Aurora, que pintou o êxtase e a agonia da mulher

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"Vigiar as meretrizes, assassinos e ladrões", óleo sobre papel sem data de Aurora Cursino dos Santos

Na Aliança Superior da Mulher da Vida, os homens ficam um pouco atrás, aparentemente dando apoio, e as mulheres, vestindo anáguas, estão à frente, ligeiramente emocionadas e surpresas. Há algum tipo de cerimônia em andamento, mas não está enquadrada. É possível ver até um maestro empunhando uma batuta. A Aliança Superior da Mulher da Vida é um óleo sobre papel da pintora Aurora Cursino dos Santos (1896-1959), que trabalhou como prostituta e viveu 15 anos internada no Complexo Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo. Nesse manicômio, Aurora foi submetida a eletrochoques e, pouco antes de morrer, em 1955, foi lobotomizada.

Seu refúgio no inferno psiquiátrico era a pintura. Ela pintou cerca de 200 quadros, hoje reconhecidos como um tesouro da pintura e já exibidos em mostras no Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Bienal de São Paulo e na Bienal de Berlim, Alemanha. Já era reconhecida como um talento excepcional ainda como interna, e mesmo antes: tanto que o compositor Zequinha de Abreu (1880-1935) lhe endereçou uma valsa, A Noite Desce, em 1932, com a dedicatória: “À distinta aluna Snra. D. Aurora Cursino, modesta homenagem do autor“. Outra composição, Branca, também lhe foi dedicada. A pintora retribuiu, registrando em três telas a presença de Zequinha de Abreu, uma delas mostrando o músico a assinar o próprio testamento após um derrame.

Agora, a editora Veneta está lançando um alentado catálogo ensaístico da produção da artista, Aurora: memórias e delírios de uma mulher da vida, trabalho da historiadora de arte Silvana Jeha e do psicanalista Joel Birman.

As obras de Aurora impressionam por diversos motivos. O uso das cores (parecem inéditas), o ângulo inusitado das cenas, o registro das situações, os comentários sociais: tudo é surpreendente e novo dentro dos cânones da linguagem artística. Mas, especialmente, o registro do universo feminino em face dos condicionamentos sociais, da religião à família, da maternidade involuntária aos julgamentos morais. É um mundo mais expressionista, por um lado, mas também junino, interiorano, paroquialmente íntimo, por outro. Registram, quase sempre, “gritos e sussurros”, como definem os autores do seu catálogo.

“Sabemos que ela nasceu em 1896, em São José dos Campos, e que trabalhou como prostituta no Rio de Janeiro, em São Paulo e talvez na Europa entre as décadas de 1910 e 1930”, escrevem Silvana e Joel. Era semianalfabeta e foi obrigada a casar-se com um homem que não lhe dizia respeito. Da “penumbra” em que foi produzida sua pintura, é possível entrever um duelo entre a persistência da humanidade e o sequestro progressivo da razão. Sua obra, por esses motivos, integrou a exposição Imagens do Inconsciente, núcleo da Mostra do Redescobrimento, em 2000, na Bienal de São Paulo.

O catálogo agora lançado pela Veneta Editora, que edita comics com excelência, traz 78 reproduções de suas obras. Muitas são de estonteante beleza, como as cenas campestres e a própria história pessoal da pintora, caso da tela Rapto de Aurora Cursino, pintada como se a artista observasse de uma torre altíssima, ou Um filho veio ver sua mãe dormindo (eu), Aurora Cursino Santos. Junto à mostra Arthur Bispo do Rosário, na qual ela também está representada (em curso no Itaú Cultural), a arte de Aurora é elucidativa não apenas do percurso do olhar do inconsciente, mas também das estratégias artísticas do último século no Brasil.

Autoretrato da pintora, sem data

 

 

Aurora: memórias e delírios de uma mulher da vida. De Silvana Jeha e Joel Birman.  Veneta Editora. 168 páginas, 90 reais.
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