“Boquelove” era o apelido carinhoso que Fernando dava ao carro que ele usava para transmitir mensagens de amor lidas por encomenda de clientes. Seu pai, Laudércio, não gostava, mas aceitava a brincadeira. Juntos, eles circulavam pela ruas do bairro Boqueirão (daí o apelido, ok?) com seu “correio elegante” móvel, sempre transparecendo uma clara sintonia de pai e filho que se amam e amam o que fazem. Se seguisse essa narrativa, o longa-metragem já seria uma delícia de se ver, tamanha a leveza das cenas iniciais. Mas o filme Coração de Neon propõe primeiro afundar no abismo da estupidez humana para mostrar que só o amor é capaz de vencer.
Lucas Estevan Soares é o filho Fernando, que assina ainda direção e roteiro de Coração de Neon. A produção é simples, mas não menos engenhosa. Talvez não existam efeitos especiais suficientes para resumir tão bem quanto um carro todo paramentado de neon. É kitsch, é brega, é divertido. O “Boquelove”, literalmente, rouba a cena no filme. Rodado numa era pré-internet, é em torno dele que somos transportados para o primeiro e mais decisivo conflito do longa. Um dos clientes que encomendara o trabalho à dupla de pai e filho vê sua ex-mulher Andressa (Ana de Ferro) recusar a mensagem de amor, sendo obrigado a passar pela humilhação pública.
Laudércio (Paulo Matos) decide tentar consertar a situação, quando o filme apresenta o grande conflito. O cliente não era uma pessoa boa. Na verdade, era um bolsonaris…, digo, psicopata. Policial, Gomes (Wagner Jovanaci) não devia prender ninguém, mas ele próprio ser preso. É como se ele encarnasse muitas maldades em uma só pessoa. Dramas sociais típicos de um país como o Brasil (violência doméstica, abuso de autoridade, apenas para citar dois) afloram a partir de então, e Fernando decide deixar o amor de lado para fazer um acerto de contas com Gomes.
As mensagens de amor já não fariam sentido, e é aí que Coração de Neon ganha mais pontos. Em vez de retratar a história pela ótica da vingança ou da justiça social, o filme mostra que em algumas localidades, como o bairro periférico curitibano do Boqueirão, essas palavras já nem fazem mais sentido. Em “Boquera”, apelido do bairro, chegou a se tornar assunto viral quando o cineasta Estevan Soares postou um rap sobre o local onde nasceu e cresceu. Foi esse vídeo que convenceu a produtora de audiovisual International House of Cinema (IHC) a bancar o longa (que tem orçamento curto).
É difícil não torcer pelo mais fraco contra o tirano, mas é bom não perder de vista que algumas barreiras éticas e humanistas acabam sendo atropeladas pela turma do “Boquelove”. Se, ao final, o amor vence nesse thriller policial, é porque Coração de Neon mobiliza o espectador a refletir que o mundo em tons coloridos pode não passar de uma fachada – e isso não é necessariamente ruim.
Coração de Neon. De Lucas Estevan Soares. Brasil, 2023, 100 mins. Em cartaz nos cinemas.