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Logotipo da Agência Nacional de Cinema (Ancine)

Quase na véspera do 1º turno das Eleições 2022, a Ancine de Jair Bolsonaro desferiu um duro golpe contra as pessoas com deficiência no Brasil. No último dia 29 de setembro, quinta-feira, a agência divulgou a Instrução Normativa 165, definida em apenas 5 minutos de sessão, na qual sua diretoria colegiada aprovou por unanimidade a flexibilização das regras para o acolhimento de pessoas com deficiência nas salas de cinema no Brasil – o dispositivo, entre outras coisas, cria um certo “princípio da adaptação razoável”, que é, na prática, a permissão para que qualquer exibidor descumpra a obrigatoriedade de disponibilizar recursos de acessibilidade caso estes “acarretem ônus desproporcional e indevido” ao seu grupo (qualquer empresa de exibição pode invocar isso, porque ficou a seu critério a definição do que significa).

A medida da Ancine, que impacta 17 milhões de pessoas com deficiência no País, afronta diretamente a Lei 13.146/2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência, que estabelece que “as salas de cinema devem oferecer, em todas as sessões, recursos de acessibilidade para a pessoa com deficiência”), descumpre expressamente a Lei Geral das Agências Reguladoras, ao promover alterações de vital importância sem consulta pública, sem análise de impacto regulatório ou nota técnica. Ninguém foi ouvido, nenhuma publicidade foi dada ao processo. Tudo foi ratificado na completa ilegalidade, mas com a insólita presença de seu Ouvidor-Geral e do Procurador da agência.

A Instrução Normativa 165 sobrepõe-se à Instrução Normativa 128, excluindo desta seu mecanismo essencial de funcionamento, que era a “modalidade fechada individual” (na qual o acionamento dos recursos de acessibilidade impacta apenas uma parcela dos espectadores). Além disso, retirou também as obrigatoriedades que eram previstas no art. 3º, que definiu que o complexo de exibição comercial deveria possuir número mínimo de equipamentos e suportes voltados à fruição individual do conteúdo acessível. Esse número mínimo estava determinado em uma tabela, que foi excluída. Ela determinava, por exemplo, que para complexos de exibição cinematográfica a partir de 13 salas de exibição, eram exigidos mecanismos para ao menos 15 pessoas com deficiência. A nova regulamentação já não estabelece limite mínimo, o que pode permitir que complexos comerciais com  20 salas, por exemplo, possam alegar “cumprir” a lei se garantirem acessibilidade a apenas UMA pessoa com deficiência.

A nova Instrução Normativa da Ancine, feita sorrateiramente como quase tudo na atual ordem governamental (note-se que essa tem sido a política do Estado brasileiro, implodir a regulação e atentar contra direitos adquiridos), além de ter a agência abrindo mão de sua própria função reguladora, contraria, entre outros textos legais, os seguintes:

● art. 30 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/2009), ratificada pelo Brasil e incorporada ao ordenamento jurídico brasileiro com status de Emenda Constitucional.
● o art. 37, IX da Lei 13.327/16, que obriga manifestação da Procuradoria quanto à legalidade e à constitucionalidade de minutas de atos normativos.
● arts. 17 e 19 da Lei no. 10.098/2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência.

A modalidade fechada individual é crucial para a acessibilidade no cinema. A apresentação da legendagem descritiva, língua de sinais ou audiodescrição na modalidade fechada pode assumir duas variantes quanto a forma de fruição pelo espectador: coletiva ou individual. A modalidade fechada coletiva é aquela que, apesar de possuir controle de acionamento, impacta de modo indistinto todos os espectadores. Ou seja, quando acionada, a legenda ou canal de áudio é fruida por todos os presentes. Já a modalidade fechada individual é aquela que permite a apenas uma parte dos espectadores receberem a informação adicional. Por se tratar de ambiente de consumo audiovisual público, a modalidade de acesso IDEAL é a fechada individual, pois abole a cisão entre sessões ordinárias e aquelas voltadas a deficientes. A tecnologia que permite a aplicação da modalidade fechada individual é o uso de dispositivos móveis, como tablets e displays, para a recepção dos recursos acessíveis, de forma que o acionamento dos recursos de acessibilidade impacta apenas uma parcela dos espectadores, permitindo a fruição coletiva na mesma seção.

“Dessa forma, ao retirar a obrigatoriedade de oferecimento da acessibilidade através da modalidade fechada individual, o que a Ancine permite na prática é a acessibilidade através da segregação das pessoas com deficiência, um retrocesso normativo que vai na contramão da tendência de priorização da acessibilidade inclusiva. Uma acessibilidade segregacionista já não é compatível com o atual nível de desenvolvimento internacional dos Direitos Humanos. O direito à acessibilidade inclusiva é importante também pelo seu papel recíproco, a partir do momento que também inclui pessoas sem deficiência no universo das pessoas com deficiência, permitindo a convivência mútua”, diz parecer de servidores.

O retrocesso está em sintonia com as medidas de procrastinação do governo acerca de direitos de cidadania em diversos setores. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146, de 2015), por exemplo, determina que as salas de exibição devam contar com espaços livres e assentos para pessoa com deficiência e recursos como língua brasileira de sinais (Libras) e a audiodescrição. Até o ano passado, Jair Bolsonaro adiara por meio de uma Medida Provisória a aplicação total da legislação – o Ministério do Turismo alegou temer que parte do parque exibidor ficasse na ilegalidade.

 

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