para variar, tocou nossos corações.
Ouça Tenho acordado dentro dos sonhos aqui.