Indígena isolado da Terra Indígena Tanaru, o último de seu povo, que morreu na terça-feira em Rondônia

Tinha entre 50 e 60 anos. Vivia nu, caçava com arco e flecha e cultivava um bigodinho fino parecido com aquele do Amigo da Onça do cartunista Péricles (1924-1961). Foi encontrado morto por um sertanista em uma maloca na última terça-feira, deitado numa rede e coberto de penas de araras, na Terra Indígena Tanaru, no Oeste de Rondônia. Estava paramentado como em uma cerimônia e não tinha sinais de violência aparentes, o que levou observadores a crer que ele intuía que a morte estava próxima e se preparou para sua chegada.

Era O Homem Mais Solitário do Mundo. Era o Isolado Tanaru. Era o “Índio do Buraco”, identificado por indigenistas como o último indivíduo de um povo isolado que foi extinto – provavelmente exterminado por fazendeiros ou pistoleiros durante a construção de uma estrada, em conflitos relatados por povos da região em 1995. Não se conseguiu determinar qual a etnia de onde provinha. Ele foi localizado pela Funai em 1996 e, desde então somente foram feitas três fotografias que registravam sua presença arredia na selva. O apelido popular que ganhou, Índio do Buraco, se devia ao fato de que, no interior das cabanas de palha nas quais ele vivia de tempos em tempos, os indigenistas encontravam sempre buracos com um padrão: cerca de um metro de diâmetro e três metros de profundidade. Pelos vestígios, abrigava-se no buraco.

O sertanista que monitorava seu destino na selva disse acreditar que o buraco tivesse um tipo de valor ritualístico para o indígena, cuja alimentação foi mapeada pela presença de roças de milho, batata, cará, banana e mamão plantadas em sua trajetória, além de resquícios de caça e mel. Em 2018, uma equipe da historiadora e pesquisadora escocesa Fiona Watson encontrou em sua maloca de palha pontas de flecha talhadas, cabaças para armazenar água, nozes secas e uma tocha feita de resina. Na horta, identificou verduras, mandioca e milho.

Mesmo isolado de qualquer contato com o homem branco a vida toda, isso não o poupou de ser objeto de um atentado a tiros em 2009 movido por fazendeiros – a reserva Tanaru possui 8.070 hectares e tem restrição de uso desde 1998. Sua solitária presença na região impedia a atividade de expansão e os planos de um grupo de especuladores. Após mais de três anos pesquisando o indígena isolado, o  jornalista americano Monte Reel, que trabalhara no Brasil como correspondente do Washington Post, publicou um livro sobre o Isolado Tanaru, The Last of the Tribe (O último da tribo, Scribner, 2010, sem tradução no Brasil). O livro de Reel teve os direitos comprados por um estúdio de cinema e deve virar filme em Hollywood.

A morte do Tanaru significa a extinção de um povo, de uma língua e de uma cultura e portanto, de muitas coisas que não conhecemos (ou que nos são atávica e misteriosamente familiares). Presenciar um desaparecimento assim causa um indescritível banzo, uma sensação de impotência diferente de outras típicas de nosso tempo, como as  guerras entre nações e as disputas geopolíticas colonialistas. Uma das grandes riquezas de que o Brasil dispõe é a existência de povos isolados, que são o testemunho vivo do arco da civilização sanguineamente retesado de nossa humanidade. Talvez por isso o Homem Mais Solitário do Mundo tenha fascinado tanto os chamados “ocidentais”: ele nos via e sabia o que éramos, mas nunca saberemos a conclusão dele. O fotógrafo mineiro Juvenal Pereira construiu uma casa no interior da Mata Atlântica do litoral paulista inspirada em um desenho da habitação tradicional de um dos nossos povos em vias de desaparição, os Avá-Canoeiro do Tocantins. Infelizmente, a morte do Tanaru não deixa muitos vestígios, e melancolicamente materializa as distopias todas sobre o fim dos povos originários, como as nossas canções mais conhecidas:

E aquilo que nesse momento se revelará aos povos
Surpreenderá a todos não por ser exótico
Mas pelo fato de poder ter sempre estado oculto
Quando terá sido o óbvio

Em 2018, a Agência Brasil divulgou um boletim sobre o monitoramento da Funai ao indígena isolado. Nos últimos 10 anos, a Funai realizou 57 incursões de monitoramento do indígena e cerca de 40 viagens para ações de vigilância e proteção da área. A fundação realizou algumas tentativas de contato, mas “logo recuou ao perceber que não era da vontade dele”. A última tentativa foi em 2005. Deste então, os servidores que o acompanhavam deixaram apenas algumas ferramentas e sementes para plantio em locais que ele passava com mais frequência.

Estima-se que haja 180 línguas indígenas existentes hoje no Brasil. Estudo do linguista Aryon Dall’Igna Rodrigues, apresentado na conferência A originalidade das línguas indígenas brasileiras, na Universidade de Brasília, em 2016, disse o seguinte: “Das 180 línguas, apenas 24, ou 13%, têm mais de 1.000 falantes; 108 línguas, ou 60%, têm entre 100 e 1.000 falantes; enquanto que 50 línguas, ou 27%, têm menos de 100 falantes e metade destas, ou 13%, têm menos de 50 falantes. Em qualquer parte do mundo, línguas com menos de 1.000 falantes, que é a situação de 87% das línguas indígenas brasileiras, são consideradas línguas fortemente ameaçadas de extinção e necessitadas, portanto, de pesquisa científica urgentíssima, assim como de fortes ações sociais de apoio a seus falantes, que como, comunidades humanas, estão igualmente ameaçados de extinção cultural e, em não poucos casos, de extinção física.”

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