A amizade entre uma brasileira e uma angolana é o norte do longa-metragem Kevin, dirigido pela mineira Joana Oliveira, que ao mesmo tempo documenta e ficcionaliza sua relação com Kevin Adweko, iniciada em 1999, quando ambas moravam na Alemanha. A história, composta mais de circunstâncias que de ações, desliza suavemente no reencontro das duas, 20 anos mais tarde, quando Joana viaja para Uganda para rever Kevin. Inicialmente, o filme se situaria no Brasil, durante o casamento de Joana, mas essa ideia não se concretizou porque a ugandense havia acabado de ter uma filha e não veio para o evento.
Joana viaja a Uganda em outra circunstância, após um aborto não-desejado, e as discussões sobre gravidez e maternidade entre as duas constituem o primeiro clímax do filme. A brasileira expõe sentimentos dolorosos por seu corpo ter rejeitado o bebê, e a ugandense descreve o impacto subestimado da gravidez sobre o corpo feminino. Kevin vai se revelando original pelos detalhes, provavelmente devido também à abordagem feminina num campo historicamente masculino. Muitas cenas, por exemplo, se desenrolam entre personagens em cena e outras fora de quadro, como a afirmar que a vida é, necessariamente, maior que um filme.
Com magnetismo de atriz, Kevin protagoniza o segundo clímax, quando Joana desiste de participar de um rafting no rio Nilo, incomodada com o contraste entre o condutor negro e os turistas 100% brancos. Diz Kevin: “Você chama isso de racismo”, e porque melhorou em alguns lugares as pessoas falam ‘agora que você não é mais perseguido com um chicote, cala a boca e aguenta'”. O chicote atual, explica a africana, é mais sutil, mas não menos doloroso, e se manifestou rotineiramente em seus 20 anos na Europa. “Alguém tentando me explicar como usar garfo e faca. Se estou sentada na sua mesa, pelo amor de Deus, eu provavelmente tenho um garfo e uma faca na minha casa”, exemplifica. “São formas sutis, e na verdade as pessoas estão lhe tratando bem, mas querem gentilmente explicar como se usa garfo e faca. Quando você para de querer socar essas pessoas, só ri e diz ‘claro que sei’. Aí você está aprendendo a ignorar. Senão, você perde o rafting.”
A ugandense preta explica à brasileira branca que se pensar nisso o tempo todo não se vive, porque está em todo lugar. Tranformações têm acontecido, para o bem e para o mal, ela avalia. “Num país em que morei durante 20 anos, de repente não sou só uma estrangeira, mas me tornei uma imigrante. Tenho que andar com uma camiseta escrita ‘estou aqui só de férias'”, ri. A presença física de Uganda não faz o/a espectador/a se esquecer de que no Brasil talvez a situação esteja ainda menos assimilada. Não fosse assim, talvez o diálogo de Kevin se desse entre duas mulheres negras.
Kevin. De Joana Oliveira. Brasil, 2021, 1h20min. Em cartaz nos cinemas a partir do dia 3.