É possível afirmar, sem medo de errar, que ele conduziu bandas de rock até o estrelato. Conduziu no sentido de sentar ao volante e dirigir as vans e os veículos nos quais as bandas fizeram suas primeiras turnês internacionais, mas também em outros sentidos: negociou shows, aplacou conflitos, aparou arestas, colou flyers e lambe-lambes em postes e muros, juntou cacos de amizades partidas, entre outras façanhas.
Paulo André Moraes Pires não teve culpa por nada disso. Ele estava no epicentro de uma das maiores revoluções da música jovem brasileira, o mangue beat do Recife, Pernambuco, no início dos anos 1990, e era abusado o suficiente para acreditar que aquilo poderia ganhar o mundo. Agora, as histórias de como tudo aconteceu estão reunidas em livro: Memórias de um motorista de turnês (Cepe Editora). O livro de Paulo André será lançado neste cabalístico 13 de agosto, também conhecido como o próximo sábado, no Centro de Artesanato de Pernambuco (Avenida Alfredo Lisboa, s/n, Bairro do Recife), às 16 horas. O livro impresso, de 164 páginas, custa 50 reais, o e-book custa 20.
Originalmente, Paulo André contava essas histórias nas redes sociais, em posts do Instagram ou do Facebook. Amigos privilegiados também as ouviram pessoalmente, às vezes na frente de um chope no Mercado Bolonha, em Belém do Pará. Em forma de texto não é muito diferente porque Paulo André escreve exatamente do jeito que fala, até com o sotaque delicioso e os palavrões todos.
Produtor, tradutor, agente e motorista de bandas como Chico Science & Nação Zumbi, Devotos, Mestre Ambrósio, Cascabulho, Cabruêra, Siba e a Fuloresta, Felipe Cordeiro e DJ Dolores & Orchestra Santa Massa, ele é um dos responsáveis, nos bastidores, pela consolidação cultural do fenômeno musical de Pernambuco nos anos 1990. Foi amigo de todos eles, aguentou os gênios e os malas das bandas, passou fome com eles na Alemanha, trocou ingresso por abraço com Chrissie Hynde, dos Pretenders, abriu a porta do camarim para “o doido do Pink Floyd” (David Gilmour) paparicar sua banda,
No livro, Paulo André não está biografando as lendas de Chico Science e os grupos de sua época, mas contando a história de como a mitologia do rock é construída a partir de acasos, improvisação, cara de pau, visionarismo e convicção na cultura como sedimento mais precioso da evolução humana. Na mais tenra juventude, o produtor trabalhou como coletor de carrinhos de supermercado na Califórnia durante três anos, comendo o pão que o diabo amassou. Mas as experiências nunca são totalmente inúteis, e ele ouviu uma cena de death metal eclodindo na Califórnia, viu os shows, aprendeu os macetes, e voltou para Recife com um ás na manga. Abriu uma loja de discos também lendária, a Rock Xpress, e testemunhou a ebulição do mais ousado cenário musical das últimas décadas. Também é o criador de um dos mais importantes festivais do calendário brasileiro de música, o Abril Pro Rock.
O livro traz a memória principalmente do lado estradeiro daquela aventura musical. São façanhas como a quase embarcar para a Europa para uma turnê sem dois integrantes da banda, detidos em uma blitz, até a de fretar um avião Bandeirante às pressas para um show no Crato. Shows com Gilberto Gil no Central Park, Nick Cave e Ministry na Europa e a conquista progressiva dos territórios lendários do rock, como o CBGB de Nova York, entram na narrativa com naturalidade, enroscados nas aventuras de viagem como um jogo de truco contínuo.
Paulo André é uma testemunha mais do que ocular da saga do mangue beat. Dois meses após a morte de Chico Science num acidente de carro, em 1997, ele ainda recebeu um Disco de Ouro pelas 100 mil cópias vendidas do disco Afrociberdelia (1996), o segundo da mais influente banda brasileira dos últimos tempos.
Colecionador desde a infância, Paulo André também é um preciosista armazenador de fragmentos das histórias, a chamada memorabília. “Quando vejo os objetos, as fotos, os flyers, as fitas-demo, eles me trazem lembranças não só de situações como dos próprios diálogos”, declara o autor no prefácio do livro, que é rico em fotografias. A memorabilia o impulsionou, no início da pandemia de Covid-19, a organizar as memórias que publica agora nesse livro.
É um trabalho fundamental para evocar a importância daquela era. Como lembra Louise França, a filha única de Chico Science, em um artigo no portal Geledés, neste ano de 2022 são celebrados 30 anos do Movimento Mangue, e não há nenhuma agenda comemorativa nem em Pernambuco nem no resto do Brasil. “Foi por causa desse movimento que muitos pernambucanos passaram a se aproximar e conhecer valores e costumes que estavam quase esquecidos na poeira do tempo”, ela escreve. “Trazendo consigo o orgulho de ser, o sentimento de pertencimento e a consciência do poder de transformação da arte”. É absolutamente verdadeiro isso: ao juntar guitarras distorcidas do rock aos fundamentos do dub e do reggae, incorporando funk e hip-hop, samba, ciranda, coco, embolada e maracatu, os grupos dessa viagem fizeram a música assumir um protagonismo de revelação cultural, com a vantagem de que tinham consciência social e política e ainda por cima seu som era bom pra cacete. Que o diga um anônimo técnico de som europeu que , ao mesmo tempo que trabalhava na montagem do palco, não conseguia parar de dançar e bater cabeça com o ensaio do Nação Zumbi nos anos 1990.